O Supremo de hoje é produto da nossa história
Nos últimos anos o Supremo Tribunal Federal, a mais alta instancia da Justiça, passou por várias reformas mas não deixou de ter características que remetem ao passado, como o personalismo de seus integrantes e a falta de trabalho em equipe. Produzir decisões coletivamente, essa é a reforma que tem que ser feitaEntrevista com Eros Grau
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Quanto tempo você passou no Supremo Tribunal Federal?
EROS GRAU – Seis anos. Exatamente seis anos e um mês.
DIPLOMATIQUE – Que balanço que você faz dessa sua passagem pelo Supremo?
EROS GRAU – Eu acho que, de certa forma, foi pagar uma dívida com a sociedade e com meu pai, que foi um cara espetacular, maravilhoso. Eu não diria que foi um sacrifício, mas foi um período sacrificado. Menos pela quantidade de trabalho, que é realmente muito grande; mais pela qualidade do trabalho, são decisões que vão determinar a vida das pessoas. Chega a ser tormentoso. É porque você tem de decidir, necessariamente, no quadro do Direito, que nem sempre coincide com o que você gostaria de decidir. Foi uma grande experiência. Você tem o discurso do Direito, que é aquele que o juiz pronuncia, e você tem o discurso sobre o Direito. Eu, durante seis anos, pronunciei o discurso do Direito.
DIPLOMATIQUE – Como é que você viu a instituição do Supremo?
EROS GRAU – O Supremo de hoje é produto da nossa história, da história do Brasil, ele vai evoluindo… eu tenho insistido em dizer que o Direito é um pedaço da realidade. Não adianta você querer separar. Eu acho que o Supremo teve grandes momentos, a sociedade brasileira já teve grandes momentos, embora eu saiba que nada será como antes, como diz aquela canção. Mas nós vivemos altos e baixos e as nossas instituições tiveram altos e baixos.
Um ponto baixo foi a atuação com relação ao Ficha Limpa. Se você deixar a sociedade ser levada pela emoção, ela lincha, ela arrebenta, tudo isso. O Supremo tem que atuar com prudência, quer dizer, evitar o desvario. E o que o Supremo fez no caso do Ficha Limpa? Foi exatamente partir para o desvario, jogar na lata do lixo as garantias individuais da regra da presunção da inocência até prova em contrário. O Supremo não é parte de um governo, ele é parte do Estado. Isso é muito importante, e tem muita gente que está lá dentro que pensa que o Supremo faz parte de um governo. O Supremo deve atender às razões de Estado.
No Brasil existe o controle da constitucionalidade difusa, quer dizer, qualquer juiz pode apreciar se uma lei é constitucional ou não. Acontece que hoje os juízes, e o Supremo também, estão fazendo, além do controle da constitucionalidade, o controle da razoabilidade das leis. O juiz se acha no direito de dizer “essa lei não é razoável”. O que prevalece é a opinião dele, e não a lei. O [sociólogo alemão Jürgen] Habermas disse que o grande risco é você ter uma corte que decida segundo valores, porque valores são preferências. É aquele negócio: “Eu adoto esse valor, você adota aquele; o que não é o meu valor, é o antivalor”.
DIPLOMATIQUE – Você acompanhou aquela menina que “twittou” que os nordestinos deveriam ser afogados e casou a maior celeuma? Isso não demonstra intolerância e vai construindo um tipo de racionalidade que é antidemocrática, antirrepublicana?
EROS GRAU – Sim, é antidemocrático e antirrepublicano. Perde-se a referência do direito positivo e aí vai tudo para o espaço porque teremos um Judiciário que começa a legislar.
Essa tendência não aconteceu por acaso. Nos anos 1980, apareceu um inglês chamado Ronald Dworkin, que escreveu um livro sobre princípios, cujo título era Taking rights seriously (Levando os direitos a sério). Por ter escrito em inglês, essa sua visão se multiplicou. Na Alemanha começaram a surgir textos e o [filósofo do Direto contemporâneo alemão] Robert Alexy que trouxe a história da ponderação de princípios. O que se afirmava, basicamente, é que há uma diferença entre regra e princípio, e quando uma regra se opõe a outra, uma exclui a outra para sempre. E nos princípios não. Eles são afastados num caso, e não em outro. E daí se pondera. Assim, pode ser que em um determinado momento você tenha o princípio da liberdade de imprensa e, em outro, o interesse público. Aí você toma a decisão sobre qual dos dois vai privilegiar. Isso deu origem à subjetividade da ponderação de princípios. Isso é muito grave porque é o caso de você perguntar: “Como é que os juízes decidiam antes, quando ninguém falava disso?”. E os juízes sempre decidiram. Eles sempre interpretaram e sem instrumentalizar nada.
Eu diria que o Supremo passou por uma grande transformação nesse período em que eu estava lá. Entre outras coisas, promoveu uma reforma. O que é que se decidiu nessa reforma?
A súmula vinculante
Quando houvesse uma sequência de decisões no mesmo sentido, o tribunal faria uma súmula que orientaria o julgamento de processos similares em instancias inferiores da Justiça. A súmula vinculante é uma norma que se transforma em texto e que, portanto, vai passar por um novo processo de interpretação. Agora, quem interpreta o texto é a realidade. Aí está a questão.
Eu vou dar um exemplo que é marcante. O código penal é do início da década de 40. Ele diz que é crime o atentado ao pudor público. Imagina que, em 1945, uma mulher fosse à praia ou à piscina de maiô de duas peças, cavado. Ela, provavelmente, seria interpelada pelo delegado da polícia, pelo Ministério Público. O texto não mudou, mas se você imaginar hoje uma mulher que vá à praia ou à piscina de topless, ela passa e ninguém incomoda. O texto é o mesmo, mas a norma é outra. Se você transforma a súmula vinculante em texto, ela vai ser adaptada à realidade. E ela não vai nem envelhecer, nem permanecer jovem porque ela será contemporânea à própria realidade. Então, a súmula vinculante, para mim, é um texto novo como diariamente você pode ter leis novas. Não é grave.
DIPLOMATIQUE – O Allen Ginsberg escreveu um livro, Howl, que foi considerado obsceno, pornográfico e irreverente. E num filme sobre a vida dele há um julgamento e o advogado de acusação diz que esse livro é impróprio para as futuras gerações, que não deveriam tomar conhecimento daquilo. E ele está sendo julgado. E então são chamados professores de Literatura das universidades para dar pareceres sobre o livro, e é exatamente isso que você está falando. Como se pode julgar alguém pelos valores do outro?
EROS GRAU – Exatamente. Você está substituindo as normas pelos valores.
Infelizmente, isso que eu vou dizer agora o Fernando Pessoa já dizia antes. Dois ou três anos depois que eu morrer, durante duas vezes por ano, vão pensar em mim. E de vez em quando, talvez, alguém suspire por mim. Por 20 anos, a família vai pensar. E acabou. Então eu sei da minha absoluta falta de importância. O que eu vou dizer agora, portanto, não é arrogância. Eu fui o primeiro que escreveu sobre princípios aqui, quando eu fiz a tese para ser professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). E isso foi um grande mal, porque dei para o juiz um instrumento com que ele justifica o que quiser. Ele toma a decisão e depois vai construí-la com base na flexibilidade, na razoabilidade. Quando eu cheguei ao Supremo Tribunal Federal (STF) diziam: “Aí veio um marxista revolucionário, um ‘comuna’”. E eu saí de lá sendo considerado o maior positivista. Porque eu descobri que a legalidade é o último instrumento de defesa das classes oprimidas. Essa é uma coisa burguesa. É uma liberdade burguesa que tem que se preservar. Porque se eu não preservar a legalidade, a classe operária está “frita”.
Quando relatei o caso do Daniel Dantas, havia um assessor meu que era próximo a mim e estava, à época, fazendo concurso para juiz. Ninguém tinha visto meu voto ainda e, quando eu terminei, mandei um e-mail para esse meu assessor e perguntei “que tal?”. E ele me respondeu: “Que voto lindo, pena que tenha sido para esse réu”. E aí eu respondi para ele perguntando: “Você está fazendo concurso para juiz ou para justiceiro?”. É exatamente isso. O sistema jurídico é efetivamente antipático e há grandes advogados que articulam as razões. E aí você aparentemente chega à questão da impunidade. Por quê? Porque esse Direito que está aí é para isso mesmo. E ele é extremamente bem jogado, bem urdido. É tudo legal. E a legalidade serve para o bem e para o mal. Ou seja, esse Direito é extremamente coerente com o modo de produção social. Ele reforça o processo de dominação.
Repercussão geral
O que é o recurso extraordinário? Você tem uma decisão de um tribunal e você questiona essa decisão dizendo que ela feriu a Constituição. Eu entro com um recurso extraordinário no qual eu vou discutir a constitucionalidade daquela decisão.
Havia milhares de recursos extraordinários. Como impedir essa repetição? A reforma vem e diz que para o recurso ser apreciado, o caso tem que ter repercussão geral. Então, hoje, quando você entra com um recurso extraordinário, você tem que começar o recurso dizendo que a matéria tem repercussão geral de grande importância. E o tribunal tem de decidir se a matéria tem repercussão geral. Se não tiver, o recurso não é apreciado. Se tiver, o recurso é apreciado. E a decisão serve para todos os outros recursos semelhantes que ficam parados no tribunal lá embaixo. O Supremo decide aquele caso e esta decisão vai ser aplicada a todos os outros.
A grande questão é a seguinte: é que cada caso é um caso. Temos que analisar cada caso. Eu temo que esses procedimentos simplificadores impliquem na negação da tramitação constitucional. O que é a tramitação constitucional? É a apreciação do tribunal. Isso vai reduzir, e reduziu já brutalmente, o número de recursos extraordinários, mas pode levar a uma paralisação da Justiça, pois a única maneira de você manter esse dinamismo, manter vivo esse corpo, é apreciar caso a caso.
DIPLOMATIQUE – Quais as mudanças que você consideraria importante fazer no Supremo?
EROS GRAU – O Supremo não é uma instituição de 11 homens, é um conjunto de 11 homens que tomam decisões isoladas, não um tribunal. Produzir decisões coletivamente, essa é a reforma que tem que ser feita. O que tem que existir é a instituição e não 11 homens. Tem que encontrar uma maneira para essas pessoas se relacionarem de modo a compor uma decisão e não 11 decisões. Só haverá uma instituição na medida em que ela, instituição, tome decisões. O que acontece é que hoje você não tem a instituição, você tem 11 juízes tomando decisões isoladas.
Na minha experiência, no tribunal brasileiro há questões sérias, os membros não discutem entre si antes do julgamento, como acontece em todo o mundo. Nos Estados Unidos se reúnem e dizem: eu vou votar nesse sentido, eu vou votar nesse outro, vamos debater. Mas não acontece isso por aqui, o debate virou um debate midiático por alguma razão que eu não sei explicar. Eu vi mais de uma vez comentários durante a sessão, eventualmente um ministro dizer para o outro, “calma ministro, está claro, o senhor já foi claro”. E o sujeito deixar escapar, “mas eu estou falando para o outro público”. Então, o que é que acontece? O juiz começa a falar para a mídia e o discurso do Direito é um discurso diferente do discurso midiático. O tribunal tem que ser um conjunto, e não 11 vozes falando para a televisão.
Eu diria que uma mudança importante seria recuperar a discrição nos processos de julgamentos. Toda a decisão jurídica é terrível, porque ela tem a capacidade de se meter na vida dos outros, de determinar a vida dos outros. E eu também quero ter a intimidade suficiente para tomar as minhas decisões, sobretudo em processos de decisões tão importantes, sem pressão da mídia, por exemplo; nossos julgamentos não podem ser televisionados.
Outra questão é o processo de escolha dos juízes pelo presidente da República A noção de notório saber é complicada. Eu conheço alguns juristas monumentais, juízes do Supremo, que nunca fizeram propaganda de si mesmos, nunca estiveram na ordem do dia. Quer dizer, eles não têm notório saber, eles têm saber. Notório saber e reputação ilibada. Sabe o que é criticável? Lá não tem notório saber. Eu acho que tem reputação ilibada. Mas nem todos têm notório saber.
Vamos começar pelo Legislativo. Tem Tiriricas, tem muita gente safada. Eticamente é muito complicado. Enquanto Legislativo, nós não somos melhores do que nós podemos ser. Eu diria que o poder judiciário também é o que nós somos.
Eu não sou capaz de avaliar a atuação do Judiciário em geral. O meu parecer, ainda que eu tenha várias críticas, é de que é um lugar de gente correta. É claro que outra coisa é o tema da preparação. Eu não sei até que ponto teria sentido levar para um supremo posto gente saída da magistratura. Eu já vi gente saindo da magistratura sem embocadura para ser ministro do Supremo, e já vi gente sair da advocacia com embocadura para ministro do Supremo. Eu acho que não é por aí… Mas no processo de escolha é muito importante mudar as regras. Por que eu não sei como botar as regras? Porque nós estamos diante de critérios desconhecidos. Precisamos de uma indicação que passasse por um processo democrático. Para que esse processo pudesse ser democrático mesmo, teria que ter uma regra básica: quem faz campanha está fora da possibilidade de ser indicado. Exigências como notório saber e reputação ilibada é o mesmo que dizer para o presidente da República: “Faça o que você quiser”. O quadro hoje é o seguinte: tem um cara espetacular, o presidente da República está maravilhado com a simpatia dele, é meu amigo etc. e tal. É mais ou menos como se a gente tivesse combinado se encontrar aqui hoje para ver quem a gente vai convidar para passar o fim de semana na sua casa ou na minha. O presidente da República, antes de indicar, poderia ouvir a Universidade, a Ordem dos Advogados. O processo de escolha nos Estados Unidos é muito semelhante a este aqui, só que lá há o controle.
DIPLOMATIQUE – E quem controla?
EROS GRAU – Quem controla é o Senado. Faz uma sabatina e depois uma votação. Mas não é quem controla o funcionamento. Ninguém controla. Nem deveria ter quem controla. Só na escolha deveria ter controle.
Se você mudar materialmente o processo de escolha, já será ótimo. O Supremo dos anos 1920 é diferente do Supremo dos anos 1940, e assim por diante. É diferente. Quem era de notório saber nos anos 1960? Quem é de notório saber hoje? Está compreendendo o que eu quero dizer? É preciso mudar o processo, alterar os critérios materiais. Vai continuar a ser o presidente da República que indica, vai continuar a haver a sabatina e a análise do Senado? Quanto às campanhas para se tornar juiz do Supremo, é um verdadeiro absurdo dizer que o sujeito está fazendo campanha; quem faz campanha para ir para o Supremo não pode ir para o Supremo.
Bom, pensando mudanças, o primeiro ponto é esse, a discrição; segundo ponto: uma alteração material do processo de escolha do juiz; terceiro: acho que é necessário fazer uma revisão da repercussão geral.
Talvez se possa transformar o Supremo Tribunal numa corte que só julgue matéria constitucional. O Supremo Tribunal Federal é hoje um tribunal criminal, com matéria criminal, e eu acho esse papel muito importante. Acho difícil acabar com a competência criminal do Supremo Tribunal Federal, mas se tivesse um processo de escolha materialmente bem informado para outro tribunal que cuidasse só da parte penal, talvez se pudesse caminhar por aí.