O vilão é outro: em defesa da Foz do Amazonas
A atividade de exploração de petróleo, com seus significativos impactos e risco de derramamento de óleo, é uma ameaça ao equilíbrio socioambiental da Foz do Amazonas
Com frequência, o licenciamento ambiental é tratado como o vilão do desenvolvimento nacional. A narrativa corrente tenta imputar a esse imprescindível instrumento de gestão ambiental a responsabilidade pelos ditos atrasos e prejuízos para empresas. Em exemplo recente, retratou-se a atuação do Ibama como obstáculo para que a Petrobras inicie a esperada campanha exploratória na Margem Equatorial, o que, de quebra, ainda custaria centenas de milhões de reais à petroleira, que tem parados equipamentos e embarcações desde novembro na costa do Pará.
É como se a licença ambiental fosse um papel com data marcada para ser impresso; como se uma diligente empresa estivesse sendo prejudicada pela desídia ou irresponsabilidade de órgãos ambientais ineficientes ou mal-intencionados.
A história real, no entanto, é outra. Os blocos de petróleo na Foz do Amazonas foram arrematados em 2013 por consórcios liderados por empresas estrangeiras, apesar de pareceres prévios alertarem sobre os desafios que seriam enfrentados no licenciamento. A Foz do Amazonas é uma fronteira exploratória desconhecida e de grande sensibilidade socioambiental, onde encontra-se o grande sistema de recifes amazônicos, recentemente descrito, manguezais, recursos pesqueiros, que se interrelacionam com os modos de vida de diversas populações indígenas e tradicionais do extremo norte do país. Essa complexidade exige cuidados redobrados na avaliação dos impactos e riscos das atividades econômicas. Esses cuidados não são caprichos, mas determinações expressas em tratados internacionais e na Constituição Federal.

Do ponto de vista técnico, a concessão de blocos para exploração de petróleo deveria ocorrer apenas depois de concluído processo prévio de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), o que traria segurança aos interessados. Atividades inviáveis seriam bloqueadas logo de início, antes da concessão e do licenciamento. O licenciamento ambiental de atividades em locais potencialmente viáveis, por sua vez, se tornaria menos complexo e mais ágil. Apesar disso, optou-se por conceder diversos blocos na Foz do Amazonas sem a realização prévia de AAAS (avaliação estratégica prévia que apontaria a aptidão, ou não, da região para as atividades petrolíferas).
A Petrobras adquiriu o bloco FZA-M-59 em consórcio com a britânica BP Energy. Majoritária no consórcio, coube à empresa estrangeira, em 2014, iniciar a busca pela licença ambiental. Se havia dúvidas sobre a viabilidade de se explorar petróleo na Foz do Amazonas, elas foram em parte esclarecidas em 2018, quando o Ibama indeferiu o licenciamento de cinco blocos concedidos à francesa Total, que não havia conseguido demonstrar que os riscos da exploração eram gerenciáveis.
Após a negativa do Ibama, BP Energy e Total saíram dos consórcios. Apesar do cenário desfavorável, a Petrobras assumiu os direitos da concessão de seis blocos e, também, a titularidade dos licenciamentos. O bloco FZA-M-59 fazia parte do conjunto, e a licença ambiental estava na iminência de ser indeferida pelo Ibama.
Antes mesmo de sanar as pendências deixadas pela antecessora, e possivelmente em razão do risco de ver negado o pedido de licença ambiental, a Petrobras solicitou ao Ibama, em 2021, uma licença ambiental prévia. Era uma tentativa de obter uma declaração antecipada da viabilidade da exploração de petróleo na Foz do Amazonas. O problema é que inexiste licença prévia (LP) para esse tipo de atividade. O processo, nesse caso, só tem uma fase: ou se obtém a licença de operação; ou se indefere o pedido de licença. Por isso, o pedido de LP foi negado.
No entanto, mesmo passados mais de oito anos do início do licenciamento, o Ibama concedeu ainda mais prazo para a Petrobras resolver inconsistências em estudos ambientais e a falta de consultas a povos e comunidades afetados.
Desde então, a empresa vem pressionando publicamente o Ibama a conceder a licença para o bloco FZA-M-59. A insatisfação sobre a demora e os valores já gastos pela empresa são, na realidade, um efeito colateral dessa pressão. A Petrobras mobilizou pessoal e equipamento para realizar um exercício simulado das ações de resposta a emergências de vazamento de óleo antes de obter a autorização para tanto, e sabendo que ainda precisaria realizar adequações. O Ibama já afirmou diversas vezes que esse exercício será autorizado somente se e quando não houver mais pendências nos estudos ambientais, o que ainda não ocorreu.
A precaução adotada pelo Ibama nesse licenciamento é necessária. Em atividades petrolíferas, exercícios simulados e planos de contingenciamento de risco são de extrema relevância para evitar catástrofes. Só podem ser autorizados ou aprovados quando não houver dúvida sobre a sua adequação.
Essa regra se torna ainda mais relevante ao se ter em conta que a Foz do Amazonas é uma área prioritária para a conservação e que sua preservação é de fundamental importância para que a humanidade supere a atual crise de perda de biodiversidade, ocasionada pela destruição de habitats naturais e pela exploração desenfreada de espécies. Somada à crise climática, a crise da biodiversidade pode ter impacto avassalador sobre a economia e o bem-estar humano.
A atividade de exploração de petróleo, com seus significativos impactos e risco de derramamento de óleo, é uma ameaça ao equilíbrio socioambiental da Foz do Amazonas. É dever do Ibama agir com a devida precaução. O processo de licenciamento, certamente, seria mais simples se fosse precedido da realização de AAAS. Porém, se houve uma desastrada opção política de não o fazer, não se pode, agora, ignorar as complexidades do licenciamento ambiental. O caminho tecnicamente correto, na verdade, seria a suspensão pelo Ibama de todos os processos de licenciamento na Foz ou mesmo na Margem Equatorial, para realização de AAAS. No processo de licenciamento do bloco FZA-M-59, prejuízos e atrasos só podem ser atribuídos à própria Petrobras. Enquanto a empresa não comprovar a viabilidade ambiental da atividade e a capacidade de gerenciar os riscos, é a própria Petrobras, e não o licenciamento ambiental, o seu algoz.
Suely Araújo é especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama
Rafael Giovanelli é especialista em políticas públicas do WWF-Brasil.
Daniela Jerez é analista de políticas públicas do WWF-Brasil.