O solo fértil do ódio
O profundo ódio e desigualdade entre as classes, o desprezo pela coletividade, a vigorosa arrogância presente em nossos espaços de convivência, a falta de perspectiva que leva milhões a credos religiosos baseados na extorsão, a absoluta descrença com a política, todos esses fenômenos não foram produzidos apenas nesta eleição ou mesmo nos últimos anos
Em 16 de fevereiro de 2017, recebi um convite da Revista Plural, da pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, para escrever um artigo para um número temático sobre a nova direita do Brasil. A ideia, me disse um dos editores, era que eu contribuísse para o dossiê utilizando algumas das técnicas digitais de extração e análise de dados qualitativos – especialmente de matérias jornalísticas – que eu já vinha pesquisando. Rapidamente percebi que havia entrado em uma enrascada. Em minha tortuosa formação acadêmica, eu nunca havia dedicado muita atenção às disciplinas de ciência política. Como professor de Metodologia, eu conhecia um arsenal de técnicas, métodos e softwares. No entanto, faltavam-me tanto a erudição das teorias políticas como um percurso de análise dos processos eleitorais brasileiros. Diante desse cenário intelectualmente desolador pensei em reescrever para os editores declinando do convite.
Deixei passar alguns dias até que, em 13 de março de 2017, li uma entrevista muito marcante do então deputado federal Jair Bolsonaro na Folha de S.Paulo intitulada “Não é a imprensa ou o Supremo que vai falar o que é limite pra mim”. Fiz uma rápida busca na web e vi que ele tinha um histórico de vitórias eleitorais sempre no estado Rio de Janeiro. Naquela época, eu já havia morado quatro anos e meio na capital daquele estado, tempo suficiente para conhecer e interagir com determinados setores da sociedade carioca que tinham, de fato, simpatia e aderência pelas ideias que o deputado expressava na entrevista.
Pouco tempo depois, após ver um vídeo compartilhado de uma das chegadas do deputado aos gritos de “mito”, eu me perguntei (obviamente que não sem um claro viés): será que o Brasil seria capaz de elegê-lo como presidente? Será que aquela ruidosa multidão sabe quais bandeiras políticas ela está, por tabela, aclamando? Se a vitória chegasse a se concretizar (como, de fato, aconteceu), seria preciso analisarmos o processo histórico de aparecimento não tanto da persona pública Jair Bolsonaro, e sim das ideias políticas que se concretizam em suas declarações. Com isso, resignei-me a escrever o artigo, partindo de uma pergunta simples: que pautas foram defendidas pelo deputado na mídia impressa ao longo de sua carreira política?
Por meio de métodos digitais, obtivemos todas as matérias jornalísticas (de 1987 a 2017) dos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo que mencionavam o então deputado Jair Bolsonaro. Decidimos restringir a análise aos jornais de São Paulo, pois, se incluíssemos os cariocas, o volume de dados seria muito grande para o tempo disponível. Ao longo dos vinte anos de notícias tentamos destacar alguns aspectos.
O primeiro deles dizia respeito às matérias que descreviam acontecimentos inesperados, impactantes ou estapafúrdios associados ao deputado. Desde as primeiras reportagens – que tratavam da implantação de uma bomba – até os dias atuais é possível encontrar uma sucessão de atitudes “explosivas”, declarações insubordinadas e/ou ofensas abertas a ministros, colegas de parlamento e presidentes da República. Tais atos sempre resultaram em uma visibilidade midiática do deputado que, como sugerimos no artigo, poderia estar associada a suas repetidas vitórias eleitorais.
O segundo aspecto diz respeito ao tipo das pautas que foram abertamente defendidas e à frequência histórica com que foram aparecendo nos jornais. Apesar de a defesa dos direitos dos militares ter sido o pontapé inicial da carreira política do deputado, três temas foram muito mais frequentes: o uso da violência como modo resolução de conflitos; a defesa do golpe militar de 1964 e/ou de uma intervenção militar como saída para os problemas do país; e, por fim, matérias que continham críticas e/ou ataques a toda e qualquer política relacionadas aos direitos humanos.
Percebemos que, em relação à defesa do retorno dos militares ao poder, as matérias aumentavam sua frequência em momentos de instabilidade política. Todo e qualquer momento de crise se convertia em uma oportunidade para o deputado fazer declarações no plenário ou aos jornalistas, as quais resultavam em abertura de processos. Por conseguinte, eram publicadas notícias sobre ele ao longo de semanas ou meses. Processo semelhante ocorreu em relação a notícias contra os direitos humanos, sobretudo no que tange às políticas de ação afirmativa e de promoção de direitos LGBT. Quanto maior foi o avanço dessas pautas, mais notícias surgiram com as repercussões das declarações contrárias a essa mesma agenda.
O último aspecto do artigo foi tentar desviar o foco da pessoa do deputado em relação aos processos sociais que deram – e dão – suporte histórico para as pautas políticas noticiadas. O objetivo era acentuar que a violência em todas as suas formas, o desprezo e indiferença em relação aos direitos humanos e, sobretudo, a profunda dificuldade de acertarmos as contas com nosso passado de escravidão e com as torturas e sevícias perpetradas pelo regime militar são aspectos que nos constituem como nação brasileira. Nós tentamos sair, desse modo, da chave interpretativa parcial do problema de um indivíduo em direção à compreensão das complexas relações sociais que produzem aquele mesmo indivíduo. E também para as multidões de leitores e eleitores que votaram nele todos esses anos. Na linguagem das ciências sociais chamamos isso de “sociologizar” o debate.
As famigeradas fake news, o exército de bots do Twitter, o meticulosamente cultivado antipetismo – além, obviamente, do apoio de corporações nacionais e internacionais –, se tomados individualmente, talvez não sejam fatores suficientes para explicar o resultado da eleição do deputado Jair Bolsonaro. Digamos que cada uma dessas “sementes” precisava de um “solo fértil” para poder florescer. Essa fertilidade estaria diretamente ligada à nossa história e à ausência do cultivo de uma memória social coletiva – por meio de marcos, monumentos, museus – que convidem mulheres e homens deste país a refletir sobre aquilo que nos constitui como brasileiros. A surpresa e a perplexidade de como pessoas de nosso convívio e de “conhecida inteligência e ponderação” aderiram a notícias claramente absurdas como “nazismo de esquerda”, “kit gay” e tantas outras que eu não gostaria de reproduzir aqui estão conectadas a processos sociais de longo prazo na sociedade brasileira. O profundo ódio e desigualdade entre as classes, o desprezo pela coletividade e pela res publica, a vigorosa arrogância cotidianamente presente em nossos espaços de convivência, a falta de perspectiva que leva milhões de brasileiros a credos religiosos baseados na extorsão econômica, a absoluta descrença com a política, todos esses fenômenos não foram produzidos apenas nesta eleição ou mesmo nos últimos cinco, dez, vinte ou trinta anos. Eles são o resultado de um lento, vigoroso e repetitivo processo histórico.
Sendo assim, o elo curioso e perverso entre determinadas agendas políticas e declarações polêmicas e a visibilidade midiática do deputado não é um fenômeno que pode ser devidamente compreendidos a curto prazo. O historiador Roger Chartier afirmou certa vez que “os acontecimentos são explosivos, ruidosos. Eles fazem tanta fumaça que enchem a consciência dos contemporâneos”. Ele queria alertar que analisar as coisas “na medida em que elas acontecem” geralmente implica perder a longa cadeia de eventos de que elas fariam parte. Ou seja, seremos capazes de adquirir uma compreensão mais adequada desta eleição na medida em que fizermos o esforço de enxergá-las em um longo processo, sobre o qual, eu acredito, precisamos urgentemente refletir.
*Leonardo Fernandes Nascimento é sociólogo e professor da Universidade Federal da Bahia.