O voto de qualidade no Carf e o interesse público
O que se vislumbra em futuro breve, se não afastada essa anomalia introduzida no âmbito do processo administrativo fiscal federal, é que os grandes contribuintes estabelecerão o que e quanto querem pagar de tributos
Nesta quarta-feira, 23 de março, está previsto o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) das ADIs nº 6399, 6403 e 6415, nas quais se discute o “fim do voto de qualidade” no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O dispositivo trouxe uma nova regra de solução dos litígios fiscais julgados pelo Carf nos casos de exigência de créditos tributários, extinguindo a exigência em favor dos contribuintes em razão de empate.
O dispositivo veio modificar, abruptamente e sem qualquer debate prévio pela sociedade e pelo Congresso Nacional, uma regra existente desde os primórdios dos conselhos de contribuintes, e que está vinculada à composição paritária do órgão de julgamento entre os representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes. Mediante a qual reserva-se ao ente estatal a presidência dos órgãos colegiados e o voto de qualidade em caso de empate nas votações, fundado na soberania do Estado democrático de direito, no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e na presunção de legalidade e legitimidade do ato administrativo.
Essa ruptura legislativa violou os princípios da legalidade, da impessoalidade, da proporcionalidade, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da segurança jurídica e do devido processo legal substantivo, que norteiam as relações entre o Fisco e os contribuintes.
Por determinação legal, o tribunal é composto por membros indicados por representações da sociedade civil – na prática limitadas às grandes entidades empresariais, cujos interesses não se confundem com o conjunto da sociedade – que ao lado de igual número de representantes da Fazenda Nacional formam um colegiado paritário.
Sob essa perspectiva, o modelo, ao menos em tese, mostrava-se equilibrado ao conferir ao presidente do colegiado o voto de qualidade, sem prejuízo do contribuinte questionar a decisão administrativa que lhe fosse desfavorável junto ao Poder Judiciário, faculdade não permitida ao Fisco em caso de decisão favorável ao contribuinte, em face do disposto no art. 146, inc. IX do Código Tributário Nacional (CTN).
O novo dispositivo inverteu o sinal e, em caso de simples empate na votação, acabou estabelecendo uma espécie de voto de qualidade às avessas, só que sempre a favor do particular, afastando assim a presunção legal de legitimidade do ato administrativo, mesmo sem a maioria formada para tanto.
Pode-se apontar defeitos no atual modelo, começando pelo fato de que inexiste similar entre os países desenvolvidos, passando pela própria representação dos contribuintes, hoje vinculadas exclusivamente às confederações empresariais representativas dos setores econômicos.
De fato, não existe em países desenvolvidos modelo similar de revisão administrativa com participação de representantes de entidades empresariais como no Brasil, onde remonta a criação do 1º Conselho de Contribuintes pelo Decreto 16.580 de 1924. Na grande maioria dos países esta é atribuição interna da administração fiscal e onde há participação da sociedade civil esta representação não é exclusiva das corporações empresariais.
Ora, por que o privilégio dado às confederações empresariais? Porque não há representação dos trabalhadores, dos profissionais liberais, dos servidores públicos ou dos consumidores, que como pessoas físicas são, de fato, os contribuintes diretos ou indiretos dos impostos e contribuições. E, considerando que a arrecadação tributária é essencial ao funcionamento do Estado, por que não há representação dos beneficiários de políticas públicas?
O fim do voto de qualidade agrava ainda mais essa situação, na medida em que o ente estatal que tem o poder/dever de realizar a arrecadação tributária torna-se hipossuficiente na relação com os contribuintes, ficando à mercê do interesse econômico privado.
Importante observar que as decisões por voto de qualidade no âmbito do Carf representavam, entre 2017 e 2020, entre 5% e 7% dos resultados dos processos julgados, no entanto a maior parte delas era aplicada aos processos de valores vultosos de interesse de grandes corporações, via de regra envolvendo discussões sobre planejamentos tributários considerados abusivos pelo Fisco e/ou sobre a interpretação de normas legais, tais como a tributação de lucros no exterior ou ajustes de preços de transferência.
A consequência inicial, prática e concreta, da eliminação do voto de qualidade no atual modelo de julgamento no âmbito do Carf será a supressão do controle jurisdicional pelo Poder Judiciário sobre a correta interpretação da legislação tributária.
Para além do desequilíbrio concorrencial em face da desigualdade de carga entre contribuintes em situações equivalentes e da insegurança jurídica gerada, o que se vislumbra em futuro breve, se não afastada essa anomalia introduzida no âmbito do processo administrativo fiscal federal, é que os grandes contribuintes estabelecerão o que e quanto querem pagar de tributos, não mais a lei, aprovada pelos representantes do povo, não mais o Poder Judiciário e muito menos o Fisco Federal.
Tudo isso fruto de uma inversão completa de valores que dá ao interesse privado a supremacia ante ao interesse público, com todos os prejuízos inerentes do ponto de vista da sociedade. Cabe ao STF recolocar as coisas nos seus devidos lugares, declarando a inconstitucionalidade formal e material do art. 28 da Lei nº 13.988/2020.
Isac Falcão é presidente do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional).