O sintoma de uma desapropriação
Do Estado Islâmico aos atentados contra o Charlie Hebdo, do 11 de Setembro à crise financeira de 2008, todo evento amplamente midiatizado suscita cada vez mais teorias da conspiração. Essas construções intelectuais fincam suas raízes na cultura popular e na história contemporânea, certificadas por complôs verdadeirosFrédéric Lordon
Vê-los por toda parte; não vê-los em lugar algum: em matéria de complô, raramente o debate evita um desses dois extremos simétricos. Em 2004, quando as cinco grandes empresas de Wall Street realizaram, graças a pressões, uma reunião (por muito tempo mantida em segredo) na Securities and Exchange Commission (SEC, o regulador dos mercados de capitais norte-americanos) para obter a abolição da “regra Picard”, que limita em doze o coeficiente de alavancagem global dos bancos de negócios,1 foi preciso um grande exercício intelectual para não ver nela uma ação conjunta e dissimulada de um grupo de interesses especialmente poderoso e organizado. Conspirações, portanto, existem – esta, descrita acima, por exemplo, inclusive totalmente bem-sucedida.
Sem dúvida, não cabe apenas a isso a integralidade da análise que a crise financeira pede, e talvez esteja aí uma das notórias fraquezas do conspiracionismo, mesmo quando ele mostra fatos constatados: seu monoideísmo,2 a coisa única que vai explicar tudo, a ideia exclusiva que dá conta de tudo integralmente, areunião escondida que decidiu tudo. Exemplo típico do monoideísmo conspiracionista: Bilderberg (ou a Trilateral).3 Bilderberg existe! A Trilateral também. Então o problema não está no estabelecimento desse(s) fato(s): ele está na questão do status causal que dão a ele. Ou seja, o fato de Bilderberg ou a Trilateral serem erigidos como organizadores únicos e onipotentes da globalização neoliberal. Para desfazer o monoideísmo da visão conspiracionista basta convidá-lo a se prestar a uma experiência de pensamento contrafactual: imaginemos um mundo sem Bilderberg ou a Trilateral; esse mundo hipotético teria evitado a mundialização neoliberal? Evidentemente, a resposta é não. Daí deduzimos por contraposição que esses conclaves ocultos não eram os agentes sine quibus nondo neoliberalismo, talvez nem mesmo os mais importantes. E, no entanto, essa não é uma razão para deixar de falar sobre Bilderberg e a Trilateral, que dizem incontestavelmente algo a respeito do mundo em que vivemos.
Bastaria então, de vez em quando, uma suspeita de caridade intelectual para reter o que pode haver de fundamentado em certas teses imediatamente desqualificadas sob a etiqueta agora infamatória de “conspiracionistas”, pôr de lado seus devaneios explicativos e conservar, até mesmo rearranjar de outra forma, fatos de ações conjuntas bem reais, mas que a doutrina neoliberal se esforça para negar veementemente. É verdade que a visão de mundo dos dominantes é constituída pela negação genérica dos fatos de dominação (trabalhadores e empregadores, por exemplo, são “cocontratantes livres e iguais num mercado do trabalho”…), a começar, é claro, por todos os fatos explícitos em que os interesses dominantes contribuem para a produção, a reprodução e o aprofundamento de sua dominação. É provavelmente sem esperança imaginar encontrar nas controvérsias midiáticas uma posição intermediária que uniria a regulação contra algumas condutas extravagantes (até mesmo escandalosas) do pensamento conspiracionista à ideia de que a dominação, ainda que produzida principalmente nas estruturas e por elas, também trata em parte de ações coletivas deliberadas dos dominantes. Que se chegue a esse tipo de distinção é sem dúvida pedir demais, e já podemos ver surgir os comentários violentos que farão desse simples propósito uma defesa apologética do conspiracionismo e dos con
No entanto, estaria na hora de convocar, de alguma forma, um pensamento não conspiracionista dos complôs, quer dizer, ao mesmo tempo: 1) reconhecer que existem de vez em quando ações conjuntas e dissimuladas – poderíamos chamá-las de complôs, e 2) recusar fazer do complô o esquema explicativo único de todos os fatos sociais, acrescentando inclusive que de todos os esquemas disponíveis ele é o menos interessante, frequentemente o menos pertinente, aquele que se deve, metodologicamente, utilizar em último lugar… e isso mesmo se de vez em quando ele tenha seu lugar!
Sem dúvida encontramos de tudo a respeito do conspiracionismo: quadros sarcásticos de seus mais notórios delírios (é fato que não faltam delírios…), avaliações de seus temas-fetiche, até mesmo análises interessantes de suas psicopatologias. Mas nada de análise política! A potência dos efeitos de desqualificação, a força com a qual eles fazem a triagem dos locutores, as características sociais associadas a essa própria triagem, a reserva da palavra legítima a alguns e a exclusão absoluta de outros, procedendo ali também por um efeito de amálgama que confunde na aberração mental, depois na proibição de falar, qualquer categoria, até mesmo um conjunto de categorias sociais, a partir de alguns desgarrados isolados, isso para fazer do discurso político o caso monopolístico dos “representantes” assistidos dos especialistas: todos esses mecanismos, exacerbados nas mídias francesas, deveriam, no entanto, atrair a atenção para os objetivos propriamente políticos engajados no debate sobre o conspiracionismo – ao contrário, ele é objeto de risadinhas e gritos falsamente aterrorizados, já que, mesmo que isoladas, as projeções conspiracionistas fornecem a melhor razão do mundo para a desapropriação.
Desapropriação: talvez seja essa a palavra que melhor descreve a entrada política no fato social – e não psíquico – do conspiracionismo. Em vez de ver nele um delírio sem causa, ou, melhor, sem outra causa que não a essência atrasada da plebe, poderíamos ver nisso o efeito, sem dúvida aberrante, mas bem previsível, de uma população que não renuncia a compreender o que acontece com ela, mas vê sistematicamente recusados os meios para isso: acesso à informação, transparência das agendas políticas, debates públicos aprofundados (quer dizer: outra coisa diferente do pastelão servido com esse nome pelas mídias de massa) etc. Decididamente, o acontecimento político mais importante das duas últimas décadas, o referendo sobre o tratado constitucional europeu de 2005, mostrou o poder, mesmo num extraordinário clima de adversidade, de um corpo político ao qual se dá o tempo da reflexão e do debate: apreender as matérias mais complexas e se apropriar delas para produzir uma votação esclarecida.
Além dessas condições excepcionais, todos os meios, ou quase, para dar sentido às forças históricas que atacam a população e principalmente para participar das deliberações que decidem sobre seu destino lhe são recusados. Como nota Spinoza, ela não poderia conhecer nenhuma suspensão: “Ninguém pode ceder sua faculdade de julgar” (Tratado político), e também esta se exerce como pode, nas condições que lhe são dadas, e com a obstinação do desespero quando ainda por cima ela só pensa em sua desgraça. O conspiracionismo não é a psicopatologia de alguns desgarrados, é o sintoma necessário da desapropriação política e do confisco do debate público. Também se trata da maior inaptidão censurar o povo por seus erros de julgamento, quando se organizou tão metodicamente sua privação de qualquer instrumento de pensamento e sua relegação para fora de qualquer atividade de pensamento. Ninguém diz melhor que Spinoza: “Não é de espantar que a plebe não tenha verdade nem julgamento, já que os negócios de Estado são tratados sem que ela fique sabendo, e que ela forme sua opinião com base no pouco que é impossível de dissimular. A suspensão do julgamento é, com efeito, uma virtude rara. Então poder tratar de tudo escondido dos cidadãos e querer que a partir daí eles não teçam um julgamento é o cúmulo da estupidez. Se a plebe pudesse se temperar, suspender seu julgamento sobre o que ela conhece mal e julgar corretamente com base nos poucos elementos de que dispõe, ela seria mais digna de governar do que de ser governada” (Tratado político, VII, 27).
Ainda mais que desapropriação, o conspiracionismo, o qual as elites assinalam como uma irremediável minoria, poderia ser o signo paradoxal de que o povo, na verdade, teve acesso à maioria, já que está cansado de escutar as autoridades com deferência e pretende entender o mundo sem elas. Só lhe falta uma coisa para entrar completamente nisso e extrair daí as armadilhas, como a do conspiracionismo, sobre o qual qualquer debate público é inevitavelmente disperso: o exercício, a prática, o costume… ou seja, tudo o que as instituições da confiscação (representações, mídias, especialistas) recusam a lhe dar e que ele se esforça, no entanto, para conquistar nas margens (associações, educação popular, imprensa alternativa, reuniões públicas etc.) – pois é atuando que se formam as inteligências individuais e coletivas.
O debate sobre a “Lei de 1973”, que supostamente proibiria o financiamento monetário dos déficits públicos, deveria tipicamente ser visto como uma das etapas desse aprendizado, com seu processo característico de tentativa e erro. Claro, a “Lei de 1973”, objeto em algumas regiões da internet de uma atividade efervescente, conheceu sua dose de reviravoltas: desde o vídeo com ambiente de complô de Paul Grignon, Money as Debt, trazendo à luz uma gigantesca conspiração monetária – são os bancos privados que criam a moeda – cujos termos poderiam, no entanto, ser lidos em qualquer manual de economia de colegial (!), até a pesada insistência em renomear a lei, primeiro “Lei Pompidou”, para melhor chegar a “Lei Rothschild”, em que alguns veriam apenas uma alusão às conexões do poder político e da alta finança,4 enquanto outros deixariam correr todo tipo de mal-entendidos…
No meio disso tudo, um princípio de caridade política poderia, no entanto, ver: 1) esse pequeno milagre dos não especialistas apreendendo uma questão evidentemente técnica, mas cujos objetivos políticos a destinam a um debate o menos restrito possível: a moeda, os bancos; 2) o surgimento, talvez desordenado, mas de qualquer forma saudável, de interrogações sobre a legitimidade das taxas de juros, o financiamento dos déficits públicos, as figuras possíveis da soberania monetária, o lugar adequado dos emissores de moeda em uma sociedade democrática; 3) uma intensa atividade polêmica, no melhor sentido do termo, com produção quilométrica de textos, lançamento de sites ou de blogs, controvérsias documentadas em todos os sentidos etc. Tudo isso, sim, no meio de ignorâncias elementares, de algumas derrapagens notórias e de falsas rotas manifestas – alguns dos mais obstinados em denunciar a Lei de 1973 começam a se dar conta de que perseguiram um fantasma… no entanto, como um exercício coletivo de pensamento que vale em si bem mais que todas as suas imperfeições e no qual – todo sarcasmo colocado de lado – seria preciso ver um momento desse processo de aprendizagem típico da entrada na maioria. Sem surpresa, as elites instaladas tiram partido dos tropeços do aprendizado para recusar a própria aprendizagem. Entendemos: isso caminha de mãos dadas precisamente com a desapropriação dos desapropriadores.
Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.