O silêncio das cidades
Acervos de arquitetos e urbanistas no exterior podem silenciar pesquisadores brasileiros da história urbana. Leia mais um artigo da série especial Cidades do Amanhã
Como se conta a história de uma cidade? A maioria dos historiadores do urbanismo contam sobre as cidades a partir de quem as construiu, a partir da prancheta dos arquitetos e urbanistas que pensaram seus planos para, ao menos na teoria, impactar positivamente a vida dos habitantes de um determinado lugar. Em muitos desses estudos, os habitantes das cidades acabam sendo coadjuvantes em suas relações com a arquitetura e com os desenhos do urbano.
No entanto, para que o trabalho dos historiadores da arquitetura e do urbanismo seja possível, são necessárias consultas ao acervo de tais construtores, uma vez que os planos, projetos e outros documentos adjacentes são fundamentais para a escrita da História. Em outros casos, é a vida dos próprios construtores que ajuda a contar sobre um determinado local, como é o caso dos trabalhos de Beatriz Bueno, Renata Geraissati, Joana Mello e Carlos Thaniel Moura, entre tantos outros que trabalharam biografias desses agentes para, assim, remontar a História Urbana. Em alguns casos, esses trabalhos só se tornaram possíveis pois os acervos destes arquitetos e urbanistas estavam no Brasil, tanto em arquivos públicos quanto nas universidades, disponíveis integralmente para pesquisa e consulta pública por parte dos pesquisadores.
Na última semana, nos deparamos com notícias sobre o envio do acervo do arquiteto e urbanista Lúcio Costa para a Casa da Arquitectura, em Portugal. Ele se soma ao acervo de seu colega e também brasileiro Paulo Mendes da Rocha, morto neste ano e cujo acervo também deverá ser guardado pela mesma instituição, que acaba se constituindo como arquivo, uma vez que tem função de curadoria deste e de diversos outros acervos que detém.
Mas, afinal, qual a função de um arquivo? No dicionário, um arquivo é um conjunto de documentos de naturezas diversas mantidos sob guarda de uma instituição, que nem sempre terá arquivo em seu nome. Um arquivo, no entanto, pode ser apenas o lugar de depositar documentos, colocá-los em uma caixa, uma gaveta sem que seja necessário olhar para ele.
Manter uma quantidade de documentos em algum lugar e chamar tal espaço de arquivo requer, no entanto, outras premissas, como catalogação, tratamento, armazenamento e, talvez o mais importante, a difusão do acervo. Com exceção da difusão, as outras etapas podem ser aplicadas em nossos documentos pessoais, livros, memórias e tantas outras coisas que quisermos guardar e preservar. Acervos pessoais ou coleções particulares, no entanto, normalmente têm acessos restritos, o que dificultam suas consultas e acabam não contribuindo para a produção de conhecimento.
Parte importante da discussão sobre a ida dos acervos de Lúcio Costa e Paulo Mendes da Rocha estava apoiada no colonialismo, uma vez que é de fato significativo que nossos acervos estejam indo logo para Portugal, mas, no entanto, devemos observar tantas outras coisas presentes nesse envio.
A primeira que trago é: por que nos incomodam tais envios se, há tempos, outros acervos têm sido vendidos e doados a outras instituições estrangeiras? O acervo do historiador Nicolau Sevcenko, por exemplo, esteve em vias de ser doado à Unifesp, mas foram tantas as questões burocráticas, como o pagamento de impostos altos para a doação, dificuldade de transporte, armazenamento e até mesmo para a mudança de guarda que envolveram a doação do acervo que sua viúva optou por enviá-lo à Universidade de Harvard, onde o historiador era professor.
É também questionável a ideia de que não temos estrutura para a guarda de tais documentos, o que não é verdadeiro. As universidades não só têm condições de armazenar os acervos como também – apesar da atual conjuntura que se coloca sobre o financiamento das pesquisas no país – de fomentar projetos para cumprir com todas as etapas necessárias para que tal acervo se torne acessível aos pesquisadores, para que, assim, eles também dialoguem e sejam tema de projetos concretos de pesquisa e contribuam para a produção do conhecimento, tal qual se deu com os acervos de Guita e José Mindlin, Ramos de Azevedo, Mário de Andrade e tantos outros.
Uma das propostas apresentadas é que o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, o CAU, se encarregue da criação de uma biblioteca brasiliana de arquitetura, mas, a questão principal é: tal biblioteca garantiria as etapas necessárias para a manutenção e difusão do acervo? Até que ponto esses acervos ficariam tão restritos quanto em Portugal? Neste ponto, apesar de toda a burocracia envolvida, as universidades e mesmo os arquivos públicos ainda são as melhores instituições para não só guardar como também tornar acessível o acervo a quem desejar consultá-lo, independente de filiação ou formação.
Mais uma vez é necessário colocar que ter a guarda de documentos não significa constituir um arquivo e tampouco deixá-los em condições de serem disponibilizados para consulta, uma vez que demandam tratamento arquivístico adequado e devem ser feitos por profissionais capacitados para tanto.
É evidente que, longe do Brasil, talvez os maiores interessados em utilizá-los para pesquisa, ou seja, os pesquisadores brasileiros, dependeriam de financiamento de instituições de fomento à pesquisa ou mesmo de investimento particular para realizar a consulta ao acervo, o que dificultaria muito o trabalho do pesquisador. Atualmente, os financiamentos de pesquisa têm sido cada vez mais escassos, ou seja, o acervo ficaria disponível apenas pelo tempo que o pesquisador conseguisse estar fora do país, não sendo possíveis novas consultas ou até mesmo conferências à documentação. Essa dificuldade no acesso pode acabar provocando uma redução no número de interessados em trabalhar sobre estes arquitetos tão importantes para a arquitetura e para o urbanismo no Brasil.
Há que se considerar também a possibilidade de digitalização e disponibilização do acervo em meio digital, o que garante não só a difusão como também permite o acesso irrestrito à documentação a partir de qualquer lugar do mundo e por qualquer pessoa. Vale observar, contudo, que não existe nenhum acervo que tenha sido integralmente digitalizado.
Este processo, além de muito trabalhoso, demanda tempo e cumprimento de outros processos, o que retardaria a possibilidade do acesso e possivelmente ficaria disponível apenas de forma parcial. Como a seleção do que deve ser digitalizado é uma decisão da curadoria do acervo, não necessariamente disponibilizaria os documentos desejados pelos pesquisadores ou as obras mais importantes presentes no conjunto documental.
É evidente que digitalizar também é uma forma de preservação, já que o documento fica livre de contato manual que, mesmo com os devidos EPIs, podem se degradar com o manuseio constante do suporte. Ao mesmo tempo, a possibilidade de pesquisa com o documento físico também permite ao pesquisador analisar nuances, anotações de canto e outras marcas que, às vezes, se tornam invisíveis com a digitalização e podem ser absolutamente significativas na hora de se escrever sobre alguém ou sobre algo.
Também deve ser digno de nota o fato que a burocracia presente no Brasil muitas vezes não só dificulta como inviabiliza a doação de coleções integrais às universidades, as quais, no meu ponto de vista, são as instituições que mais têm condições de, além de armazenar, também tornar esses acervos acessíveis aos interessados. O bibliógrafo José Mindlin manifestou ainda em vida o desejo de que seu acervo – composto por 60 mil obras raras – fosse integralmente doado à Universidade de São Paulo, mas a burocracia envolvida na doação era tão grande e o imposto tão alto que foram necessários oito anos até que a doação se concretizasse, sendo somente efetuada pela família, que atendeu ao desejo de Mindlin após sua morte, em 2014.
No final, são os pesquisadores brasileiros e o próprio país que perdem com isso, pois tais registros não são somente coleções pessoais ou acervos particulares, mas sim partes de nossa memória e história que se vão. Perder os acervos de Lúcio Costa e de Paulo Mendes da Rocha é perder um pouco da história das cidades no Brasil, da forma como estes pensaram o espaço urbano e a vida nesses locais, de como a arquitetura influencia nas nossas maneiras de ser e pensar diante do ambiente em que vivemos. O estudo do urbanismo e de sua história são fundamentais para que se quebre o silêncio sobre a vida urbana, sobre a forma como os espaços são usados e disputados.
Infelizmente, após o envio dos acervos de Lúcio Costa e de Paulo Mendes da Rocha para Portugal, é praticamente impossível que sejam trazidos de volta ao país e, pensando assim, passamos por incapazes de manter nossa própria memória sobre aqueles que ajudaram a pensar e a construir nossas ideias de cidade. A análise de projetos, plantas e outros documentos arquitetônicos são parte das vozes que compõem o estudo das cidades e, assim, a ida de acervos dessa importância para o exterior nos deixa mais silenciosos, mais calados e a história de nossas cidades voltam a ser apagadas.
Maíra Rosin é historiadora e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Trabalha com a história urbana através das relações entre os excluídos e marginalizados com a cidade e é pesquisadora do Grupo CAPPH (Unifesp).