O transporte público é direito, não mercadoria
Não é possível tratar deste tema sem assegurar mobilidade, moradia, infraestrutura urbana, serviços públicos, meio ambiente, participação democrática. O “Direito à Cidade” não é apenas a soma destes direitos, mas a relação entre eles.
Desde 2015 é possível encontrar no artigo 6° da Constituição Federal a constatação de que o transporte público faz parte do grupo de direitos sociais que devem ser assegurados pelo Estado. Contudo, passados quase cinco anos da promulgação da Emenda Constitucional que incluiu esse direito aos cidadãos – a EC 90/15, de autoria da deputada Luiza Erundina (PSOL), pouca coisa foi feita para garantir a efetivação da medida.
A fim de contribuir para que esse direito se torne uma prática no País, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) apresentou durante a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, em 30 de outubro, a proposta de um fundo de financiamento público para subsidiar as tarifas pagas pelos usuários do transporte coletivo. O Inesc lançou também o estudo “Financiamento extratarifário da operação dos serviços de transporte público urbano no Brasil.”
A proposta contém três cenários: um que reduz em 30% o valor das passagens; um segundo, que reduz em 60%; e um terceiro, que chega à tarifa zero, com financiamento público por uma cesta de impostos já existentes, ligados à mobilidade, como o IPVA, por exemplo. As alíquotas seriam ajustadas, de maneira progressiva, conforme o perfil de contribuinte: quem tem maior renda paga mais. O fundo é viável, pois seu valor corresponde a apenas 1% do PIB.
Constitucionalização simbólica
Alguns juristas ainda defendem que o transporte gratuito é apenas a constitucionalização simbólica, pelo fato de os principais problemas acerca da concretização do direito ainda não terem sido discutidos de maneira consistente pela doutrina ou mesmo pela falta de jurisprudência. Contudo, a regulamentação esperada do Congresso Nacional dará forma à lei existente, indicando qual o melhor modelo de transporte público e como será financiado.
Além disso, é importante lembrar que a Emenda Constitucional 90/15 foi fruto da mobilização e luta dos movimentos populares, desde os primeiros anos da década de 2000, com o surgimento do Movimento Passe Livre (MPL) em várias cidades brasileiras, devido à dificuldade de a população arcar com as altas tarifas do transporte coletivo.
Com a regulamentação, virão à tona não apenas os debates sobre o percentual da tarifa a ser subsidiado, mas – principalmente – o modelo de sistema que se quer para o Brasil. Uma coisa é certa: o modelo correto está longe do que atualmente vem sendo praticado pela maioria das cidades, onde as empresas de transporte oferecem um serviço de baixa qualidade, cobram tarifas altas e não divulgam seus lucros.
Planejamento
Hoje os gestores públicos têm pouco ou nenhum controle sobre planejamento e custos, visto que os cálculos da chamada “tarifa técnica” são de responsabilidade das mesmas empresas prestadoras do serviço. Sem contar a suspeita que paira sobre tal atividade, já que a relação entre eleições e empresários do transporte sempre foi bastante próxima.
Cabem aqui os exemplos de Brasília e de São Paulo, ambas com subsídios para o transporte público, mas que não foram capazes de enxergar o transporte público como direito e não como mercadoria. O resultado é que as tarifas das duas cidades continuam altas, sendo necessário R$ 7,21, na integração ônibus + trem em São Paulo, ou R$ 5, em Brasília, para que os moradores de regiões metropolitanas – em geral, pessoas de baixa renda – possam chegar à capital.
É justamente essa parcela de usuários quem mais demanda a urgência dessa medida, pois é dependente do transporte coletivo. O direito ao transporte público diz respeito à forma como se acessa as cidades e seus equipamentos públicos, ou como se dá a convivência nos espaços compartilhados. Ou, ainda, o que se intitula “Direito à Cidade”.
Não é possível tratar deste tema sem assegurar mobilidade, moradia, infraestrutura urbana, serviços públicos, meio ambiente, participação democrática. O “Direito à Cidade” não é apenas a soma destes direitos, mas a relação entre eles.
Cleo Manhas é assessora política do Inesc.