O vandalismo virtual e a disputa contra ‘esquerdistas’
O capitalismo, livre de limitações governamentais, é a corrente política mais forte nesta mesma comunidade que se sente injustiçada pelas políticas da maior corporação de mídia social do mundo
Em junho de 2020, logo depois da tentativa de criminalização de movimentos antifascistas, um grupo secreto foi criado no Facebook com o intuito de constranger e zombar de ‘esquerdistas.’ Apesar de não me considerar de esquerda, ou postar conteúdo em defesa de partidos associados à ideologia, como PT e PSOL, fui alvo deles em dezembro. Bastou minha participação num grupo de receitas vegetarianas e veganas, contra os valores de liberdade empresarial e de ‘exploração sustentável’ do agronegócio, que os membros do grupo de chacota proclamam. Apesar de parecer infantil e inofensivo, o grupo tem um propósito claro de desestabilizar emocionalmente, abrir processos jurídicos e intimidar seus alvos a se retirarem da esfera pública virtual. Sei disso porque me infiltrei, observei e contatei outras pessoas que foram alvos desta autodenominada milícia digital.
Faço parte de diversos grupos veganos e vegetarianos no Facebook há anos. Pela primeira vez comecei a ‘frequentar’ um que era público. No segundo dia, percebi que todos os posts e comentários estavam com centenas de reações de risadas. Eventualmente, os comentários incluíam fotos de carne, comecei a receber mensagens privadas de fotos do Bolsonaro em que comia churrasco, e membros receberam comentários hostis contra expressões religiosas de matriz africana. Foi apenas quando acessaram meu perfil pessoal que conseguiram chamar minha atenção. Um post público sobre a morte de uma escritora e poetisa com quem eu trabalhava recebeu mais de 50 reações de risada. A família dela estava marcada na postagem, e meu coração pesou com a ideia de que eles viram tantas destas notificações num momento tão delicado.
Outros membros do grupo de receita vegetariana optaram por se retirar da esfera pública, ao colocar seus perfis visíveis apenas para ‘amigos,’ além de optarem por fechar o grupo. Como escritora e figura pública, essa opção teria repercussões profissionais graves, e não acreditei que essa seria uma solução. Atendentes do Facebook sugeriram o mesmo — “Denuncie as contas, e feche seu perfil.” Durante 3 dias, denunciei por volta de 500 contas, e mais continuavam aparecendo. Acharam minha página profissional, começaram a atacar pessoas com quem eu trabalho, e amigas(os) que por acaso compartilharam minhas produções — foi uma tribulação contagiosa.
O Facebook
A disputa qual entrei não foi instigada por divergências partidárias, e sim pela ameaça à integridade da minha existência na esfera pública. Foi como um grupo ter se deslocado uma boa distância com o único intuito de chegar perto de mim e danificar meus pertences. Como cliente do Facebook, pago para divulgar conteúdo na plataforma, e isso significa que posso contatar atendentes diretamente numa situação como essa. Quando eles me falam que a solução era me retirar dessa esfera, foi como se as pessoas que eu pago para manter uma praça pública me falassem que eu devo simplesmente parar de frequentá-la, caso eu não queira sofrer ainda mais danos físicos ou morais. A disputa, para além de ideológica, foi sobre meu direito de existir em público sem ter meus pertences vandalizados, ou meu psicológico agredido.
Após entrar em contato com atendentes meia dúzia de vezes para denunciar o acontecido, ou pelo menos para descobrir onde essas pessoas estavam se organizando, não tive confiança de que essas pessoas realmente trabalhavam para o Facebook. Diversos artigos publicados recentemente revelam que a corporação terceiriza e economiza em uma das áreas mais cruciais de sua manutenção: a segurança e o bem-estar de seus usuários. Certamente também não se preocupam com o bem-estar destes empregados terceirizados. Moderadores de conteúdo no Facebook lidam diariamente com violências de magnitude inimaginável; coisas muito piores do que o que estes bullies, do grupo de chacota, praticavam comigo e com os meus colegas. Em todas as variedades e níveis de danos morais e imagens traumáticas, não há dúvida que os recursos para lidar com eles estão disponíveis, com a companhia que lucra de mais de 18 bilhões por ano.
Além de não fazer o suficiente para garantir o bem-estar de usuários e de moderadores que são expostos a conteúdos hostis e traumáticos, políticas de privacidade parecem existir de forma seletiva. Enquanto é impossível descobrir, sem medidas jurídicas, a qual grupo centenas de contas pertencem, dados pessoais de usuários que colocam itens na cesta eletrônica de uma loja virtual, externa ao Facebook, são rotineiramente vendidos para anunciantes. Como alguém que compra anúncios na plataforma, ficou claro que há disposição de vender dados de indivíduos quando o intuito é anunciar um produto. Porém, dados de usuários que ameaçam a integridade do meu negócio virtual e a segurança emocional da minha comunidade são protegidos.
Mesmo sem a ajuda dos atendentes do Facebook, que são tão vitimizados pelas prioridades deturpadas da corporação quanto eu, consegui localizar um dos ninhos destes bullies. Uma imagem do Bolsonaro vestido de Coringa, editada em diversos contextos, estava presente em muitos dos perfis que invadiram a minha conta. Na primeira metade de novembro de 2020, a IstoÉ publicou uma capa crítica ao Bolsonaro, em que o retrata como o Coringa e o chama de irresponsável e insano. Logo após, vários bolsonaristas se organizaram para idolatrar o Bolsoringa, ao viralizar uma hashtag e criar grupos em mídias sociais. Primeiro entrei no grupo fechado chamado “Bolsoringa,” moderado pelo comediante Sikêra Júnior e pela Aliança Pelo Brasil (entre outros), que tinha 33 mil membros antes de ser derrubado por divulgar fake news incessantemente sobre a pandemia, medidas de segurança de saúde e a vacina. No grupo de Telegram (a alternativa ao que eles acreditam ser censura no Facebook) há preocupação sobre a veracidade das fontes, não porque é desinformação e passa a mensagem errada para a comunidade, mas porque pode gerar consequências se identificado por pessoas infiltradas (como eu). Eles, como muitos ‘esquerdistas,’ também se sentem violados pelos padrões de comunidade do Facebook, cujos interesses se tornaram mais claros do que nunca — o próprio lucro, e não os interesses de uma vertente política em particular.
A ironia é que o capitalismo, livre de limitações governamentais, é a corrente política mais forte nesta mesma comunidade que se sente injustiçada pelas políticas da maior corporação de mídia social do mundo. Excluir páginas como a deles é bom para o business, mas é visto como uma injustiça pelas próprias pessoas que defendem o laissez-faire. Apesar dos processos jurídicos contra o Facebook nos últimos anos parecerem infringir o direito à liberdade individual do Zuckerberg, na realidade, nada o ajudou mais a manter sua corporação relevante e desejável aos seus consumidores. Infelizmente, não podemos contar com iniciativas antirracistas e anti-homofóbicas da companhia como um posicionamento político, mas sim econômico. É inegavelmente lucrativo acomodar a comunidade negra e LGBTQ+ na plataforma. Parte da frustração dos membros destes grupos de fake news e bullying de direita é a sensação de que eles estão gradualmente se tornando menos relevantes para o próprio sistema que eles idolatram. Portanto, a explicação para eles só pode ser que há “dedo comunista lá dentro do Facebook.”
O grupo secreto
No começo, ser bombardeada por milhares de notificações de centenas de contas por dia me fez sentir em menor número e vulnerável. Pensei, ‘será que eu conseguiria mobilizar mil indivíduos para algum propósito simples online?’ Talvez um mecanismo de defesa e descrença também me fez pensar em seguida, ‘será que são bots?’ Por sorte, um membro de outro grupo entrou em contato comigo porque sentiu que era injusto atacar vegetarianos. Ele, como protetor de animais, acha que o vegetarianismo “não tem nada a ver com esquerda,” e que os ataques deveriam ser direcionados apenas às pessoas que merecem. De acordo com o próprio, cujo pseudônimo online é Laisa, posts que “merecem serem feitos de chacota” incluem: “apoio a governos anteriores,” a “propagação do analfabetismo” por meio da linguagem de gênero neutro, denúncias que alegam fascismo e “pautas sobre privilégios ao invés de direitos”. Em outras palavras, o alvo é quem defende publicamente o PT, a comunidade trans, antifascista e antirracista.
Não vou negar que tenho motivações políticas para ser vegetariana. A indústria é violenta com os animais, o meio ambiente, o nosso corpo e evito ao máximo financiá-la. Ao pesquisar alguns dos indivíduos que invadiram o meu perfil e me bombardearam com mensagens e reações de chacota, notei que alguns deles tinham relação direta com a indústria de laticínios e com instituições governamentais do agronegócio. A conta de um homem se destacou por listar a DAG Alimentos como lugar de trabalho, uma distribuidora de laticínios falida, com uma série de processos jurídicos em aberto, o que inclui um com a Justiça Pública por venda de alimentos impróprios para o consumo. Além dele, notei também a conta de um servidor público da Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal (IAGRO); um empregado da Produtos Alimentícios Cory; e um técnico de nível superior na área de Tecnologia da Informação do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que é possivelmente o filho do Superintendente do Ibama em Mato Grosso do Sul (cujo nome é o mesmo com a exceção de Júnior). Como um dos polos do agronegócio no Brasil, o fato de que há servidores públicos da área de justiça deste estado envolvidos num grupo online de chacota contra vegetarianos e ‘esquerdistas’ coloca em questão qual seria a motivação ideológica por trás desta iniciativa.
Graças a minha fonte, Laisa, descobri o nome da página onde essas pessoas estavam se organizando: “Grupo para dar ‘haha’ em posts de esquerda”. Porém, o grupo era secreto — ele é invisível, ao menos que você seja convidado. Falei novamente com um atendente do Facebook, mandei uma lista de nomes de contas, o nome do grupo e um link da página que, por não ser visível, aparecia como “deletado” ou “restrita”. Depois de avisarem que não podiam garantir nada ou me manter informada sobre o andamento da minha denúncia, no dia seguinte, o grupo foi de secreto para fechado e eu pedi para entrar. Quando entrei, a natureza intimidadora da quantidade de pessoas envolvidas e a estratégia política por trás se desmistificou. Lá, vi muitas das pessoas que atacaram minha página. Pude acessar a lista de quase 8 mil membros e contatar outras pessoas que também se tornaram alvos deles.
A primeira coisa que notei quando entrei no grupo foi a superficialidade com a qual eles escolhiam suas vítimas. Estava claro que os membros deste grupo de risada não leram o que produzo, e seus critérios dependiam fortemente do que eles acreditam ser a estética ‘esquerdista,’ mais do que da retórica ideológica. No meu caso, essa estética foi dar um conselho sobre como cozinhar casca de banana — anunciei publicamente que sou vegetariana. Outras pessoas viraram alvo por usarem símbolos trans, feministas ou comunistas, slogans em defesa do SUS ou positividade corporal, a cor vermelha, a palavra Lula etc. Infelizmente, isso não quer dizer que suas atitudes deixaram de parecer nocivas. Quando uma vítima se desequilibrava e reagia de forma agressiva em mensagens privadas, eles compartilhavam capturas de tela no grupo se vangloriando. E quando conseguiam enquadrar o que a pessoa estava falando como calúnia, anunciavam que iam entrar na justiça contra ela, apresentando a mensagem como se fosse um troféu.
Ao ver isso acontecer com os outros, lembrei do que aconteceu comigo. Quando escrevi que dar risadas num post sobre a morte de alguém era ‘assédio,’ uma pessoa me respondeu: “oh, calúnia da processo toma cuidado as coisas que você fala […] procura mas não cagar pela boca […] deixa de ser criança […] vou chamar meu advogado vou dá parte de você […] tenha provas para se defender […] tô vendo com meu advogado Assédio muito sério menina…” Essa confiança de que eles, e não nós, que seriam protegidos pela lei me intrigou. Certamente, o indivíduo não considerou que a palavra ‘assédio’ não se aplica apenas à infrações de natureza sexual, mas certamente o termo jurídico cyberbullying é mais preciso — “intimidar, agredir, causar dor ou sofrimento, angústia ou humilhação à vítima, inclusive por meio de exclusão social” (Lei 6401/13 | Lei nº 6401, de 05 de Março de 2013).
A disputa pela lei
Muitas das pessoas com quem conversei que foram alvos deste grupo tiveram a reação instintiva de entrar na justiça, sem saber como. No entanto, muitos dos membros dessa ‘milícia virtual’ são profissionais da área de segurança pública e privada. Mesmo antes de infiltrar o ninho, notei que muitos deles eram policiais, seguranças, fuzileiros navais, atiradores etc. Fora os que dizem ser advogados e servidores públicos pelo país inteiro. A cultura de zombaria e intimidação foi encorajada pela autoridade máxima do poder executivo desta Nação, portanto, é difícil contar com o sistema jurídico sustentado por essa administração.
Em 2020, a administração pública brasileira de certa forma instigou esse movimento de cyberbullying com a emenda da lei antiterrorismo criminalizando grupos antifascistas. No dia 31 de maio, a Reuters relata que o presidente Trump respondeu aos protestos do Black Lives Matter designando “Antifa como [uma] organização terrorista” (Reuters). No dia seguinte, 1º de junho, a Câmara dos Deputados brasileira é apresentada com um pedido de alteração da “Lei Antiterrorismo nº 13.260, de 16 de março de 2016, a fim de classificar os grupos ‘antifa’ (antifascistas) como organizações terroristas” (Portal da Câmara dos Deputados). Durante a primeira semana de junho, um PDF de 999 páginas começou a circular no What’sApp com informações detalhadas sobre pessoas que apresentam a estética antifa online (tatuagens, piercings, o logotipo antifa no perfil, pertencer a grupos de Facebook antifascistas etc.). E nesta mesma semana, um trend de logotipos antifascistas personalizados dominou as mídias sociais brasileiras. Dia 18 de junho, o “Grupo para dar ‘haha’ em posts de esquerda” é criado.
Como Laisa, minha fonte, apontou, um dos propósitos deste grupo é fazer chacota com quem supostamente descaracteriza o conceito de fascismo ao aplicá-lo fora de contexto — o que para ele é uma ação criminosa. Não só a lei corrobora este sentimento, houve uma iniciativa de pelo menos ameaçar colocar ela mesma em prática contra certos indivíduos, através da lista. Ao criar o grupo, a intenção foi de se apropriar da própria regulamentação ao invés de a quebrar. Quando não há ‘provas’ o suficiente para um processo jurídico, a próxima melhor opção é coagir a pessoa de esquerda, antifascista, trans etc. a se retirar da esfera pública virtual. Enquanto isso, há pessoas mencionadas neste ‘PDF de antifas’ que também se apropriaram da lei e estão processando políticos que alegadamente têm relação com a lista. Essa disputa acirrada pelo ‘direito’ simboliza o quanto movimentos de resistência contra o status quo estão saindo do underground (uma existência subterrânea) e se tornando uma ameaça em aberto, na esfera pública real.
A esfera pública
Voltar para uma existência subterrânea, estigmatizada, e tímida, está longe de ser a solução. Mas quando pessoas que têm existido livremente no passado se sentem forçadas a ocupar essa posição inconveniente e restringida pela primeira vez, não podemos esperar que a aceitem com gosto. Para eles, não há injustiça maior do que ser colocado na posição subalterna na qual eles costumam colocar os outros. Um dos vídeos compartilhados no grupo ‘Bolsoringa’ revela que, para eles, o Bolsonaro é um exemplo de como a sociedade injustamente restringe a liberdade de expressão das pessoas de direita. Em sua entrevista do dia 28 de dezembro 2020, no canal de YouTube ‘Foco do Brasil,’ o presidente em vários momentos alude a coisas que ele não pode dizer, e a audiência ri, concorda, e demonstra que sabe o que ele quer falar mesmo sem dizer as palavras. “Não vou nem fazer uma brincadeira aqui porque falam depois que eu tô zombando…” e risadas surgem como se ele a tivesse feito.
Além da chamada injustiça da descaracterização do fascismo, e uma suposta tentativa de silenciar pessoas como o presidente, Laisa também apontou a relevância de distinguir entre privilégios e direitos. De certa forma concordo, não há necessidade de denunciar o privilégio que cada membro deste grupo talvez tenha, ao invés de reconhecer o seu direito de existir e se organizar. Porém, rejeitar o conceito de privilégio e se indignar com ‘esquerdistas’ sendo privilegiados nas mídias (formais e sociais) é incoerente. Para eles, o problema é apontar privilégio de raça, gênero e classe, ao invés de lutar por direitos como indivíduos. Certamente, como indivíduos, deveríamos ter o direito de existir na esfera pública sem virarmos alvos de chacota, zombaria, e intimidação em massa. Talvez existir orgulhosamente como mulher trans, feminista ou preta infringe a liberdade dos bolsoringas de se expressar livremente sem serem rotulados como transfóbicos, machistas ou racistas. É a épica batalha da conjuntura política polarizada Brasileira, o cabo-de-guerra entre a ‘mudança’ e a ‘tradição.’ Me parece que muitos não se conformam com o fato de que o Facebook, as grandes mídias, e a engrenagem capitalista que os move talvez não estejam casados com o time da ‘tradição’ e sim com seu próprio lucro. Portanto, o direito é dado para aqueles com o privilégio de serem mais lucrativos.
Quais são, então, os nossos direitos no contexto público das mídias sociais? Nosso feed do Facebook, de certa forma, é o muro em volta do nosso ambiente privado. O processo de selecionar o que é visível para o ‘público’ ou para ‘amigos’ é uma decisão baseada em qual lado do muro desejamos exibir algo naquele momento. Nos Estados Unidos, é comum colocarem bandeiras ou placas no gramado na frente de casas suburbanas. Mesmo que esses objetos tenham o intuito de serem exibidos publicamente, eles não deixam de ser propriedade pessoal, e quando desconhecidos danificam essa posse, é considerado vandalismo. Postar algo de natureza política para o público no meu feed é nada mais do que uma placa no gramado da minha casa, ou um adesivo no meu carro. Minha página de Facebook, minha casa, e meu carro são propriedades pessoais, e para uma comunidade anticomunista, elas deveriam ser tão sagradas quanto a privada. Porém, este não é o caso.
As incoerências ideológicas apontam na direção de que o embate está fora da esfera da divergência política/partidária. Está fora da esfera de opiniões e debates. O embate é entre pessoas que querem existir e aqueles que não querem que elas existam. Não como carne, é a relação que eu tenho com o meu corpo, e membros desse grupo não acreditam que eu deveria existir. Não há troca de ideias, ou possibilidade para diálogo. Existe apenas a crença de que pessoas vegetarianas, como eu, não deveriam existir. Pessoas gordas ou trans, para eles, também não deveriam existir, muito menos orgulhosamente e em público. O vandalismo é, portanto, a tentativa de destruição de propriedade pessoal até mesmo quando ela é abstrata — o corpo e a identidade.
O vandalismo
Em seu uso clássico, como destruição de propriedade pública ou privada, o termo ‘vandalismo’ é uma ferramenta para criminalizar indivíduos marginalizados que ousam ocupar o espaço central e coletivo. Pessoas que já eram centrais na esfera urbana e financeira usufruíam de completo controle sobre o ambiente público, e de uso coletivo. Uma loja de alto escalão, por exemplo, poderia não só arquitetar a construção em seu próprio terreno, mas também poluir visualmente um raio de um quilômetro e, até mesmo, mudar a direção do fluxo de carros na rua. Em outras palavras, nós erroneamente atribuímos o conceito de vandalismo ao que é ‘marginal,’ e raramente ao que é ‘central,’ quando o termo deveria se aplicar às infrações contra a integridade da propriedade pública em geral.
Assim que a arte de rua começou a se tornar lucrativa, a dinâmica jurídica e corporativa com a palavra ‘vandalismo’ mudou. Em 2007, São Paulo proibiu propaganda em outdoors, iniciando uma era de murais e jardins verticais que ressignificou o conceito de patrimônio público, e a atuação da população na construção do espaço coletivo que ela usa. Quase 10 anos depois, artistas de rua ganharam um processo contra a Nissan e sua companhia de publicidade porque “o vídeo com a propaganda do veículo” expõe o “desenho dos autores” por 4 segundos (Ação contra a Nissan e a Lew Lara Publicidade). O conceito de poluição visual foi revertido — com ela a posição dos artistas de deslocou da margem ao centro — e a lei, tanto quanto a publicidade, tiveram que acompanhar essa mudança. Neste sentido, as leis nada mais são do que uma ferramenta para o aperfeiçoamento da prática capitalista, ao invés de uma restrição dela.
Os membros do “Grupo para dar ‘haha’ em posts de esquerda” se apropriaram desta tática vândala, ao deixar suas centenas de pichações em forma de reações de risada nos posts de pessoas aleatórias no Facebook. Apesar de não serem marginalizados pelo status quo, ou usarem essa ferramenta para lutar por direitos de acesso ao espaço público, o termo ‘vandalismo’ facilmente se aplica a eles. A retórica antigoverno (excluindo o do Bolsonaro) os leva a rejeitar a propriedade pública como legítima, e ao mesmo tempo usufruem do livre acesso a ela — como a loja de alto escalão ilegítima a pichação, mas usufrui de outdoors. Por isso, o vandalismo virtual deles é uma tática para permanecer em sua posição central na esfera pública, enquanto decidem quem merece permanecer naquele espaço através do cyberbullying.
Uma comunidade que já ocupa uma posição central na sociedade provavelmente se dispõe a esse projeto porque se sente ameaçada. Seus corpos cisgêneros, capitalistas, cegos para questões de raça, etc. representam o ‘normal’ há pelo menos cem anos. O que pode ter abalado a estrutura desta normatividade? O artista Leonard Koren, ao tentar descrever a essência da estética zen japonesa, afirma que “repetir é a essência da tradição.” De certa forma, o ‘esquerdismo’ se esforça para interromper uma certa repetição, mas nem sempre com o intuito de destruir a tradição, e sim a reconfigurar. A tradição capitalista é a constante reconfiguração, e o Facebook é um exemplo perfeito disso. Sempre que ele lida com um processo jurídico é compelido a corrigir um detalhe de sua configuração para que não entre em colapso ou cresça ao ponto de se tornar um Estado (com um único recurso lucrativo para exportação). Em outras palavras, o que os bolsoringas chamam de ‘comunismo’ é, na realidade, a manifestação da propriedade capitalista mais essencial para sua permanência — a adaptabilidade. E, francamente, o “comunismo” petista foi apenas uma tentativa de expandir a classe de consumidores, diminuindo o contingente populacional marginalizado e sujeito ao extermínio.
O antifascismo, assim como o comunismo, precisa ser contorcido para caber na moldura da ameaça à tradição. Se o fascismo não é a tradição, por que o antifascismo seria uma ameaça? É preciso avaliar de qual forma a luta antirracista, LGBTQ+, pela saúde púbica e pelos direitos da população de acesso à recursos básicos, quando enquadrados como uma luta antifascista, intimida os defensores do capitalismo e da liberdade de expressão. A tradição da liberdade individual poderia, e deveria, incluir no mínimo a liberdade de praticar uma religião que não seja o cristianismo, de se identificar como LGBTQ+, preto ou preta, gordo ou gorda, vegetariana(o) ou vegana(o), etc. O antifascismo luta por nada mais que o direito destes indivíduos de existir. E, historicamente, o termo se baseia no simples fato de que o fascismo se apropria do nacionalismo para exterminar contingentes indesejáveis de uma população. Colocamos o “Brasil acima” das vidas de todos e todas que estão às margens, e da grande maioria do povo.
Por fim, o mais importante acaba sendo o mais simples — temos o direito de ser quem nós somos, livre e abertamente. A sociedade, na vida real e virtual, não só pode, mas deve se adaptar para acomodar as pessoas que existem nela. Bolsoringas também existem nesta sociedade e merecem atenção; que continuem a exibir esta atenção como um troféu. Porém, como podemos abraçar quem avaliza nosso extermínio? A história, seus conflitos e tecnologias, inevitavelmente avançam, e nós existimos em simbiose com ela. Enquanto houver resistência para preservar a repetição (a tradição), haverá a luta pelos direitos de uma nova geração e seu novo contexto histórico — o direito de existir.