O saber não é neutro
O ideal do século XIX de construir uma ciência pura não existe mais. Atualmente, as grandes controvérsias científicas não se resumem a confrontações entre sábios racionais e público obscurantista. Correspondem, antes, aos debates políticos entre partidários de mundos possíveisRubens Naves
Encontrar seu lugar na sociedade é um desafio para a ciência. Um exemplo que ilustra bem essa afirmação são as atuais controvérsias no campo da biotecnologia. Os biólogos estão em meio a um verdadeiro fogo cruzado: de um lado, o poder econômico privilegia, com seus financiamentos direcionados, a pesquisa com fins aplicáveis, exigindo como contrapartida segredos e patentes; de outro, o público rejeita o papel de espectador passivo e se rebela contra alguns “desconhecimentos” científicos, como por exemplos os efeitos de organismos geneticamente modificados (OGM) na agricultura. Tantas contradições terminam, às vezes, por resgatar o velho ideal da ciência pura, onde são rejeitadas as “deformações inerentes às contingências econômicas e sociais1”.
Nos últimos anos, porém, os estudos da história social da ciência iniciados com Alexandre Koyré e levados adiante por Thomas Kuhn2 renovaram totalmente a abordagem dessas questões e, de forma mais geral, a maneira de conceber o lugar da ciência na sociedade. Suas pesquisas observaram que a “revolução científica” na origem das ciências modernas é geralmente apresentada como a vitória da razão frente, notadamente, a uma Igreja obscurantista. Falácia. A maior parte dos sábios, como Isaac Newton, por exemplo, era profundamente crente e pensava que “descobrir as leis da natureza graças à física é descobrir a obra de uma providência absolutamente divina e convencer-se de que a organização do mundo não é produto do acaso3”. Muito antes das Luzes, é no declínio das antigas hierarquias e no turbilhão suscitado pela chegada ao Novo Mundo que devemos buscar a fonte dessa revolução. É nesse contexto que as novas ciências abandonam a concepção de natureza como algo maravilhoso, governado por princípios ocultos, e passam a imaginá-la como uma máquina gigantesca. A tal engrenagem seguiria leis reguladoras e necessárias, passíveis de serem traduzidas em linguagem matemática. Isso não impediria, contudo, que a visão mecanicista da natureza continuasse por muito tempo como um ato de fé4, incapaz de explicar fenômenos tão familiares como a coesão de materiais, a queda dos corpos ou a maré.
O pensamento mecanicista, inspirado pela tecnologia e pela religião, permitiu alcançar um saber eficaz, cujo objetivo era o domínio e controle do mundo justamente no momento de expansão colonial e da primeira revolução industrial. Naquele período, os universos científicos, técnicos e dos poderes econômicos ou políticos se imbricavam profundamente.
Universo particular
Assim, as evoluções das ciências não resultam de um projeto coerente concebido em apenas um lugar, mas de mutações globais tanto dos produtores de saber como dos poderes secular e religioso. Cada ator perseguia – e persegue – seus interesses e busca aproveitar-se das mudanças no entorno. A partir de conjunturas singulares, emergem novas visões científicas do mundo e, por razões complexas, algumas delas se difundem entre numerosos atores sociais e naturais. Assim, a história das ciências assemelha-se à imagem do leito de um curso d’água, desenhado por inúmeras conjunções geológicas: acidentes, obstáculos, desvios. Essa visão difere bastante daquela proposta pela história habitual5, que descreve o avanço das ciências como a descoberta progressiva de uma natureza fixa – como se o curso d’água “descobrisse” seu leito, fluindo inevitavelmente desde sua fonte à foz. A história realista das ciências é cheia de suspense, de surpresa, de pontos de inflexão.
Em primeiro lugar, a prática efetiva das ciências não visa apenas descrever a realidade tal como é, mas a criar, graças aos laboratórios, um mundo artificial onde seus conceitos podem ser operacionalizados. Essa tendência, dominante hoje, caracteriza as ciências modernas desde o início. Galileu privilegiava o estudo do movimento num mundo idealizado onde o atrito não existia, o que gerava muitos protestos por parte dos aristotélicos, para quem a física deveria se ocupar da realidade, não importando se tais condições dificultassem os trabalhos dos matemáticos. Segundo, a noção de “descoberta” é ingênua, pois não leva em consideração um fato atualmente bem estabelecido: o de que a realidade sempre nos escapa, pois nossos conhecimentos estão indissociavelmente misturados à nossa noção do real e nossas ferramentas de acesso a eles estão, por sua vez, intrinsecamente ligadas à sociedade que as criou. Reconhecer esses limites conduz a uma verdadeira historicidade dos fatos científicos. Assim, os micróbios de Pasteur não são os nossos: com a mediação de aparelhos e teorias diferentes daquela época, eles são muito mais variados, alguns inclusive se tornaram vírus. Quanto aos átomos, eles constituem uma visão da matéria ainda relacionada com materiais purificados produzidos por laboratórios modernos. Contudo, isso não significa, contrariamente ao que certos teóricos preconizam, que essas entidades seriam ilusões: elas respondem bem aos processos laboratoriais e permanecem elementos essenciais na construção de “fatos” científicos. Mas as características que conhecemos delas não esgotam suas realidades: de certa maneira, essas entidades falam por si mesmas, mas jamais dizem tudo que sabem.
Imersos na realidade
Ao acompanhar os pesquisadores em seus gestos diários, observá-los fabricar objetos e produzir sentidos a distintos universos sociais e políticos, constata-se que as ciências não descobrem “o” mundo, mas constroem mundos ao relacionar coletivos humanos, máquinas e objetos naturais. Quanto às ciências puras, elas jamais duram muito tempo: o ideal de um saber neutro, autônomo e descolado dos outros universos sociais, privilegiado pelos sábios do século XIX, logo cedeu lugar a outras abordagens no momento em que a inserção desses estudiosos no mundo socioeconômico se intensificava.
Com essas múltiplas ilusões, parcialmente dissipadas, torna-se possível buscar integrar melhor as ciências no debate democrático. As grandes controvérsias científicas não se resumem mais a confrontações entre sábios racionais e público obscurantista. Correspondem, antes, aos debates políticos entre partidários de mundos possíveis. Que seja sobre terapias genéticas, nanotecnologia ou organismos geneticamente modificados, é cada vez mais flagrante que esses avanços científicos não devem ser julgados separadamente do sistema social onde estão inseridos6. Como associar os pesquisadores a uma sociedade civil que não aceita o papel de espectador passivo, mas que ao mesmo tempo é influenciável e versátil, como mostram as mudanças de opinião sobre o aquecimento global, sempre mantendo a autonomia frente a pressões econômicas? Para Isabelle Stengers, uma solução possível consiste em definir as ciências como a construtora de provas críveis7. Contudo, as indústrias ameaçam a fiabilidade por uma exigência mais forte, a da competitividade, enquanto o público pede a extensão desse tipo de prova para fora dos laboratórios. Se já existem várias pistas de como fazer isso, como as conferências cidadãs ou a separação de poderes sugerida por Bruno Latour8, as formas concretas de se implementar essas iniciativas ainda estão por ser inventadas.
Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.