Obrador assume posição de liderança na América Latina
Presidente mexicano busca instrumentalizar as relações com a América Latina para mobilizar sua base de apoio interna e consolidar uma posição competitiva para seu partido nas eleições de 2024
O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, vem ocupando espaços importantes na América Latina e no Caribe. No entanto, a recondução de Luiz Inácio Lula da Silva para o terceiro mandato deve acirrar a disputa por influência política entre os dois candidatos a líder da centro-esquerda latino-americana. A região é a principal área de influência do Brasil e base para uma projeção mais global após o vácuo deixado por Jair Bolsonaro (2019-2022). Para o México, a América Latina e o Caribe são um contrapeso à relação fortemente assimétrica com os Estados Unidos, principal sócio comercial e de investimentos.
A política externa de Obrador lhe permite manter uma posição crítica ao status quo para dar voz ao que ele chama de “Quarta Transformação” e utilizar a inserção internacional do México como uma extensão do seu mandato que, em breve, chega ao fim. No entanto, diferentemente do Brasil, o México tem muito menos espaço para aproveitar o contexto regional favorável nos marcos da chegada de governos de perfil político-ideológico de esquerda e centro-esquerda, caso de Gabriel Boric, no Chile; Gustavo Petro, na Colômbia; Alberto Fernández, na Argentina; e de Lula. Isso porque, mesmo uma política mais autônoma no campo político demanda a manutenção de um grau de entendimento considerável com os Estados Unidos por causa da interdependência entre os países.
AMLO, como é conhecido, buscou assumir uma posição de mediador frente aos Estados Unidos para angariar recursos para projetos na América Central. O governo mexicano também desenvolveu esforços de retomada da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) depois de dois anos de paralisação, além de adotar uma postura solidária aos países alvo de críticas norte-americanas, como Cuba e Venezuela.
A posição de Obrador é dotada de forte pragmatismo. O presidente mexicano busca instrumentalizar as relações com a América Latina para mobilizar sua base de apoio interna e consolidar uma posição competitiva para seu partido nas eleições presidenciais de 2024. Para isso, faz acenos aos governos da região, mas também adota um conjunto de políticas de assistência social voltada para populações mais vulneráveis, como o programa de Pensión para Adultos Mayores, o Jóvenes Construyendo el Futuro e o Sembrando Vidas. As iniciativas representam uma tentativa de angariar capital político e liderança, mas têm baixa chance de sucesso se não articuladas adequadamente com os Estados Unidos em razão da necessidade de recursos financeiros para realizá-las.
A região da América Latina e do Caribe é destacada como prioritária nos documentos oficiais e nos discursos de Obrador. A América Central foi o primeiro destino internacional do presidente mexicano, sem contar as três visitas anteriores ao viznho do norte. Na ocasião, López Obrador esteve na Nicarágua, El Salvador, Honduras e Cuba.
O Plano Nacional de Desarrollo 2019-2024 destaca as relações com os países centro-americanos, em especial Honduras, El Salvador e Guatemala, região na qual o México possui presença mais assertiva pela proximidade geográfica e pela agenda migratória, que é um tema permanente nas relações México-Estados Unidos e na política interna estadunidense – em novembro de 2022, 37% dos imigrantes apreendidos na fronteira pelas autoridades norte-americanas provinham do México e dos países do Triângulo Norte, segundo dados do Pew Research Center.
A proposta de López Obrador era implementar o Plano de Desenvolvimento Integral (PNI), que tinha como objetivo principal combater as causas estruturais da migração internacional e evitar a utilização do México como território de trânsito para migrantes indocumentados que pretendiam solicitar asilo nos Estados Unidos.
Voltado para os países do Triângulo Norte e para o sudeste do México, o PNI tem como pilares a integração energética, a facilitação do comércio e o combate à mudança climática. Além da participação das agências da ONU, como a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), o programa seria financiado por doações dos países desenvolvidos e instituições financeiras internacionais, além da participação do setor privado. A realização de programas de assistência que estavam em curso no México serviria como uma espécie de validação internacional da agenda social do governo mexicano.
No entanto, apesar de partilharem o mesmo objetivo de controle migratório, os governos do México e dos Estados Unidos adotam estratégias bem distintas. Washington trabalha para desencorajar os fluxos por meio de medidas restritivas na fronteira binacional, assim como pressiona o vizinho a aumentar a concessão de vistos de trabalho para cidadãos centro-americanos que aguardam no México a decisão de asilo. Além disso, o governo democrata lançou sua própria iniciativa, a Parceria para a América Central. O programa foi lançado pela vice-presidente Kamala Harris em maio de 2021 e compete com o PNI, haja visto que é uma iniciativa não governamental, não prevê a transferência de recursos públicos e tem escopo bem menos abrangente.
Para além das propostas na questão migratória, o governo López Obrador vem adotando uma posição solidária em relação aos países latino-americanos. O presidente do México não participou da Cúpula das Américas, organizada por Biden em junho de 2022 sob a alegação de que os governos da Venezuela, Cuba e Nicarágua não tinham sido convidados. A posição de Obrador se justifica pela retomada dos princípios da política externa do México, que tinham sido abandonados nas administrações anteriores, tais como a não intervenção e a auto determinação dos povos.
Há, portanto, uma tentativa de liderança de Obrador diante de governos de viés político ideológico de centro-esquerda. A posição de Obrador não é nova. Em momentos chave do século XX, ela foi utilizada como uma forma de acenar para grupos internos de viés mais progressista, enquanto internamente adotava-se um governo de perfil autoritário do Partido Revolucionário Institucional. A grande novidade agora é que a política externa de perfil latino-americanista veio acompanhada de um discurso fortemente transformador que preconiza uma série de mudanças internas de cunho estrutural, como os programas sociais, que podem fortalecer ainda mais a posição do presidente como uma liderança na região e seu partido na disputa presidencial de 2024.
Nota-se uma ausência de iniciativas no campo comercial, haja visto que os acenos de Obrador permanecem no campo político. A política de abertura econômica do México é fruto de relativo consenso interno e está consolidada nos tratados de livre comércio e na participação do México em organizações multilaterais como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mudanças abruptas ou um contexto de instabilidade política afetam as expectativas dos empresários e tendem a repercutir negativamente no cenário econômico mexicano. Nesse aspecto, não se observa uma política de mudança substantiva de Obrador no que se refere à estratégia de desenvolvimento do México, que permanece atrelada à exportação de bens manufaturados para o mercado dos Estados Unidos.
A magnitude da dependência do México em relação aos Estados Unidos justifica a defesa de Obrador do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, em inglês), o apoio à sua ratificação e implementação e a utilização do acordo para avançar algumas de suas propostas de campanha, como a reforma trabalhista, aprovada em maio de 2019. Segundo dados da Secretaria de Economia, aproximadamente 80% das exportações mexicanas foram destinadas aos Estados Unidos em 2021, mesmo patamar das últimas décadas, o que reforça a relação assimétrica entre ambos os países, mas também seu caráter estrutural, independentemente do viés político-ideológico dos governos.
Na América Latina, o México possui tratados de livre comércio com o Uruguai, os países da América Central, Panamá e os outros membros da Aliança do Pacífico (Chile, Colômbia e Peru), que também inclui o México. No entanto, apesar de muito se falar de diversificação do comércio exterior, tais acordos se mostraram muito pouco efetivos em promover as trocas – a Aliança do Pacífico, por exemplo, representou, aproximadamente, apenas 1,4% das exportações e 0,8% das importações do México em 2021. Com o Brasil, maior economia da região, as relações comerciais são ainda menos representativas, apesar de ambos serem signatários de um Acordo de Complementação Econômica para o setor automobilístico – 0,009% das exportações e 0,017% das importações, no mesmo período.
Diante das dificuldades em aproveitar outros sócios comerciais, Obrador busca expandir sua margem de manobra no campo político, aproveitando as relações com seu entorno regional. A presidência da Celac, ocupada pelo México durante o biênio 2020-2021, teve como objetivo dar um novo ímpeto às atividades multilaterais, já que o órgão manteve-se paralisado de setembro de 2018 a janeiro de 2020. A Celac é palco de demandas históricas por parte de Obrador, que desenvolve uma relação de proximidade com Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba, e utiliza a organização para pedir o fim do bloqueio econômico dos Estados Unidos à ilha.
Ainda no âmbito da Celac, o governo AMLO propôs a criação da Agência Latino-Americana de Medicamentos, cujo objetivo é garantir acesso seguro a remédios e vacinas. A proposta se junta às críticas lançadas pelo mandatário mexicano das desigualdades do processo de distribuição de vacinas, que incluem a proposta de fomentar a capacidade produtiva e aumentar a coordenação regional em saúde. Ainda que tais propostas careçam de encaminhamentos práticos, elas têm um caráter simbólico importante, de consolidação da liderança mexicana.
Não está claro, contudo, em que medida Obrador de fato conseguirá consolidar sua liderança na América Latina e no Caribe. Com vistas a reaver o papel do Brasil na América do Sul, o governo Lula propôs o relançamento da União das Nações Sul-Americanas, iniciativa de que o México obviamente não faz parte. Obrador também enfrenta oposição popular relevante no cenário doméstico, mesmo contando com aproximadamente 60% de apoio. A polarização da política externa, também presente em outros países latino-americanos, dificulta a implementação das propostas e pode fortalecer a oposição em um cenário de arrefecimento da disputa eleitoral. Enquanto isso, AMLO aproveita os espaços políticos para se fortalecer como um nome forte do campo da centro-esquerda e colher os frutos internamente.
Marcela Franzoni é professora de Relações Internacionais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI).
Carlos Eduardo Carvalho é professor da PUC-SP, Departamento de Economia e Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP), Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEA