O vírus não é democrático: a pandemia da Covid-19 como acontecimento e a disputa de discursos
Este texto inaugura uma série de artigos com a análise política dos principais discursos sobre a pandemia da Covid-19: o “negacionista” e o “científico” no debate nacional e internacional, um trabalho do Grupo de Pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)”. Neste primeiro artigo, propomos acessar a pandemia da Covid-19 como um acontecimento. Esse olhar permite destacar os impactos desiguais da pandemia, assim como considerar uma suspensão da hegemonia e as oportunidades de disputa política que essa suspensão abre. Em seguida explicitamos o instrumental metodológico da proposta, fundado na análise política dos discursos e na abordagem de marcos interpretativos. Com esse instrumental, procuramos reconstruir sucintamente o campo discursivo, os discursos em debate e os principais porta-vozes dos discursos negacionista e científico.
A pandemia da Covid-19 em poucos meses já alcançou quase todos os países do planeta. Ameaça à saúde e modifica o cotidiano de bilhões de pessoas. Muitas vezes ela é apresentada ao senso comum como um “desastre natural”, fruto do “destino” e sobre o qual não se teriam responsáveis. Mas será isso? Qual é o sentido dessa interpretação? O que ela oculta? Quando se leva em conta a complexidade da sociedade em que vivemos, não há nada que seja exclusivamente “natural” e desvinculado de práticas culturais, das relações de dominação e de decisões políticas que articulam os vínculos entre os humanos e destes com a natureza.
Tentando superar uma interpretação que torna opaca as responsabilidades humanas pelo fenômeno, têm-se construído olhares diversos, que vão desde a redução da pandemia a uma crise sanitária até outros que – relembrando Mauss – entendem a pandemia como um “fato social total”. Isto é, destacando uma dimensão estrutural durkheimiana, a pandemia impactaria o conjunto das relações sociais, alterando as dimensões da vida cotidiana, convulsionando atores, conturbando instituições e interferindo no universo dos valores[1].
A pandemia da Covid-19 como acontecimento
Sem negar a importância e amplitude dos impactos da pandemia, mas colocando menor ênfase no que se entende como estrutural e mais nas descontinuidades processuais do evento, à luz do pensamento de Byung-Chul Han[2], convidamos o leitor e a leitora a olhar para a pandemia como um acontecimento. O filósofo Han, recuperando Nietzche, Deleuze e Foucault, destaca que o acontecimento abre uma fissura na certeza dominante.[3] Apesar de ser tão imprevisível e repentino como um evento natural, ele se articula ao social e ao político (Han, 2018).[4] O acontecimento é aquilo que abre as portas para o não previsto, rompe com regularidades, padronizações e uniformidades envolvidas na capacidade de projetar e gerir o mundo. Mais do que acaso ou fortuito, Han vê no acontecimento o potencial de romper com a vontade estatística, que para Foucault orienta a gestão biopolítica de corpos e populações, e com a gestão psicopolítica que Han localiza na manipulação algorítmica dos desejos e da psique individual e coletiva em sociedades conectadas e submetidas à mineração e correlação de dados pelo Big Data. Han percebe que biopolítica e psicopolítica se apoiam no normal, no recorrente e nas predições para domesticar o futuro e reproduzir mais do mesmo, enquanto o acontecimento se relaciona com o singular, o desvio e o imponderável que rompe com a política como gestão e abre as portas para o político[5] como criação coletiva do novo.[6]
Para entender os efeitos da pandemia da Covid-19 como um acontecimento, é importante visualizar o contexto de emergência dessa pandemia que, assim como outras que marcaram a história da humanidade, traz potenciais disruptivos. Todo acontecimento tem uma história. Entre acaso e necessidade existem cânions que, conforme lugar ou distância do observador, revelam abismos ou caminhos. Se no início de junho de 2020 temos 6,5 milhões de infectados, sendo 2,2 milhões na Europa e 3 milhões na América, com quase 400 mil mortos em mais de 188 países, segundo a OMS, foi no dia 17 de novembro de 2019 que tivemos o primeiro caso relatado da Covid-19 em Wuhan, capital da província de Hubei na China. Esses dados localizaram o centro da pandemia naquela potência econômica que desde 2008 tem sustentado os níveis de produção e consumo globalizados dentro de um padrão de exploração intensiva de trabalho humano e recursos naturais. Um modelo que para cientistas, filósofos e parte cada vez maior da sociedade é considerado suicida e insustentável, numa relação direta com surtos virais e patologias provocadas pelo desequilíbrio ecossistêmico de interações disruptivas entre homem/natureza.
As características da Covid-19 diferem de outros surtos epidemiológicos que não atingiram a proporção pandêmica, ou seja, a capacidade de afetar e vulnerabilizar todas as pessoas, em todos os lugares e ao mesmo tempo, exatamente como a globalização neoliberal. Uma pandemia que colocou ¼ da população mundial em confinamento (cerca de 1,7 bilhão de pessoas) para expor as contradições de um modelo em crise há pelo menos 12 anos, onde as lógicas do Just in Time, da otimização de recursos, da automação, da terceirização, da privatização e da mercantilização desregulada e ampliada geraram substratos hospedeiros onde agentes patológicos encontram ecossistemas amistosos e receptivos para sua reprodução. Uma contaminação que, pelo menos nos seus momentos iniciais, colapsou o centro e não a periferia desse modelo econômico globalizado. Um exemplo do que se quer dizer é o padrão de saúde pública neoliberal – basta focar os dois países de língua anglo-saxã mentores do atual modelo econômico como exemplo: o padrão neoliberal de gestão estatal do Reino Unido em 2018 transferiu para a iniciativa privada contratos de serviços de saúde no valor de 9,2 bilhões de libras, ao mesmo tempo em que reduzia o orçamento da NHS (serviço nacional de saúde pública) em 1 bilhão de libras – esses números podem explicar os impactos da Covid-19 na Inglaterra. Nos EUA, por sua vez, o número de leitos nos hospitais se reduz continuamente. Desde a gestão Reagan, entre os anos 1980 e 2000, houve uma redução de 40% dos leitos hospitalares. A justificativa seria atender objetivos de otimização: melhorar o índice de ocupação dos leitos ao longo do ano, com menos médicos e enfermeiros, menos custos e mais lucro com a saúde. No mesmo período, quinze das maiores farmacêuticas americanas deixaram de investir no desenvolvimento de antibióticos e antivirais, e medicamentos para doenças cardiovasculares, antidepressivos e aditivos para a potência sexual masculina se mostram mais lucrativos, merecendo mais investimentos.[7] Na verdade, depois de trinta anos de privatizações e redução do Estado, todos os países propulsores da globalização neoliberal não estavam preparados para atuar numa emergência de saúde pública como a da Covid-19.[8]
Na dimensão econômica que recepciona o acontecimento pandemia da Covid-19, pode-se dizer em síntese que ela instaura o pandemônio de uma crise dentro de outra crise. Já estava em curso uma crise da globalização neoliberal sustentada na financeirização, com ampliação infinita do capital especulativo e fictício, a expansão crescente de crédito e do endividamento de pessoas, organizações e Estados. A economia global já estava em recessão antes da pandemia: o Japão estava em recessão, a zona do euro em vias de entrar, o crescimento americano em desaceleração, México, Argentina e África do Sul se contraindo e países exportadores de recursos naturais, como Brasil, Rússia, Arábia Saudita, Indonésia e Equador vinham enfrentando grandes perdas de receitas. Ao mesmo tempo em que já se convivia com o fantasma de uma nova crise gerada pelo endividamento corporativo que explodiu após 2008, atingindo hoje desde pequenas empresas até grandes corporações.[9] Com o epicentro da pandemia da Covid-19 na China, perdeu-se o motor que resgatava a economia global desde 2008: isolamento social e suspensão de atividades econômicas fizeram a China encolher 6,8% no primeiro trimestre de 2020. Hoje, a China trabalha com uma previsão de crescimento anual de 2,5%, o que é muito pouco para alavancar a economia global, como fez enquanto teve taxas de crescimento próximas a 10%. Em 2019, a economia Chinesa ainda crescia quase 7%.[10]
Por sua vez, as dimensões social e política que hospedam o acontecimento pandemia não são menos críticas. Hoje, em diversas partes do mundo, prolifera o descontentamento de trabalhadores e profissionais liberais de uma geração cujos pais sustentavam famílias inteiras e formavam os filhos com seus salários, mas que agora se encontram terceirizados, precarizados ou desempregados e empobrecidos pela globalização neoliberal. Esse descontentamento é capitalizado principalmente por lideranças e movimentos políticos reacionários e até neofascistas que substituem o debate como lugar da política por uma política sem lugar para o debate e fundada em mitos como os de supremacia etno-racial, patriarcalismo, nacionalismos xenofóbicos ou fundamentalismos religiosos. Após 2008, os 40 anos de there is no alternative de Margaret Tatcher e Ronald Reagan produziram um movimento semelhante àquele que gerou o nazismo, quando trabalhadores empobrecidos e humilhados foram convertidos em guerreiros brancos arianos. No Mediterrâneo, diante dos olhos anestesiados da maior parte da população europeia, um holocausto diário é suportado por refugiados da África e do Oriente Médio, enquanto Trump constrói um muro para separar os EUA do resto da América Latina. É nessa globalidade que se hospeda a pandemia da Covid-19, tanto entre esses movimentos reacionários como também entre manifestações e insurgências progressistas que no momento imediatamente anterior ao isolamento forçado se multiplicavam de Santiago a Beirute. E é nesse contexto globalizado que o impacto dessa pandemia enquanto acontecimento também reproduz recortes de extremas desigualdades.
Os impactos desiguais da pandemia como acontecimento
Em recentes estimativas, o PNUD prevê que com a pandemia, o índice de desenvolvimento humano (medido a partir da combinação dos níveis de vida, saúde e educação) estará descendo pela primeira vez desde que o ele foi concebido, em 1990. Com seus impactos na saúde, educação e renda, a Covid-19 dá lugar a um retrocesso inédito, não apenas desvela as deficiências de cada sociedade, mas aprofunda desigualdades, em expansão em todos os países mesmo antes desse acontecimento. As agências internacionais reconhecem que a Covid-19 está desvelando nitidamente as brechas entre aqueles que têm e os que não têm, dentro dos países e entre eles.[11] As desigualdades internas e externas a cada país envolvem a falta de acesso à água, saneamento e cuidados de higiene básico, saúde e medicamentos, o que facilita a disseminação do vírus e afeta ainda mais os grupos vulneráveis e já em risco, como as pessoas que dependem da economia informal, trabalhadores com baixos salários, mulheres, jovens, idosos, pessoas com deficiência, refugiados e deslocados, população negra, povos indígenas e demais povos tradicionais.[12]

A desigualdade é exacerbada pelo cumprimento da principal recomendação sanitária de enfrentamento da Covid-19: o distanciamento social. Para muitos trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda, ficar em casa não é uma opção. É um privilégio para classes mais ricas, o que evidencia como essas pessoas não apenas têm maior segurança e estabilidade profissional e de renda, mas também possuem maior capacidade de acessar os sistemas de saúde, além de desfrutarem de condições sanitárias, de alimentação, e moradia que possibilitem um menor índice de adoecimentos. E somando-se a tudo isso, as classes mais ricas adotaram o distanciamento social antes dos mais pobres, o que representou uma vantagem diante do padrão altamente transmissível do Covid-19.
O vírus não é democrático, muito pelo contrário, está indo direto para as fissuras da nossa sociedade. Para Ashwin Vasan[13] a pandemia expõe as desvantagens estruturais que a população mais pobre enfrenta na geração de renda e no acesso desigual aos serviços de saúde.
A pandemia da Covid-19 expõe e agrava o racismo estrutural e as desigualdades de gênero
A filósofa Djamila Ribeiro[14] lembra que os mais vulneráveis sempre serão mais atingidos e que isso independe de uma pandemia, pois são questões estruturais. A explosão de manifestações antirracistas nos Estados Unidos, no Brasil e no mundo no final de maio e início de junho trouxe à tona debates e discussões sobre racismo estrutural e privilégios sedimentados e globalizados[15].
Negras e negros brasileiros assim como as/os estadunidenses possuem menos acesso à saúde, educação e trabalho, são as maiores vítimas da violência policial e encarceramento[16], além de estarem sub representados na política e na cultura. Com o avanço da pandemia, é a população negra que compõe o maior número nas estatísticas oficiais de óbitos e contágios nos dois países. Entre as pessoas que faleceram de Covid-19 no Brasil, 57% eram negras, enquanto brancos representavam 41% do total de mortos[17]. No período de 11 a 26 de abril de 2020, a quantidade de pessoas negras mortas em decorrência da doença quintuplicou. De acordo com o estudo realizado por pesquisadoras da Fiocruz, Abrasco e da Universidade Federal da Bahia, nos EUA, a taxa de letalidade entre a população negra mais que dobra em comparação àquela verificada entre os brancos, e os afro-estadunidenses são menos encaminhados para realização de testes quando comparecem ao atendimento com sinais de infecção[18].
No Brasil, a maior parte de mortes e infecções prevalece nos bairros pobres das grandes cidades, onde a maior parte de residentes são pessoas negras e historicamente marcadas pela ausência ou precariedade no acesso a serviços básicos de saneamento, água potável e equipamentos de saúde, estando mais expostas a fatores de risco.[19]
Na capital paulista, cidade com o maior número de mortes no país, para cada óbito em Moema, bairro nobre na zona sul, existem quatro em Brasilândia, bairro periférico da zona norte, onde metade da população é negra e que conta com o maior número absoluto de óbitos em todo o município. Na cidade do Rio de Janeiro, o bairro de Campo Grande, também com mais da metade de moradores negros, é o campeão em número de óbitos. Em Manaus, a primeira cidade brasileira a registrar colapso do sistema de saúde público, para cada morte entre brancos, mais de 13 pacientes negros falecem em decorrência da doença.[20]
Além disso, como mencionamos anteriormente, esses indicadores apontam que o isolamento social – a principal medida preventiva para a Covid-19 orientada pela OMS –– é um desafio para grande parte da população brasileira mais pobre e predominantemente negra, uma vez que ocupa postos de trabalho mais precários e em setores considerados essenciais na pandemia, como o doméstico, de limpeza e alimentação, com destaque para os entregadores via aplicativos, ocupação que cresce de forma vertiginosa nas grandes cidades ao longo dos últimos anos[21].
Assim como nos grandes centros urbanos, a população negra rural também vem sendo afetada pela pandemia de forma alarmante: 97% dos territórios quilombolas do país estão localizados em municípios cuja população precisa se deslocar para acessar atendimentos básicos de saúde, além da recorrente falta de acesso à água vivenciada por essas comunidades negras. Outro problema enfrentado é a dificuldade de acessar a renda básica emergencial. Até o dia 10 de junho, o levantamento realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – Conaq registrou 65 óbitos e 388 casos confirmados em territórios quilombolas brasileiros.[22]
Esses indicadores nos remetem à histórica desigualdade racial que secularmente persiste nos Estados Unidos, e também no Brasil. A pandemia da Covid-19 certamente exacerba as desigualdades raciais, contudo, é preciso ir além dessa ilustração em números. Nos deparamos então com a necessidade urgente de desvelar o problema estrutural do racismo no Brasil fundado no mito da democracia racial, que consiste na raiz de todas as desigualdades sociais, encravada e erguida pelos sistemas escravocrata e colonial, até hoje persistentes. Nesse sentido, a interpretação das desigualdades raciais no contexto da pandemia precisa ser feita a partir da lógica do racismo estrutural e do debate sobre privilégios que ao longo do tempo vêm determinando os lugares sociais das pessoas de acordo com a raça ou etnia.
Assim como as desigualdades étnica e a racial, a desigualdade de gênero no Brasil necessita ser compreendida à luz dos problemas estruturais estabelecidos pelos sistemas escravocrata, colonialista e patriarcal. A primeira pessoa a morrer de Covid-19 no estado do Rio de Janeiro – que hoje ocupa o segundo lugar no ranking de óbitos e infecções em todo o país, foi Cleonice Gonçalves, mulher negra, trabalhadora doméstica[23], idosa, diabética e infectada no local de trabalho por sua empregadora, moradora do Leblon, bairro com o metro quadrado mais caro da capital fluminense que retornava de uma viagem à Itália[24]. O caso do menino Miguel Otavio, de 5 anos, filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata de Souza[25], é uma das incontáveis tragédias que revelam as desigualdades estruturais no Brasil, impossíveis de serem compreendidas de forma isolada.
Em toda e qualquer situação epidêmica, o trabalho de profissionais da saúde, especialmente agentes comunitários, equipes de enfermagem, de cuidadores e as atividades domésticas são essenciais na prevenção e no tratamento das doenças. Tradicionalmente, esse tipo de trabalho é predominantemente realizado por mulheres e, em geral, é considerado como de menor prestígio ou mesmo invisível e, no caso dos afazeres domésticos não remunerados e sem valoração econômica[26]. O acontecimento da pandemia da Covid-19 não apenas aumenta a demanda por essas atividades como evidencia o quanto essa crise afeta de forma diferente homens e mulheres, negros e negras.
Observando o perfil dos profissionais de saúde no país, diretamente expostos à infecção do vírus e que mesmo antes da pandemia já se submetiam à condições precárias e a sobrecarga de trabalho, as mulheres, sobretudo as negras, seguem ocupando posições subalternas nas equipes: mais da metade do corpo médico é composta por homens e entre estes, 77% são brancos. Entre trabalhadores e trabalhadoras da enfermagem, as mulheres compõem 85% e as mulheres negras representam mais da metade do total de profissionais (53%).[27]
Assim como enfermeiras e domésticas, a demanda por profissionais dos cuidados tem aumentado significativamente no Brasil: entre 2004 e 2017, o número de profissionais cresceu 690%, sendo que entre estes, as mulheres representam 85%.[28] Considerando que as pessoas idosas e com doenças crônicas fazem parte do grupo de risco para a Covid-19, verifica-se que a ampliação dessa demanda tem levado a situações de abusos, como a não dispensa por parte dos empregadores, sobrecarga de trabalho, realização de outras atividades domésticas e exposição à informalidade[29].
Além de acentuar o desequilíbrio na realização das tarefas entre homens e mulheres, o isolamento social ampliou a violência doméstica contra meninas e mulheres. Em 12 estados brasileiros, no período entre os meses de março e abril, houve um aumento de 22,2% nos casos de feminicídio, com 143 mulheres mortas por fatos relacionados à sua condição de mulher. No estado de São Paulo, os casos de feminicídio cresceram 41,4% no mesmo período. O número de mulheres vítimas de homicídio cresceu em 6% e a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, registrou crescimento de 34% de denúncias comparado ao mesmo período do ano de 2019. Por outro lado, verifica-se uma redução dos registros de lesão corporal dolosa decorrentes de violência doméstica e estupros em delegacias de polícia, o que indica que, com o isolamento, mulheres vítimas de violência têm encontrado maiores dificuldades de efetuar denúncias. [30]
A pandemia da Covid-19 expõe e agrava a desigualdade do Brasil profundo e originário
Estamos agora no que se denomina a terceira fase da pandemia da Covid-19 no Brasil: a interiorização do vírus nas pequenas cidades e regiões rurais do interior do país. A primeira fase teve início nos bairros ricos e de classe média das grandes cidades que importaram o vírus a partir de viagens internacionais, seguido da transmissão comunitária e deslocamento da doença para periferias e bairros mais pobres.
A hierarquia entre regiões de influência das cidades e a estrutura da rede urbana e fluvial explicam a interiorização do vírus. Cidades médias funcionam como polos regionais e atraem a população de municípios menores em busca de infraestrutura de saúde, por exemplo. Pesquisadores também alertam para o risco do fluxo de deslocamento de população das grandes cidades para cidades médias e pequenas do interior, motivada pela crise do desemprego e mesmo a presença de familiares que necessitam de cuidados, como os grupos de risco. Tal mobilidade pode servir como vetor de contaminação, levando a Covid-19 para locais ainda não afetados e que dispõem de menor ou nenhuma infraestrutura, equipamentos e profissionais de saúde para tratamentos de alta complexidade.

A vulnerabilidade das regiões interioranas é calculada pelas características de sua população (idosos, comorbidades preexistentes, inscrição no CadUnico, por exemplo), da sua economia local, da capacidade de investimento dos municípios e da estrutura do sistema de saúde. Seguindo esses fatores, o interior das regiões Norte e Nordeste se apresentam como mais vulneráveis pois, embora essas regiões tenham baixa densidade populacional, a estrutura e organização do sistema de saúde ainda é ineficiente[31].
Isso explica a explosão da pandemia na Amazônia e o colapso do sistema de saúde no estado do Amazonas, o maior estado em proporções territoriais do país, mas que só tem disponibilidade de leitos de UTI na capital Manaus. O Amazonas apresenta uma das maiores médias de deslocamento para tratamento de saúde de alta complexidade no país, chegando a 462 km[32].
Segundo grupo de pesquisa encabeçado pelo sociólogo Arilson Favareto, o retrato é ainda mais assustador, uma vez que os locais onde a pandemia tem se manifestado de forma mais concentrada até o momento não são os municípios que apresentam maior vulnerabilidade. E isso deve ditar a curva da doença no país nas próximas semanas, com o avanço da Covid-19 no território nacional em localidades com carências maiores.
A interiorização da circulação do vírus no Brasil também alerta para os impactos da pandemia junto a povos e comunidades tradicionais no país, sobretudo junto aos povos indígenas. A maioria dos casos de Covid-19 registrados entre indígenas ocorre nos estados da Amazônia. No estado do Amazonas, as regiões da calha do rio Solimões e do Alto Rio Negro são as áreas que concentram o maior número de populações indígenas e também de contaminação (614 casos) e óbitos indígenas (28)[33]. O transporte fluvial irregular tem sido apontado como uma das principais causas da disseminação no interior do estado, assim como os deslocamentos às cidades próximas que já apresentam casos, para compras de gênero alimentícios e combustível.
Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs/Sesai) do estado do Pará e Roraima também registram alto número de contaminados e óbitos. Há notícias de que algumas comunidades inteiras saíram de suas aldeias e adentraram para o interior das terras indígenas com a finalidade de melhor se protegerem. No Parque Indígena do Xingu (MT), que sofre pressões como desmatamento, pesca ilegal e grandes plantios de soja em seu entorno, várias aldeias devem cancelar a tradicional cerimônia do Kuarup após a confirmação dos dois primeiros casos da Covid-19.
Logo no início da pandemia, pesquisadores alertavam para a necessidade de ações de prevenção da contaminação junto aos povos originários[34]. O aumento da contaminação nessas populações pode significar mais um genocídio praticado contra os povos indígenas da América Latina. Registros históricos mostram o impacto devastador de doenças infectocontagiosas, como gripe, sarampo, tuberculose e varíola em povos indígenas, que chegaram a dizimar grupos étnicos inteiros.
Para priorizar ações, estudos e pesquisas avançaram na elaboração de índices de vulnerabilidade das Terras Indígenas à Covid-19[35], considerando variáveis como percentual de idosos e fatores de risco, média de moradores por domicílio, situação de regularização da Terra Indígena e proximidade com municípios com disponibilidade de leito e UTI, por exemplo. A principal estratégia para prevenção seria o controle da entrada e circulação de pessoas contaminadas pela doença em seus territórios, visto que as práticas comunitárias e formas de organização social dos povos indígenas, com o compartilhamento de objetos de uso pessoal e o extremo convívio comunitário em grandes aldeias, dificultam um isolamento social.
No entanto, a variável das invasões e atividades ilícitas praticadas por garimpeiros, grileiros e madeireiros que não fazem home office[36], tornam a situação ainda mais dramática: a boiada está passando, a exemplo do óbito de 5 guerreiros do povo Munduruku da região do Tapajós em apenas um mês, mortes relacionadas à presença de garimpos ilegais naquela região[37]. A pandemia se torna, literalmente, uma cortina de fumaça para o avanço do desmatamento na Amazônia, que registrou um aumento de 51% em relação ao mesmo período no ano anterior, segundo alerta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
As organizações indígenas também alertam para a subnotificação dos casos de contaminação e óbitos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde. Segundo a Sesai, são 85 óbitos de indígenas pela Covid-19 confirmados em todo o país[38] enquanto os dados das organizações indígenas, consolidado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), indicam 236 óbitos e 93 etnias atingidas[39]. Tal divergência revela a discriminação e a invisibilização da identidade indígena em contexto urbano, já que o atendimento aos que vivem nas cidades é feito fora do sistema de saúde indígena, de modo que as autoridades locais apenas contabilizam os casos de indígenas aldeados, prevalecendo a ideia colonialista de que se mora na cidade, não é mais índio.
No Brasil, os povos indígenas têm maior vulnerabilidade do ponto de vista epidemiológico, mas isso se agrava em função das desvantagens econômicas, sociais e de saúde em relação aos não indígenas, mesmo os que habitam as mesmas localidades. Dessa forma, há uma desigualdade prévia em relação às suas condições de vida e saúde que afeta a esses povos de forma ainda mais incisiva.
O acontecimento, suspensão da hegemonia e disputa política
Alterando a normalidade estabelecida pelas relações de poder dominantes, a pandemia da Covid-19 enquanto acontecimento, expõe e agrava as desigualdades. Ofusca o papel redentor do mercado no imaginário hegemônico. Abre espaços para a importância da solidariedade na sociedade. Ressuscita demandas e expectativas sobre o Estado. Coloca em suspense a hegemonia, criando espaços para a disputa política de discursos em nível nacional e internacional.
Qualquer tipo de ordem social é resultado de práticas hegemônicas. Não existe um fundamento final. Falar de hegemonia significa reconhecer que uma ordem social é uma articulação contingente de relações de poder que carece de um fundamento racional último. Assim, toda sociedade é sempre produto de uma série de práticas hegemônicas que criam uma determinada ordem num contexto contingente. As coisas sempre poderiam ter sido diferentes. Uma ordem implica a exclusão de outras possibilidades. Uma ordem é sempre política, não “natural” (Mouffe, 2014)[40]. Como Mouffe lembra, afirma-se que a ordem estabelecida pela globalização neoliberal é um destino que tem que ser aceito, já que não existiriam mais alternativas. Mas o atual estado de globalização, longe de ser natural, é resultado de uma hegemonia neoliberal e estruturado através de relações de poder específicas. Ele pode ser desafiado e transformado e, para tanto, existem alternativas disponíveis ou que podem vir a ser criadas no processo de disputa. É possível mudar as coisas politicamente quando se pode intervir nas relações de poder para transformá-las (Mouffe, 2014).[41]
Cabe lembrar que momentos de crise de modelos hegemônicos propiciam ou criam condições para o surgimento de populismos, que podem ser reacionários ou progressistas, como nos lembra Mouffe.[42] O populismo é um modo de articulação política que se manifesta numa situação social na qual as demandas da população tendem a reagrupar-se pelo fato de não terem sido satisfeitas.[43] Mas essa precondição não é suficiente. Só há populismo se existe um conjunto de práticas político-discursivas que constroem um sujeito popular (o povo), a partir da delimitação de uma fronteira interna que divide o espaço social em dois campos antagônicos: o eles (os dominantes, as elites) e o nós (os dominados, o povo). A lógica dessa divisão é estabelecida pela criação de uma cadeia de significados entre uma série de demandas sociais nas quais o momento equivalencial prevalece sobre a natureza diferencial das demandas. Essa cadeia de significados – ou cadeia equivalencial – não é o resultado de uma coincidência puramente fortuita. Ela deve ser consolidada mediante a emergência de um elemento – o significante vazio[44], que outorga coerência à cadeia por significá-la como totalidade (Laclau, 2009:64)[45]. O significado reacionário ou progressista e os impactos na sociedade e no Estado do populismo como articulação política dependem da maneira como se constrói a oposição eles/nós, da capacidade de mobilização dessas identidades[46], das correlações de força e das estruturas socioeconômicas nas quais se desenvolve.
Assim, a pandemia da Covid-19 enquanto acontecimento, ao romper com as regularidades, com a ordem das coisas já estabelecidas e aceitas como “o normal”, também coloca em suspensão a hegemonia e abre as portas para a disputa política de discursos – muitos deles ativados por articulações populistas – e dessa forma essa ordem já estabelecida perde sua aura de verdade e destino imutáveis, e se revela como aquilo que é: apenas uma entre outras alternativas possíveis de projetar e gerir o mundo.
A análise política dos discursos e os marcos interpretativos da pandemia
Acontecimento, desigualdades, hegemonia, populismo e disputa de discursos: com estes conceitos e referenciais teóricos, propomos uma abordagem da pandemia da Covid-19 que se expressa num trabalho mais amplo[47], que articula metodologicamente os princípios da análise política do discurso e a abordagem de marcos interpretativos.
A análise política do discurso se fundamenta no olhar de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, cientistas políticos que renovaram o pensamento sobre a democracia e o político, para os quais as disputas de narrativas presentes no contexto democrático remetem a uma confrontação entre diferentes práticas e projetos antagônicos. O antagonismo é inerente ao político e revela as posições extremas da sociedade, em que o significado social em alguma medida é sempre contestado e não pode ser completamente estabilizado. As questões políticas sempre envolvem escolhas entre alternativas muitas vezes opostas de sociedade. E as opções diante de situações que extrapolam a normalidade gerencial das políticas públicas e de seus componentes técnicos e administrativos configuram situações e opções disruptivas como as associadas às pandemias e estão inseridas no campo dos embates e disputas antagônicas.[48]
Ao mesmo tempo, seguindo Stuart Hall, consideramos que no mundo de hoje, há uma pluralidade de posições ocupadas pelos sujeitos. Essas identidades são múltiplas, descentradas, deslocadas e fragmentadas. Isto é, estão em processo de reconstrução e abertas a diferentes articulações, sempre parciais e não definitivas.[49] O discurso político presente nas narrativas em disputa tem a virtude – e o poder – de articular essas identidades múltiplas e contingentes dos sujeitos.
Por sua vez, a análise dos marcos interpretativos (frame analysis) desenvolvida por autores como Lakoff, Snow, Benford e Galván considera, na mesma perspectiva, o discurso político como um conjunto articulado de marcos de interpretação da realidade que funciona estruturando pensamento, fala e ações individuais e coletivas.[50] Os marcos são estruturas mentais que compõem nossa maneira de ver o mundo. Como resultado, eles formam as metas que estabelecemos, os planos que fazemos, nossa forma de agir e o que conta como resultado, bom ou ruim, de nossas ações. Na política, nossos marcos moldam as políticas públicas e as instituições que criamos para realizar essas políticas. Os marcos de referência não podem ser vistos ou ouvidos. Eles fazem parte do que os cientistas cognitivos chamam de “inconsciente cognitivo”, estruturas mentais que não podemos acessar conscientemente, mas das quais tomamos conhecimento por suas consequências: nossos padrões de raciocínio que estruturam o que chamamos de senso comum. Também conhecemos os marcos através da linguagem. Todas as palavras são definidas em relação a marcos conceituais. Quando você ouve uma palavra, seu marco (ou coleção de marcos) é ativado no cérebro. Mudar o marco é mudar a forma como as pessoas veem o mundo. É mudar o que se entende por senso comum (Lakoff, 2007: 4). Assim, a prática discursiva política, que inclui falas, textos, performances e ações significativas dos sujeitos, e os marcos de interpretação da realidade que expressam, são um dos principais meios em que se manifesta a disputa hegemônica, propiciando a articulação das identidades múltiplas dos sujeitos.
É com este instrumental metodológico que no contexto do acontecimento pandemia, procuramos reconstruir o campo discursivo sobre a Covid-19 com os principais discursos em disputa: o “negacionista” e o “científico”.
Reconstruindo o campo discursivo, os discursos em debate e os principais porta-vozes
O campo discursivo sobre a pandemia em nível nacional e suas influências internacionais é reconstruído principalmente a partir das práticas discursivas expressas em falas, documentos, performances e decisões de autoridades nacionais e estaduais; de líderes de países estrangeiros chaves no contexto geopolítico; de representantes de instituições nacionais e internacionais relacionadas ao campo da saúde e da economia; de entidades da sociedade civil; de representantes de igrejas, particularmente, católica e evangélicas; em notícias, posicionamentos e depoimentos veiculados pela mídias tradicionais e pelas mídias sociais; e em entrevistas e artigos que conformam o debate intelectual, principalmente sobre o tratamento da pandemia e os impactos sistêmicos futuros.
Nesse campo discursivo, poderiam ser delimitados dois discursos mestres, nos quais oscilam e se articulam com ênfase diferente dois polos temáticos: a sustentabilidade da vida e a sustentabilidade da economia. Por um lado, temos o discurso “negacionista”, defendido por algumas autoridades e lideranças econômicas e religiosas, mídias tradicionais e sociais, que minimiza ou não reconhece a amplitude e importância da pandemia – é uma gripezinha – privilegiando a sustentabilidade da economia, incentivando a volta ao trabalho e o fim das medidas restritivas da quarentena horizontal e de lockdown.
E por outro, o discurso “científico”, defendido por médicos sanitaristas com apoio de organismos internacionais, mídias, governadores e muitos governos estrangeiros, que privilegiam o cuidado à saúde e à sustentabilidade da vida, defendendo o isolamento social com a quarentena horizontal e até lockdown como a melhor forma de garantir a vida e também o êxito futuro em termos de sustentabilidade econômica.
Ambos discursos mestres em disputa – “negacionista” e “científico” – são reconstruídos a partir das práticas discursivas dos diversos atores chave. Essas práticas estão na origem dos discursos, mas também reproduzem ou atualizam os discursos mestres, conformando diversas variantes de acordo com os embates da política de cada contexto específico. Cabe lembrar que as práticas discursivas se desenvolvem no plano ôntico da política – isto é, da diversidade de práticas e instituições do cotidiano, enquanto o discurso que organiza essas práticas se situa no plano ontológico do político, isto é, do processo de instituição ou conformação do social.[51]
Entre os poucos porta-vozes no nível internacional do discurso “negacionista” e suas variantes, identificamos presidentes e primeiros ministros de países como EUA (Trump) e Grã-Bretanha (Johnson antes de ser infectado pela Covid-19), assim como líderes autoritários de países como Bielorrússia (Lukashenko), Tajiquistão (Berdymukhamedov), Tanzânia (Magufuli) e Nicarágua (Ortega). Em nível nacional, encontramos o presidente do Brasil, ministros e membros do segundo escalão, parlamentares do dito “novo centrão”, empresários, lideranças do agronegócio, membros das forças armadas, da polícia militar e dos bombeiros (aposentados e na ativa), lideranças de igrejas pentecostais e blogueiros e produtores de fake-news nas mídias sociais. Desse conjunto de atores em nossa pesquisa, daremos destaque ao presidente dos EUA, e a nível nacional, ao presidente do país e lideranças de igrejas pentecostais, além das mídias sociais.
Entre os diversos porta-vozes do discurso “científico” e suas variantes, no nível internacional, temos a Organização Mundial da Saúde, o Papa, presidentes e primeiros ministros da Argentina, Nova Zelândia, Rússia, China, Chile, França, Alemanha entre outros. Em nível nacional, encontramos um espectro diverso de porta-vozes: a Fiocruz, os governadores do Nordeste, de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás; o Comitê Científico do Nordeste; ex-ministros da Saúde, o presidente da Câmara dos Deputados, parlamentares, ex-presidentes da República, empresários, lideranças da Igreja Católica, membros de movimentos sociais, redes, ONGs e de outras entidades da sociedade civil, e os principais veículos da mídia tradicional.[52] Desse conjunto, daremos destaque à Organização Mundial da Saúde, o Papa e os presidentes e primeiros ministros da Argentina (Fernández), Nova Zelândia (Ardern), Rússia (Putin), China (Xi Jinping), Chile (Piñeira), a Fiocruz, os governadores do estados do Maranhão, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás, o Comitê Científico do Nordeste e o presidente da Câmara de Deputados (Maia), além das mídias tradicionais.
Recapitulando
Como foi apontado no início deste artigo, convidamos o leitor a olhar a pandemia da Covid-19, que tem colocado um quarto da população mundial frente a medidas de isolamento, como um acontecimento. Através desse olhar, procuramos destacar os impactos desiguais da pandemia, buscando considerar a suspensão da hegemonia e a oportunidade de disputa política que essa suspensão abre. Explicitamos também o instrumental metodológico da pesquisa maior, fundado na análise política dos discursos e na abordagem de marcos interpretativos. Com esse instrumental, procuramos reconstruir sucintamente o campo discursivo e os discursos em debate para finalmente identificar os principais porta-vozes dos discursos negacionista e científico.
Servindo-nos desses elementos como base e referência, no próximo artigo da série, abordaremos o discurso “negacionista”. Partindo de uma sucinta caracterização dos seus principais porta-vozes, a análise apresentará o diagnóstico que esse discurso traça acerca do problema, o tom predominante de suas práticas discursivas, as demandas e os grupos que se articulam em identidades políticas antagônicas – o “eles” e o “nós” – com os antagonismos em nível nacional e/ou internacional que se reproduzem ou se criam na disputa e as propostas para enfrentar e sair da pandemia.
Jorge Osvaldo Romano, Thais Ponciano Bittencourt, Paulo Augusto André Balthazar, Liza Uema, Eduardo Britto Santos, Annagesse de Carvalho Feitosa, Renan Alfenas de Mattos, Paulo Petersen, Juanita Cuellar Benavídez, Ana Carolina Aguiar Simões Castilho, Caroline Boletta de Oliveira Aguiar, Érika Toth Souza, Larissa Rodrigues Ferreira, Myriam Martinez dos Santos, Vanessa Barroso Barreto são pesquisadoras e pesquisadores do grupo de pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)” vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade e ao Curso de Relações Internacionais do DDAS/ICHS da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, registrado no CNPq e com apoio de ActionAid Brasil.
Fotos gentilmente cedidas pelo fotógrafo André Lucas e Marcos Alonso (@andrelucas1991 e @marcosalonso.photo)
[1] Ramonet, Ignacio: La pandemia y el sistema mundo. Le Monde Diplomatique em español, 25 de Abril de 2020.
[2] Han, Byung-Chul. La Emergência viral e el mundo de mañana, in: https://dialektika.org/wp-content/plugins/algori-pdf-viewer/dist/web/viewer.html?file=https%3A%2F%2Fdialektika.org%2Fwp-content%2Fuploads%2F2020%2F04%2FSopa-de-Wuhan-ASPO.pdf
[3] Deleuze via no acontecimento algo como um ruído no fluxo entre a ordem da linguagem e a desordem do mundo, que fratura a cadeia de sentidos e produz o novo na linguagem, nas subjetividades e, também, no mundo (Zourabichvili, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará Sinergia Ediouro 2009)
[4] Han, Byung-Chul. Psicopolítica. Belo Horizonte: Ayne 2018.
[5] O político tem a ver com o nível ontológico, enquanto dimensão do antagonismo constitutiva das sociedades humanas. A política tem a ver com o nível ôntico, enquanto o conjunto de práticas e instituições através das quais se cria uma determinada ordem, organizando a coexistência humana no contexto da coletividade derivada do político (Mouffe, Chantal: En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011: pp. 15-16)
[6] Idem nota 5.
[7] Roberts, Michel, in https://www.sinpermiso.info/textos/confinados
[8] Mazzucato, Mariana e Quaggioto, Giulio in https://www.sinpermiso.info/textos/el-gran-fracaso-del-gobierno-minimo
[9] Roberts, Michel, in https://www.sinpermiso.info/textos/confinados
[10] Roberts, Michel, in https://www.sinpermiso.info/textos/china-la-encrucijada-tras-la-pandemia
[11] O relatório “Responsabilidade compartilhada, solidariedade global: respondendo aos impactos socioeconômicos da Covid-19”, divulgado em 31 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sugere uma série de políticas sociais a serem desenvolvidas pelos governos nacionais, assim como ações multilaterais para enfrentar o problema que se tornou global, além de financiamento humanitário para assistência de países e povos de maior vulnerabilidade social e econômica.
[12] Segundo o Banco Mundial, o vírus poderá levar de 40 a 60 milhões de pessoas à pobreza extrema em 2020. A Organização Internacional do Trabalho estima que a metade da população ativa poderá perder seus empregos e o Programa Mundial de Alimentos prevê que 265 milhões de pessoas sofram uma crise alimentar. Com o fechamento de escolas e as desigualdades na aprendizagem à distância, o PNUD estima que 80% das crianças em idade de receber educação primária dos países com baixo nível de desenvolvimento humano estão sem acesso à educação e mais da metade da população mundial carece de serviços sanitários essenciais (PNUD, 2020). Disponível em: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2020/covid-19–desenvolvimento-humano-deve-retroceder-pela-primeira-v.html
[13] Ashwin Vasan é médico e professor de saúde pública da Universidade de Columbia.
[14] Djamila Ribeiro é filósofa, acadêmica, escritora e organizadora da Coleção Feminismos Plurais. Premiada pelo Prince Claus Laureate e na lista das 100 mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo da BBC, é colunista da Folha de São Paulo e da Revista Elle. O artigo citado está disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-cuidava-da-patroa-contagiada-pelo-coronavirus.shtml
[15] Cabe ressaltar que mais da metade da população brasileira é negra (56%), enquanto nos Estados Unidos representa 13%.
[16] Um dado alarmante é o número de encarcerados infectados no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, que representa 5,7% do total de pessoas infectadas em todo o Distrito Federal. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/papuda-chega-a-mil-casos-de-covid-19-em-meio-a-desespero-de-parentes.shtml
[17] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/06/05/negros-morrem-40-mais-que-brancos-por-coronavirus-no-brasil
[18] GOES, Emanuelle F.; RAMOS, Dandara O.; FERREIRA, Andrea J. F. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020, e00278110. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00278. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462020000300301
[19] De acordo com o IBGE, em 2018, verificou-se maior proporção da população preta ou parda residindo em domicílios sem coleta de lixo (12,5%, contra 6% da população branca), sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca) e sem esgotamento sanitário (42,8%, contra 26,5% da população branca. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf
[20] Os dados das cidades de São Paulo e Manaus referem-se às datas de 29 e 30 de abril, respectivamente, e os dados da cidade do Rio de Janeiro são referentes à data de 05 de maio de 2020. Disponível em: https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/.
[21] Segundo pesquisa realizada pela Associação Brasileira do Setor de Bicicletas Aliança Bike, entre 2018 e 2019, o número de entregadores ciclistas por aplicativo multiplicou-se por 5,4. A maioria desses trabalhadores informais moram na periferia, são negros (71%), homens e jovens (50% tem até 22 anos), com ensino médio completo (53%) e estavam desempregados (59%), trabalhando todos os dias da semana, com jornada diária de 9,2 horas, pedalando diariamente a média de 60 km e com remuneração mensal inferior a um salário mínimo. Disponível em: http://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/
[22] Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/
[23] Traçando breve perfil do trabalho doméstico remunerado no Brasil, 95% são mulheres, em sua maioria pobres, com baixa escolaridade, moradoras de áreas periféricas e usuárias de transporte coletivo. Metade delas são as únicas responsáveis pelas famílias. Do total de trabalhadoras, 63% são negras. No início da pandemia, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) iniciou a Campanha Cuida de Quem te Cuida para pressionar o Ministério Público do Trabalho que impeça os estados de incluírem o serviço doméstico como essencial durante a pandemia. Disponível em: https://www.cuidadequemtecuida.bonde.org/ e https://fenatrad.org.br/
[24] https://www.ufrgs.br/jornal/morte-de-trabalhadora-domestica-por-coronavirus-escancara-falta-de-politicas-para-proteger-a-classe/
[25] Sobre esta reflexão, acesse a entrevista com a historiadora e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Luciana da Cruz Brito disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52932110
[26] No Brasil, em 2019, as mulheres dedicavam 10,4 horas por semana a mais que os homens aos afazeres domésticos ou aos cuidados de pessoas, especialmente de crianças pequenas. A maior taxa de realização dessas atividades ocorreu entre as mulheres pretas (94,1%, sendo 91,5% entre brancas e 92,3% entre pardas). Independentemente da cor ou raça, a taxa de realização de afazeres domésticos é sempre maior entre as mulheres que as dos homens. Fonte: IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas
[27] Rede CoVida. A saúde dos trabalhadores de saúde no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Boletim CoVida: Pandemia de Covid-19. Edição 05. 18 de mai. de 2020. Disponível em: https://renastonline.ensp.fiocruz.br/recursos/boletim-covida-n-5-saude-trabalhadores-saude-enfrentamento-pandemia-covid-19
[28] Este crescimento não ocorre de forma igualitária, uma vez que é preciso considerar que a demanda por cuidados também aumentou para as mulheres mais pobres, que formam o grande contingente das trabalhadoras domésticas e que também necessitam de serviços e equipamentos públicos de cuidados para seus filhos e filhas e/ou pessoas doentes, idosas e/ou com deficiência.
[29] Vale lembrar que em julho de 2019, Bolsonaro vetou o Projeto de Lei nº 11, de 2016, que cria e regulamenta as profissões de Cuidador de Pessoa Idosa, Cuidador Infantil, Cuidador de Pessoa com Deficiência e Cuidador de Pessoa com Doença Rara e dá outras providências. Em 11 de dezembro de 2012, quando exercia o mandato de Deputado Federal pelo PP-RJ, o atual presidente da República foi o único parlamentar a votar contrariamente à PEC das Domésticas (PEC 66/2012).
[30] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Violência Doméstica durante a pandemia de Covid-19. Nota Técnica. Ed.2. 29 de mai. de 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-domestica-durante-pandemia-de-covid-19-edicao-02/
[31] Arilson Favareto junto como outros pesquisadores destacam o índice de vulnerabilidade dos municípios de iniciativa do Instituto Votorantim.
[32] Dados da “Pesquisa Regiões de Influência das Cidades – informações de deslocamentos para serviços de saúde – Notas Técnicas”, IBGE, 2020.
[33] Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, obtidos em 10 de junho de 2020.
[34] Carta “Covid-19 e povos indígenas – a urgente necessidade de ação” redigida por pesquisadores da Fiocruz dirigida ao Conselho Deliberativo (CD) da instituição em 15 de abril de 2020 acerca da COVID-19 e povos indígenas no Brasil, anexada ao relatório “Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica”. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtsaudeindigena/wp-content/uploads/sites/12/2020/04/Relat%C3%B3rios-t%C3%A9cnicos-COVID-19_procc-emap-ensp-covid-19-report4_20200419-indigenas.pdf
[35] “Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19 – Caderno de insumos”, Unicamp, 2020.
[36] Comentário de Paulo Moutinho, cientista do IPAM, sobre a redução da fiscalização ambiental durante a pandemia.
[37] Entre as vítimas estão o professor Amâncio Ikon Munduruku e o cacique da aldeia Sai Cinza, Vicente Saw Munduruku, ambas lideranças importantes na demarcação dos territórios no alto Tapajós.
[38] As informações são obtidas junto aos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), última atualização em 10 de junho de 2020, disponibilizada no site da Sesai.
[39] Dados atualizados em 10 de junho de 2020 e disponíveis na plataforma http://quarentenaindigena.info.
[40] MOUFFE, Chantal, Agonística. Pensar el mundo politicamente. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2014, p, 130- 131
[41] ibid
[42] MOUFFE, Chantal: Controvérsia sobre o populismo de esquerda. Le Monde Diplomatique Brasil, maio 2020).
[43] Laclau e Mouffe são intelectuais que têm enfrentado a questão do populismo sem preconceitos. Vale a pena trazer um comentário feito por Laclau após trinta anos de pesquisa e reflexão sobre o tema: …. podemos agora voltar a nos reportar à questão do populismo. Iniciamos nossa reflexão enumerando as estratégias discursivas mediante as quais o populismo foi ora descartado, ora subestimado; como fenômeno político, porém, jamais foi pensado em sua especificidade como um meio legítimo, entre outros meios de estruturação do vínculo político. E podemos desde já, manter uma forte suspeita de que a razão para o descarte do populismo não está totalmente desconectada daquelas invocadas naquilo que denominei a desqualificação das massas. Em ambos os casos, estamos diante das mesmas acusações de marginalidade, transitoriedade, pura retórica, vaguidão, manipulação e assim por diante. Há também outra suspeita a fervilhar em nossa mente: que em ambos os casos o descarte é ligado a um procedimento idêntico, isto é, o repúdio ao meio indiferenciado que é a multidão ou o povo em nome da estruturação social e da institucionalização. LACLAU, E. A Razão Populista Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013, p. 111 (tradução nossa)
[44] Para a teoria do discurso político da Escola de Essex, a noção de significante vazio refere-se ao momento em que palavras ou elementos de um discurso político perdem sua singularidade originária para significar todo o conjunto de demandas. Ocorre quando um discurso universaliza tanto seus conteúdos a ponto de ser impossível de ser significado de forma exata. É um significante vazio em função de sua natureza polissêmica que faz com que este esvazie seus conteúdos específicos. Consiste numa prática muito recorrente nos discursos políticos populistas.
[45] LACLAU, Ernesto. Populismo: qué nos dice el nombre?. In: Paniza, Francisco (org.). El populismo como espejo de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009.
[46] Identidade como um produto das relações de antagonismo, ou seja, se constrói por meio da diferença. Há a criação de um “nós”, que só existe pela demarcação de um “eles”. Além disso, sabe-se que o mesmo sujeito social pode ter identidades diversas, acionadas de acordo com o contexto em que está inserido.
[47] Além do artigo “A disputa de discursos sobre a pandemia” que foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, edição 155, junho 2020, pag. 11-13, os resultados dessa pesquisa mais ampla serão publicados em sequência neste espaço do Le Monde Diplomatique Brasil online. Em uma primeira parte, os trabalhos compreendem a reconstrução do campo discursivo, a análise dos discursos em disputa (negacionista e científico), os meios de divulgação e reprodução dos discursos, a reconfiguração política resultante e as visões de futuro pós-pandemia. Na segunda parte compartilharemos as análises específicas das práticas narrativas dos principais porta-vozes dos discursos negacionista e científico ao nível nacional e internacional.
[48] Laclau, E. Los fundamentos retóricos de la sociedad. Buenos Aires: FCE, 2014; Mouffe, Ch., Agonística. Pensar el mundo politicamente. Buenos Aires, FCE, 2014
[49] Hall, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Ed., 8ª ed., 2003
[50] Lakoff, George. No pienses en un elefante. Lenguaje y debate político. Editorial Complutense, Madrid, 2007; Snow, D. e Benford, R. “Ideology, Frame Resonance and Participant Mobilization” in B. Klandermans, H. Kriesi y S. Tarrow (eds.) From Structure to Action: Comparing Social Movement Research across Cultures. Greenwich: JAI Press, 1988; Galván, I. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Madrid: Universidad Complutense, tesis de doctorado, 2012.
[51] Mouffe, Chantal: En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011: pp. 15-16
[52] Cabe destacar limites na identificação de porta-vozes do discurso “científico” pelas escolhas da mídia, que faz com que lideranças com posicionamentos claros – como vários governadores do Nordeste ou líderes de partidos de esquerda – sejam preteridos ou invisibilizados, não ganhando espaço nos debates veiculados publicamente. É sintomática também a ausência ou presença diluída da voz do “mercado” que em outros contextos é permanentemente acionada.