O uso livre da web
O modo como regulamos a internet e sua camada web tem impactos no modo como a sociedade se relaciona. É central estabelecer princípios que garantam a liberdade de expressão na rede e a internet como direito dos cidadãos
A internet é um conjunto de equipamentos, meios de transmissão, protocolos e programas que, conectados entre si, formam essa grande teia de computadores que se comunicam em escala global.
Sua magia, no entanto, está na camada conhecida como web, um conjunto de serviços que permitem abrir documentos localizados em qualquer parte do globo (hiperlinks), navegar por páginas com vídeo, imagens e efeitos (linguagem de programação web), enviar e receber correio eletrônico, participar de redes sociais.
Muitas tentativas de regulação têm surgido no Brasil1 devido, principalmente, ao fato de que a rede mundial de computadores é, em sua natureza, colaborativa e sem donos.
Há também os que defendem que a internet não precisa de regulação2, porque qualquer iniciativa nesse sentido será uma tentativa de controle, além de entenderem que a legislação atual já traz o suficiente para questões controversas que venham a surgir nesse espaço.
Garantir a internet como direito do cidadão e a liberdade de expressão na rede: essa parece ser a intenção do Ministério da Justiça ao elaborar, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas, o texto base do Marco Civil da Internet no Brasil. Até meados de maio, é possível participar do debate colaborativo, cuja segunda fase começou no último dia 8 de abril.3 Tudo feito através da web.
Ao participar deste debate, propomos alguns princípios para a web que, entendemos, devem nortear qualquer regulação da internet. Grande parte desse debate pode ser acompanhada nos fóruns do World Wide Web Consortium, conhecido como W3C4, dentre outras instituições internacionais. O Comitê Gestor da Internet no Brasil é importante referência entre nós.5
1. Uma web para todos. O principal valor da web é o social. Mais do que tecnológico, a web é um ambiente de comunicação humana, de transações comerciais, de oportunidades para compartilhar conhecimentos. E para ser um ambiente universal deve estar disponível para todas as pessoas, independentemente dos equipamentos e softwares que utilizem, mas principalmente da cultura em que se inserem, da localização geográfica, das habilidades físicas ou mentais, das condições socioeconômicas ou de instrução.
2. Uma web em todas as coisas. O número de dispositivos que podem acessar a web cresce constantemente. Este já não é mais um ambiente próprio dos computadores de mesa. Navegamos através de celulares, TV digital, em automóveis e até mesmo via aparelhos domésticos. Essa abrangência requer que o conteúdo da web preveja a possibilidade do acesso a partir de qualquer desses dispositivos, inclusive remotamente ou em movimento.
3. Uma web organizada em padrões. Padronização tem o significado de criar um ambiente universal, onde é possível para todos saber o quê e como fazer, além de poder fazê-lo. Por isso os padrões devem ser abertos, internacionalmente aceitos e debatidos em organizações que possam acolher todos os interessados no desenvolvimento da web, garantindo a independência de fornecedores e de tecnologias proprietárias.
4. Uma web acessível. Garantir às pessoas com deficiência visual, auditiva, motora, mental ou de qualquer outra natureza as condições para que possam entender, navegar, interagir e se desenvolver no ambiente da web é condição para que esta evolua num desenho universal inclusivo. A inclusão deve chegar também às novas gerações e aos idosos, considerando a necessária educação para gerar novas competências digitais.
5. Uma web confiável. A web introduziu novos modos de estabelecer relações sociais. Encontros, relações pessoais e transações comerciais acontecem também neste ambiente. A confiança na web está diretamente associada ao direito de ampla liberdade de expressão, pesquisa e navegação, com a adoção de padrões e modelos tecnológicos que garantam privacidade e segurança aos usuários.
6. Uma web de múltiplos autores e leitores. A web é mais que um ambiente de leitura e pesquisa. Como ferramenta de comunicação, ela possibilita que qualquer pessoa, a qualquer momento, compartilhe conhecimentos. Prover conteúdos na web não é mais uma ação unidirecional. A publicação na web, hoje, é uma confluência de hiperlinks de múltiplos autores interagindo. Manter essa arquitetura e adotar padrões universais são também garantias da sua diversidade.
7. Uma web a serviço da democracia. A web ultrapassou a fase de um gigantesco acervo de documentos. Ela é hoje um conjunto de serviços e dados referenciados, reutilizados e remixados em diversas aplicações para os mais diversos fins. O acesso a dados abertos, principalmente dados governamentais públicos, possibilita a interação dos cidadãos na comunidade, e destes com seus governos, nas suas diversas esferas e instâncias. Garantir o livre desenvolvimento de aplicações na web com base em dados abertos é, hoje, um dos pilares de uma sociedade democrática.
8. Uma web para o desenvolvimento social e econômico. A ampliação do uso da web com as melhores práticas de comércio e governo eletrônicos promove o desenvolvimento da economia local. Estender esses benefícios às diversas camadas sociais, especialmente as necessitadas ou em locais remotos, por meio de políticas de inclusão digital e do uso de recursos de tecnologia móvel, trará soluções que aumentam o acesso aos serviços públicos em saúde, educação e assistência.
9. Uma web que preserva sua memória. Definir estratégias e políticas de seleção dos conteúdos para a preservação da memória da web, o maior repositório de informações criado pela humanidade, possibilitará às gerações futuras acessar a cultura representada na web, além de viabilizá-la como objeto de estudo e pesquisa, inclusive para sua evolução.
10. Uma web de todos. A universalidade e diversidade da web precisam ser mantidas e aprofundadas com a governança da internet brasileira, exercida a partir de um modelo democrático, transparente e pluralista, em que a participação dos diversos setores da sociedade seja assegurada. Governança que também é orientada pelos princípios da colaboração, da criação coletiva, da ética e dos direitos humanos.
*Carlinhos Cecconi é assistente de projetos do Escritório Brasil do W3C. Vagner Diniz é gerente do Escritório Brasil do W3C.
1 A tentativa mais conhecida e polêmica de regular a internet no Brasil foi o projeto conhecido como Lei Azeredo, que propunha uma série de controles no acesso e navegação na web. A mobilização da “comunidade da internet” conseguiu que o projeto não fosse aprovado; porém, ele não saiu de pauta.
2 O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) fez declarações contundentes sobre esse tema: “Eu sou contra qualquer tipo de regulamentação na internet porque, se uma lei puder dizer que ela é livre, um dia também poderá existir uma lei que dirá que a rede não é livre, o que seria um absurdo. Além disso, sou contra qualquer tipo de regulamentação do uso de internet, até porque isso é uma meta inútil. A internet é anárquica e deve continuar assim.” Entrevista ao Jornal da Câmara, 21 de setembro de 2009, Ano 8, número 2331. Disponível na internet em http://www.camara.gov.br/internet/jornalcamara/default.asp?codJor=1608, acessado em 20 de abril de 2010.
3 A discussão em torno do Marco Civil da Internet no Brasil acontece em duas fases. A primeira procurou reunir contribuições de toda a sociedade a partir de grandes eixos temáticos. Cerca de 900 contribuições geraram a minuta do anteprojeto de lei que está disponível na internet em http://culturadigital.br/marcocivil/. A segunda fase é uma consulta aberta para comentários de qualquer interessado.
5 http://www.cgi.br