‘O último dia da infância’, de Marcelo Moutinho: das alegrias do Rio às dores do luto
Em novo livro de crônicas, autor percorre acontecimentos recentes do Brasil e de sua vida pessoal
Poucas vezes demorei tanto a escolher o que abordar no primeiro parágrafo de uma resenha quanto agora, quando me propus a escrever sobre O último dia da infância, livro de Marcelo Moutinho, publicado pela Malê no fim de 2024. Como de costume, fiz diversas anotações durante a leitura, todas em um caderno velho e molenga, já que não consigo rabiscar livros – embora admire quem grifa trechos, coloca pontos de interrogação, anota referências e organiza devaneios. Ao fim da leitura, recorri às minhas observações e me dei conta das muitas possibilidades de abertura para o texto.

Pensei num primeiro parágrafo que fizesse analogia a uma conversa de bar. Afinal, as crônicas do autor vêm acompanhadas de chopes, petiscos e papos descontraídos. Depois, achei que um passeio pelas ruas do Rio de Janeiro seria algo mais adequado, uma vez que as narrativas conduzem leitores e leitoras por diversos bairros da capital fluminense. Mais tarde, abandonei as duas ideias. É que O último dia da infância também ganha uma camada mais confessional quando aborda temas dolorosos (em especial, o luto) ou quando traz as histórias para lá de engraçadas de Lia, a filha do autor.
Talvez seja a casa – a concreta e a abstrata – o espaço que melhor defina esse livro. Isso porque as crônicas compartilham momentos íntimos, possibilitam o acesso a pensamentos profundos e criam a sensação de pertencimento em lugares em que o próprio autor é um generoso anfitrião.
Como bom cronista que é, Marcelo Moutinho observa pessoas, caminha por lugares agitados, fala com desconhecidos e com amigos de infância. Visita livrarias, discorre sobre o futebol (até o de botão!) e tem um time para chamar de seu (o Fluminense). Absorve o que há de único em cada acontecimento e utiliza a linguagem aconchegante para contar suas histórias.
Percorre acontecimentos recentes, como a pandemia ou a apropriação da camisa da seleção pela extrema-direita. Mas também divide as risadas de Lia ao ouvir a palavra “inhame” e revisita o momento em que recebeu a notícia da inesperada morte de sua mãe.
Faz tudo isso enquanto dialoga com autores clássicos e contemporâneos. Aliás, a literatura é outro tema bastante presente aqui. Há exercícios de metalinguagem, histórias de bastidores, dicas de leitura e até uma breve conversa com aquele escritor enfadonho que causou na Flip de 2022.
E não é só isso. O último dia da infância é um daqueles livros para ler de uma vez e, logo em seguida, retornar às crônicas favoritas. Porque há subtextos e histórias irresistíveis e humor e paixão e culinária e tudo aquilo que só o cotidiano é capaz de proporcionar.
Nessa rica coletânea de histórias singulares e intimistas, Marcelo Moutinho conduz leitores e leitoras por experiências intensas, delicadas e capazes de evidenciar as nuances e contradições do Brasil de hoje e de ontem.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá), Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e De repente nenhum som (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.