O sonho acabou
Com dois terços do PIB vinculados a mercados internacionais, a Coreia do Sul foi um dos países mais atingidos pela tormenta econômica mundial. A crise abalou um país cuja sociedade estava fragilizada e o governo, que baseava sua política no modelo neoliberal, desacreditado
Quando Lee Myung-bak, o presidente de centro-direita, chegou ao poder em fevereiro de 2008, tinha prometido uma “Coreia globalizada” com US$ 40 mil de rendimentos anuais por habitante.
Só não sabia que, doze meses mais tarde, seu país seria um dos mais atingidos pela crise do neoliberalismo, no qual ele baseava sua política. Também não sabia que sua firmeza em relação à Coreia do Norte provocaria uma das mais graves tensões da última década entre os dois Estados – ao ponto de Seul correr o risco de ficar marginalizada nas negociações sobre a desnuclearização do regime de Pyongyang, que afinal se deram com a participação da China, duas Coreias, Estados Unidos, Japão e Rússia.
O lançamento de um satélite ou de um míssil de longo alcance pela República Popular Democrática da Coreia (RPDC), em 5 de abril de 2009, foi recebido calmamente no Sul, onde a população está acostumada, há meio século, aos insultos e ameaças dos dirigentes do Norte.
Após semanas de agitação militar, pontuada por anúncios de uma possível interceptação do míssil em pleno voo, o governo voltou a adotar uma posição mais moderada, depois que Washington decidiu não reagir militarmente a esse lançamento. Seul, todavia, se posicionou à frente dos países que exigem “sanções firmes” do Conselho de Segurança da ONU por esse “duro golpe” à estabilidade da Ásia Oriental.
Preocupado em se diferenciar dos seus predecessores de centro-esquerda, muito conciliadores para seu gosto, Lee inaugurou sua presidência suspendendo os auxílios à Pyongyang, enquanto o regime não fizer concessões. No final de 2008 a Coreia do Norte retaliou, anunciando que os acordos de não agressão entre os dois países tinham, daquele momento em diante, caído por terra.
O governo de Lee adotou com relação Pyongyang uma posição intransigente, assim como o fizeram as autoridades japonesas. Se, passado o clamor de protesto internacional, os Estados Unidos começarem – como é provável – um diálogo direto com o governo da RDPC, a Coreia do Sul “não terá outra saída senão cooperar com Washington, mas corre o risco de ser rejeitada pelo Norte”, estima Paik Hak-soon, do Instituto de Pesquisa Sejong, em Seul.
A questão norte-coreana não é, no entanto, a preocupação maior dos coreanos, que não se sentem diretamente ameaçados. A deterioração da situação econômica é mais inquietante.
O risco de as crises econômica e social se unificarem em uma só é muito mais grave, uma vez que dois terços do produto interno bruto (PIB) dependem dos mercados externos. O governo está consciente disso: decidiu em março por um orçamento no valor de 29 trilhões de wons (15 bilhões de euros) destinado a criar empregos e ajudar os mais desfavorecidos.
A crise social poderia ser ainda mais severa do que aquela provocada pela tempestade financeira asiática de 1997-98, que, ao menos, estava localizada. A Coreia do Sul podia então contar com os mercados americanos e europeus para se recuperar – o que foi feito, mesmo se tenha levado um pouco de tempo.
Hoje, face à crise mundial, não importa quais sejam os esforços dos coreanos, a recuperação depende da situação internacional. Em outras palavras, se a sociedade sul-coreana era mais homogênea há onze anos, hoje o hiato aumentou entre aqueles que “se viram” e os outros, salienta o sociólogo Kim Yong-hak. E os institutos de pesquisas adiantam que 150 mil empregos podem ser encerrados até o fim do primeiro semestre.
Sociedade fragmentada, Assembleia Nacional com partidos políticos que não dialogam mais com a sociedade, chefe de Estado impopular. A calma é precária.
Apesar da redução de salários e de horas extras para manter os empregos, de uma diminuição da entrada de profissionais diplomados no mercado de trabalho – desmotivados por uma baixa de 10% a 20% no salário do primeiro emprego (eles preferem prolongar os estudos), o país está sendo sugado para dentro de uma espiral dolorosa.
O poder não tem mais a confiança da população. Apesar de existir uma certa solidariedade frente às dificuldades, as clivagens ideológicas se radicalizam. Um sinal perturbante: aquele que critica o governo é logo chamado de “vermelho”.
Lee ficará para a história da jovem democracia sul-coreana como o chefe de Estado que teve a mais breve lua-de-mel com a opinião pública. Com a queda de 20% três meses depois de sua eleição, sua popularidade está hoje em torno de 30%.
Sua política rapidamente revelou-se inoportuna: ele pregava o isolamento em relação à Coreia do Norte no momento em que a administração Bush passava da hostilidade ao compromisso. Defendia o neoliberalismo puro e duro, cuja derrocada de Wall Street iria mostrar os excessos. De agora em diante, ele deve recorrer às receitas keynesianas para tentar frear as repercussões da crise.
Atingida em cheio pela crise, a Coreia do Sul, que entrou no clube dos países desenvolvidos no fim dos anos 1990, retoma uma situação ancestral da penúria, reaprendendo a viver com privações e a ajuda mútua. Nesse país obcecado pelo sucesso, a pobreza é vivida como uma indignidade, se esconde nos parques ou passagens subterrâneas.
A crise não tem ainda o efeito dramático de 1998 (pânico, venda de ouro, suicídios). Todavia, esse ano será difícil para as categorias desfavorecidas: trabalhadores com contrato de duração determinada (metade dos assalariados), pequenas e médias empresas.
“O governo aproveita a situação para cortar os direitos dos trabalhadores irregulares, fazendo passar de dois a três anos o período no qual o empregador é obrigado a contratar”, se insurge Jin Young-ok, ex-vice presidente da Confederação dos Sindicatos Coreanos (KCTU), a organização mais militante, que conta com 800 mil associados.
Afetada desde janeiro por um caso de assédio sexual envolvendo seu presidente e que a direção tentou esconder, a KCTU não está, no momento, na melhor posição para dirigir as grandes negociações anuais com os diretores de empresas sobre salários e emprego, que iniciaram no fim de abril.
Por enquanto, os coreanos trabalham duro, com ainda mais disciplina, mas um novo surto de “democracia do cidadão” não deve ser excluído.
Nenhum dos grandes grupos políticos parece de fato capaz de assegurar as necessidades da sociedade civil. Após décadas de ditaduras militares sustentadas pelos Estados Unidos, a Coreia do Sul começou, em junho de 1987, pressionada pelas ruas, uma democratização que se consolida uma década mais tarde com a chegada ao poder da grande figura da dissidência, Kim Dae-jung.
A virada para a direita representada pela eleição de Lee, em dezembro 2007, não significou um questionamento dos avanços democráticos. O novo presidente foi eleito por um centro aumentado, reunindo moderados e os decepcionados com a centro-esquerda, dentre eles uma parte dos trabalhadores, motivados pela esperança de que a aceleração do crescimento lhes beneficiaria mais que as anunciadas políticas de redistribuição.
A severa derrota do partido de centro-esquerda nas eleições já refletia as preocupações da opinião pública com a precariedade do emprego, dificuldades de inserção dos jovens, disparada de preços no setor imobiliário. Ela trazia também um pessimismo excessivo com relação aos indicadores econômicos, que na época eram globalmente positivos. A expansão da China, com sua taxa de crescimento de dois algarismos, dava a impressão ao coreanos, que tinham conhecido um desenvolvimento comparável no passado, que tudo ia mal.
Decepcionados por uma “social-democracia” que não cumpriu suas promessas, muitos se deixaram seduzir pelo neoliberalismo do petulante Lee Myung-bak, homem de negócios que se tornou prefeito de Seul. Eles votaram num homem que atraía a esperança dos conservadores, assim como a dos jovens, proclamando que o que era bom para os conglomerados industriais – os chaebol – era bom para o país.
Promessas não cumpridas
A nova equipe dirigente não foi capaz de implementar os objetivos, tão irreais quanto vagos, do “Programa 747” do presidente, que prometia 7% de crescimento anual, 40 mil dólares de rendimento anual por habitante e o sétimo lugar no ranking da economia mundial. Isto contra os 24 mil dólares atuais e a posição de décima terceira economia mundial. O que acabou revoltando a opinião pública.
A crise iniciada no final de abril de 2008 – pela retomada das importações de carne americana – durou semanas e gerou manifestações de até cem mil pessoas em Seul, transformando a irritação em oposição.
Essa “revolta” da opinião pública tomou de surpresa o governo e desnorteou os analistas estrangeiros, que viram nesse ato uma reação xenófoba.
Na realidade, a importação de carne americana – destinada a facilitar a ratificação, pelos Estados Unidos, do acordo de livre-comércio com a Coreia do Sul – cristalizou descontentamentos diversos.
Aqueles que se preocupavam com a segurança alimentar se uniram aos estudantes que se opunham a uma reforma do ensino, aos budistas que se julgavam discriminados por um presidente pertencente a uma seita protestante militante, e enfim os sindicatos. Um antiamericanismo latente, preço da dependência estratégica do país, não estava ausente dessa coalizão, inicialmente pacífica.
Enquanto esse sentimento de oposição se propagava, o movimento se radicalizou e gerou confrontos com a polícia anti-motim. Contrariamente aos contestadores das gerações precedentes, que vinham armados de coquetéis Molotov, os manifestantes marchavam com velas nas mãos.
A repressão policial, o cansaço dos cidadãos e as desculpas do presidente, que humildemente se dispôs a respeitar mais a opinião pública, enfraqueceram o movimento.
A imagem dinâmica de Lee, apelidado de o “Trator”, não impediu seu fracasso. “Ironicamente, o mérito de Lee Myung-bak é o de ter reavivado a contestação”, estima Gavan McCormak, historiador especializado em história da Ásia Oriental na Universidade Nacional da Austrália.
A capacidade de mobilização de uma democracia direta, cujos movimentos se fazem e se desfazem via internet, constitui uma das características da vida pública sul-coreana. Os netzen (cidadãos da internet) supervisionam o sistema econômico e denunciam na web os desvios.
Contrapoder na internet
Essas novas expressões de cidadania1, menos ideológicas e mais emocionais que as da “geração democracia” (dos anos 1960-1980), inquietam e atrapalham o governo. Eles não são violentos, mas são mais difíceis de conter em nome da manutenção da ordem. Por isso, o poder pretende controlar a rede através de uma lei sobre a cyber-difamação. Esse projeto é denunciado como uma violação da liberdade de expressão por OhMynews, um dos grandes portais de informação. Enquanto as grandes mídias são pró-governamentais; os portais são, na verdade, para muitos entre eles, um espaço de contrapoder.
A democratização da sociedade sul-coreana foi mais rápida do que a evolução da sua classe política, que se posiciona mais em função de filiações regionais do que de uma clivagem direita-esquerda.
Os alinhamentos deram origem a um oportunismo que acabou cansando a opinião pública, como testemunha o decréscimo da taxa de participação nas eleições legislativas de abril de 2008, a mais fraca da história coreana: 46%.
O escrutínio confirmou a ampliação do fosso entre os eleitos e a sociedade, assim como a virada para a direita do país (o Grande Partido Nacional, GPN, ganhou 153 assentos de 299, e a União democrática regrediu de 136 para 81).
Nos anos 1960-1980, o movimento estudantil foi a força viva da luta contra as ditaduras. Em seguida, o mundo dos trabalhadores e os movimentos dos cidadãos tomaram seu lugar na contestação. Mas, de agora em diante, muitos jovens coreanos que cresceram numa sociedade democrática e próspera, estão mais ligados ao progresso material do que aos valores tradicionais (sacrifício e solidariedade) e mesmo aos ideais progressistas de seus pais.
“Com o crescimento, os coreanos perderam sua motivação para lutar em favor da democracia”, estima Lee Soho, que presidiu o KCTU depois de ter fundado o sindicato dos professores.
Com exceção de uma minoria politizada, a jovem geração não questiona mais o sistema capitalista, nem o poder do dinheiro, mesmo que brutal. Para se contrapor à direita “não há nenhuma força alternativa com credibilidade. Os jovens são mais individualistas, menos solidários, estão decepcionados com a política tal como ela é praticada, mas não acho que sejam despolitizados”, considera Lee Soho. Sua participação na vida política leva frequentemente a ações súbitas, mas que podem se fundir em um movimento maior, como foi o caso da crise da carne americana. Enquanto a mudança para a direita de Lee Myung-bak se estagnou tanto econômica quanto politicamente, essa democracia direta pode ainda reservar surpresas.
*Philippe Pons é jornalista, autor particularmente de Misère et crime au Japon, du XVII e siècle à nos jours, 1999, e D’Edo à Tokyo, 1998, ambos pela Gallimard, Paris.