O Teto de Gastos, Indiana Jones e a Arca do Tesouro
Amparado nas certezas dos modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral, o Indiana Jones do mercado vai à caça da Arca Perdida, certamente enterrada em algum escaninho abaixo do Teto de Gastos, sob o olhar vigilante do guardião Paulo Guedes. Novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
Vejo e ouço as sabedorias da turma da Globonews e da CNN a ruminar as perplexidades com o pagamento dos precatórios. O espanto dos sábios da telinha foi provocado pela dificuldade de o governo Bolsonaro encontrar os recursos necessários para financiar a Renda Brasil prometida por Paulo Guedes.
Nas falas de uns e nas conjeturas de outros está homiziado o Teto de Gastos, em sua inexpugnável, mas sempre ameaçada, solidez. Uma vez trincada a cobertura, dizem eles, a economia se precipitaria nos abismos da hiperinflação e da desgraça dos pobres e paupérrimos.
Quando aponto os controles para os dois canais de notícias fico empolgado, na esperança de fruir os ensinamentos do “nosso timaço de comentaristas”, solenemente anunciados pelas âncoras ou pelos âncoras da variada programação. Isso para não falar do deleite em observar o desfile de elegância protagonizado por senhoras e senhores da notícia.
Devo admitir: quando ouço perplexidades travestidas em expressões do tipo “não sei de onde vão tirar o dinheiro”, sou tomado pela tentação de invadir o terreno da ficção econômica. Sugiro aos simpáticos jornalistas pedir emprestado a Steven Spilberg o uniforme do Indiana Jones e estimular um ilustre economista de mercado a vestir a fatiota de Indiana Jones, além de instigar no Farialimer o destemor de Harrison Ford em seu enfrentamento com múmias e demônios.
Há que cuidar da escolha da companheira de proezas de Indiana. Dúvidas não me acodem sobre o acerto de se recrutar a heroína entre as simpáticas e elegantes comentaristas da CNN, também devotas fiéis dos “especialistas do mercado”.
Assim paramentado e acompanhado, o sábio da Crematística vai se sentir em condições de resolver a encrenca da falta de dinheiro. Amparado nas certezas dos modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral, o Indiana Jones do mercado vai à caça da Arca Perdida, certamente enterrada em algum escaninho abaixo do Teto de Gastos, sob o olhar vigilante do guardião Paulo Guedes.
Uma vez encontrada a Arca da Fortuna, é só mandar brasa no gasto com o dinheiro redescoberto. Imagino que Arquimedes cederia de bom grado a expressão Eureka! à proeza de tal calibre e impetuosa criatividade. Tira a dinheirama metálica da Arca Perdida e paga, indistintamente, pobres e paupérrimos com moedas de ouro.
No auge da Grande Depressão dos anos 1930, o sistema monetário-financeiro do padrão-ouro em colapso, Ludwig von Mises, economista da confraria austríaca recomendou a defesa das reservas metálicas. Isso com mais de 25% de desemprego nos Estados Unidos e mais de 30% na Alemanha. Dizia que isso iria garantir que ricos e pobres vivessem em uma economia saudável.
Nesse momento de penúria e sofrimento não foram poucos os que invocaram O Livro do Eclesiástico, versículo 31, 5, para demonizar a moeda que os economistas austríacos consideravam verdadeira: “Aquele que ama o ouro dificilmente escapa do pecado”. Na Eneida, o poeta Virgílio, em versos contundentes proclamou “A que não obrigas os corações humanos, ó execranda fome do ouro!”
John Maynard Keynes não deixou barato e escreveu uma diatribe contra o padrão-ouro intitulado Auri Sacra Fames, a Execranda Fome do Ouro. Não faltou, no Brasil Varonil, quem traduzisse o verso de Virgílio como “A Sagrada Fome do Ouro”. Devemos admitir que os esgares e piripaques dos mercados e de seus economistas diante das ameaças de violação do Teto permitem compreender a troca semântica: sai Execranda entra Sagrada.
Tantas e tais foram as imprecações contra o padrão ouro que, agarrado à sua natureza inquieta e criativa, o capitalismo libertou-se dos incômodos e inconveniências das amarras auríferas. Assim, sistemas monetários modernos ultrapassaram as limitações impostas pela consubstanciação das funções monetárias em uma mercadoria particular (caso do ouro ou dos sistemas monetários que prevaleceram até o início do século XX).
Hoje esses sistemas são fundados exclusivamente na confiança e não em automatismos relacionados a uma imaginária escassez do metal ou ao caráter “natural” da moeda- mercadoria. “E o lastro?”, perguntam os saudosos do padrão-ouro. Ah sim, a âncora, retrucam os contemporâneos. Diria Hegel que a moeda realiza o seu conceito: é uma instituição social ancorada nas areias movediças da confiança. Fiducia, Credere.
Em um Boletim de 2014, “Money Creation in the Modern Economy”, o Banco da Inglaterra ensina que nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, o meio de pagamento dominante. A criação monetária depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada.
O dinheiro ingressa na circulação com a benção do Estado, o cobrador de impostos, e a unção das relações de propriedade, isto é, decorre das relações estabelecidas entre credores e devedores, mediante a cobrança de uma taxa de juros. No circuito da renda monetária, os gastos privados e públicos precedem a coleta de impostos. As razões são óbvias. Não há como recolher impostos, se a renda não circula.
O banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não servir a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente. A política monetária do Estado é incumbida, em cada momento do ciclo de crédito, de estabelecer as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Faz isso mediante a taxa de juros que remunera as reservas bancárias.
No livro First Responders, organizado por Ben Bernanke, Henry Paulson e Timothy Geithner, assessores do Federal Reserve e do Tesouro registram as características dos mercados contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma fundamental nas décadas que antecederam à crise de 2008: mais crédito e precificação de risco foram intermediados nos mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não bancárias. Muitas dessas instituições dependem de financiamento de curto prazo nos mercados monetários atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis; assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio do mercado”.
Nos tempos de “normalidade”, esses mercados financeiros ocupam-se de diversificar a riqueza de cada grupo, empresa ou indivíduo, distribuí-la por vários ativos na esperança de assegurar o máximo de ganhos patrimoniais. Os agentes dessas operações, bancos e demais instituições não bancárias, procuram antecipar provimentos de preços e administrar os instrumentos de hedge e os riscos de contraparte.
Em um clima de convenções “otimistas”, bancos e demais instituições financeiras cuidam de antecipar o “estado de confiança” e estimar as condições de liquidez dos mercados, em conformidade com a evolução dos balanços de empresas, famílias, governos e países.
Sim, países, porque, na era da finança global, a integração dos mercados submeteu o processo de “precificação” dos ativos privados e públicos denominados em moedas distintas às antecipações acerca dos rendimentos dos ativos “de última instância”, líquidos e seguros, emitidos pelo Estado gestor da moeda-reserva. Esses títulos são o fundamento do sistema de criação de moeda fiduciária à escala global, o último refúgio da confiança. Há, portanto, uma hierarquia de moedas – conversíveis e não conversíveis – que denominam ativos de “última instância” em cada jurisdição monetária.
A crise financeira de 2008 ofereceu a oportunidade de se examinar a resposta da política econômica à desorganização e ao pânico dos mercados. O Quantitative Easing (QE) trouxe à tona o que se movia nos subterrâneos: a articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação financeira-produtiva das empresas e a gestão monetária do Estado.
O QE ressaltou, ademais, a importância da expansão da dívida pública para o saneamento e recuperação dos balanços das instituições financeiras. Salvos da desvalorização dos ativos podres que carregavam e agora empanturram o balanço dos bancos centrais, os bancos privados e outros intermediários financeiros garantiram a qualidade de suas carteiras e salvaguardaram seus patrimônios, carregando títulos públicos com rendimentos reduzidos, mas valor assegurado. Os títulos dos tesouros com rendimentos pífios não cessavam de atrair a volúpia dos investidores apavorados.
Seria interessante observar as relações entre a dívida pública e a dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias se expande nos períodos de crescimento e “confiança”. A dívida pública se expande nos períodos de depressão e recessão. O Gráfico abaixo ilustra as relações entre endividamento público e privado, desde os anos 1870 até 2010. Os dois picos protuberantes do endividamento público refletem as finanças durante as duas guerras mundiais.
Os bancos, sob a supervisão dos bancos centrais, emprestam às empresas e às famílias. As instituições financeiras não bancárias emitem títulos que, abrigados nos portfólios, próprios e de outras instituições, amparam as “poupanças” das empresas e das famílias, poupanças acumuladas ao longo dos sucessivos circuitos de gasto-emprego-renda. Títulos públicos e privados são emitidos nos mercados primários, abrigados nos portfólios das instituições e negociados nos mercados secundários. Nos bons tempos, a precificação dos ativos gerados no processo de endividamento define uma curva de juros ascendente conforme a duration.
Na pandemia econômica, os nexos monetários foram rompidos e os proprietários privados, aí incluídos os proprietários da força de trabalho, foram excluídos do circuito da renda. A propriedade perdeu sua função crucial de legitimar a apropriação da renda e a valorização da riqueza. O mercado vira uma mixórdia: não é capaz de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto risco. Trata-se do fenômeno da indiferenciação. A precificação dos ativos só aponta para baixo, jogando os juros longos para cima. Incumbe ao Banco Central achatar a curva, comprando os longos e vendendo os curtos.
A fuga desesperada para a liquidez atesta que, na derrocada, não há ativos melhores ou piores. Todos são fâmulos desprezíveis perante o dinheiro. A crise desvela o segredo que o sodalício dos Crentes da Sabedoria Informacional dos Mercados – uma seita poderosa – pretende abafar: em sua dimensão monetária, o capitalismo revela o indissociável contubérnio entre o Universal e o Particular, entre o Estado e o Mercado, entre a Comunidade e o Indivíduo.
No pandemônio econômico os mercados gritam: “O Dinheiro acima de Todos, o Estado acima de Tudo”. A restauração das relações de propriedade e de apropriação só pode ser efetuada pela ação discricionária do Estado – Banco Central e Tesouro Nacional. É o paradoxo da livre-iniciativa. A iniciativa é livre enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto protetor da moeda, instituição social administrada pelo Estado.
O banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. Aí está implícita a tensão constitutiva entre o caráter público e a dimensão privada do Dinheiro Capitalista, ou se quiserem, da Economia Monetária da Produção.
Somente uma forma de riqueza dotada de reconhecimento diretamente social, garantido pelo Estado, é capaz de assegurar a validade das decisões e dos critérios de enriquecimento privado nas economias capitalistas. As políticas monetária e fiscal do Estado soberano estabelecem, em cada momento do ciclo de crédito, as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores.
Nos momentos de crise, como hoje, a ruptura dos circuitos monetários fomentados pelo crédito e pelo gasto entrega ao gestor público da moeda um poder extraordinário.
Essa forma de criação monetária está submetida às relações indissociáveis e conflituosas entre os poderes da propriedade privada e da soberania estatal. À pretexto de se cingir às regras da “ciência”, a teoria econômica dita ortodoxa expurga as relações de poder de uma disciplina que, supõe-se, cuida da sociedade dos homens e de seus poderes.
Em entrevista do atual presidente do Federal Reserve Jerome Powell ao programa 60 minutes, disponível na internet, é possível assistir ao seguinte diálogo:
“Entrevistador: Você simplesmente inundou o sistema com dinheiro?
Jerome Powell: Sim, nós fizemos. É uma outra forma de pensar nisso. Nós fizemos.
Entrevistador: De onde ele vem? Você simplesmente imprimiu?
Jerome Powell: Nós imprimimos digitalmente. Como Banco Central nós temos a habilidade de criar dinheiro, digitalmente, e nós fazemos isso comprando títulos do tesouro ou bonds, o que na realidade amplia a oferta de dinheiro. Nós também imprimimos moeda efetivamente e distribuímos pelos bancos do Federal Reserve.”
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor da Unicamp e fundador da Facamp.
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.