Oceanos sem lei
Sob inspiração neoliberal, foram abolidas, nos últimos anos, as normas que regulavam o transporte marítimo. Esta é a causa de tragédias recentes, como o naufrágio do petroleiro ÉrikaLaurent Carroue
A busca sistemática do transporte de custo mais baixo explica a longa história das poluições petroleiras, particularmente na Europa Ocidental [1]: Torrey Canyon em 1967, Olympic Bravery em 1976, Urquiola e Boehlen em 1976, Amoco Cadiz em 1978, Gino em 1979, Tanio em 1980, Haven em 1991, Aegean Sea em 1992, Braer em 1993 e Sea Empress em 1996 (neste ano, 70 petroleiros naufragaram, no mundo). Último da lista, o petroleiro Érika, saiu de Dunquerque em direção a um porto italiano, partiu-se e, em seguida, foi a pique devido à tempestade no largo de Penmar’ch, em 12 de dezembro de 1999.
Em razão de numerosos trunfos — grande autonomia em distância, pouco consumo de energia, leveza —, o tráfico marítimo mundial está avançando rapidamente rumo às 5 bilhões de toneladas [2]. Seu movimento multiplicou-se por 4,6 entre 1970 e 1999 (ou seja um crescimento anual de 2,3 %). Os lucros econômicos e financeiros em jogo tornam-se consideráveis: o custo do frete marítimo das importações é estimado em 271 bilhões de dólares, em 1999, ou seja, 5% do valor das transações.
Se sua tonelagem foi multiplicada por 2,3 entre 1970 e 1998, a frota mundial, contudo, não cessa de envelhecer devido ao preço de compra dos navios [3]: sua idade média é de 14,5 anos, mas a metade deles ultrapassa 15 anos, dos quais 66% são cargueiros e 55%, petroleiros. Os proprietários, depois de ter amortizado seu preço, buscam conseguir uma rentabilidade máxima. O Érika tinha 24 anos, e sabe-se que há forte correlação entre a idade do navio, sua manutenção e os naufrágios: navios entre 20 e 24 anos têm uma taxa de perda anual de quase 1%, contra 0,1% daqueles entre 5 e 9 anos, ou seja, a relação é de 1 para 10.
Neste contexto geral, o transporte de produtos petroleiros desempenha um papel preponderante, uma vez que 40 % do valor bruto consumido no mundo utiliza a via marítima. Seu volume aumentou em 55% entre 1970 e 1999, ainda que, nesse período, sua parte no movimento marítimo tenha passado de 56% para 42%. Depois de um ligeiro declínio durante a década 1980 (0,6% ao ano), o setor conheceu um crescimento anual de 3,4 % entre 1990 e 1997. O número de petroleiros aumentou em 50% e representou pouco mais de um terço (35%) da frota comercial mundial em 1998. Porém, enquanto a metade dos superpetroleiros devia ser impreterivelmente substituída (56% deles têm mais de vinte anos) e muitos novos são lançados ao mar desde 1996, toda a capacidade mundial estará sendo utilizada até 2001. Por isso, um dia no mar de um superpetroleiro rendia a seu proprietário, em 1998, 38 mil dólares contra 18 mil dólares dois anos antes. [4]
O transporte marítimo mundial assemelha-se cada vez mais a uma selva onde reina uma concorrência feroz. Até o final dos anos 60, era dominado por um punhado de grandes nações que garantiam, ao mesmo tempo, a construção dos navios e sua exploração, sob sua própria bandeira, preservando dessa forma uma boa segurança técnica e beneficiando os marinheiros com sólidas garantias salariais e sociais, dado o caráter penoso e arriscado da profissão. Assim, antes da crise do petróleo de 1973, as grandes companhias petroleiras produziam, elas mesmas, o petróleo e os produtos derivados, e os transportavam com suas próprias frotas até as refinarias. Desde então, o setor conheceu duas grandes mudanças, a fim de escapar da regulamentação internacional. Cada vez mais exigente, ela foi porém, paradoxalmente, cada vez menos respeitada pela Organização Marítima Internacional (OMI) e pelos Estados, por falta de meios ou de vontade. Ocorreram a multiplicação das bandeiras de aluguel e a terceirização massiva.
Terceirização irresponsável
A terceirização atende a dois objetivos: o primeiro é financeiro — fazer baixar os custos gerais de exploração —, o segundo é jurídico — evitar qualquer processo e, até mesmo, sanção em caso de infração, graças à multiplicação de intermediários num sistema obscuro no qual se juntam as companhias e os intervenientes. O Érika é um bom exemplo de lamaçal econômico, jurídico, técnico e humano: em 24 anos, ele mudou sete vezes de nome, nove vezes de gestor e três vezes de bandeira (Japão, Panamá, Libéria, Malta). O navio navegava sob bandeira maltense, era propriedade de um poderoso lobby de armadores gregos sediados em Londres e no Pireu, que parece ter servido de fachada a uma grande família napolitana, os Savarese, dedicada, há séculos, ao mercado internacional. Foi gerenciado por uma sociedade italiana de Ravena, contratado por um corretor inglês, armado com tripulação indiana, afretado pelo primeiro grupo industrial francês, TotalFina.
Essa situação permitiu a Sr. Thierry Desmarest, Diretor-Presidente de TotalFina — que afreta mais de mil navios por ano — responsabilizar o armador pela maré negra e se proteger sob o direito internacional (a convenção de Bruxelas de 1969, modificada em 1992) que estipula que o proprietário do navio garante sua gestão e os danos de eventual poluição. No entanto, utilizando os serviços da Total International Limited, sua filial comercial, registrada nas Bermudas e da Total Transport Corporation, outra filial, direcionada para os transportes e matriculada no Panamá, o grupo inscreve-se perfeitamente nessa lógica irresponsável e obscura com a finalidade de cortar custos. Enquanto a Shell, BP e Exxon recusaram os serviços do Érika porque tinham plena consciência dos riscos que correriam graças a um banco de dados, a TotalFinal não hesitou em afretá-lo.
Foi somente sob a pressão de uma opinião pública indignada que, em 5 de janeiro de 2000, o sr. Desmarest, eleito “executivo do ano 1999” por Le Nouvel Économiste, anunciou que sua companhia assumirá os encargos do bombeamento (65 milhões de dólares) do combustível do Érika e de algumas medidas de auxílio às regiões danificadas: 350 pessoas à disposição dos prefeitos para limpeza, criação de uma Fundação do Mar dotada de 8,5 milhões de dólares durante cinco anos, para restaurar paisagens, faunas e floras, enquanto uma Missão Litoral Atlântico gera um orçamento de emergência de 6,5 milhões de dólares para as comunidades litorâneas danificadas. Essas cifras podem ser comparadas aos 53 bilhões de dólares mobilizados pela TotalFina ao fazer uma oferta pública de compra (OPA) sobre a Elf, em 1999, e às centenas de milhões de dólares de “stock options”, generosamente oferecidas ao ex-diretor-presidente da Elf, Philippe Jaffré.
A praga das bandeiras de aluguel
Essa terceirização ficaria capenga sem a existência das bandeiras de aluguel que gangrenam a frota mundial. Uns quinze micro-Estados [5], representando 0,4% da população mundial, puseram-se a comercializar sua soberania no mercado marítimo internacional, registrando frotas sob sua própria bandeira sem, contudo, dispor de meios adequados de gestão e controle. Este fenômeno, no início marginal e um tanto exótico, tornou-se predominante. Em 1955, as dez principais bandeiras de aluguel passavam de9 %; em 1970 23%; em 1985 37%; e em 1998, 56,5% [6]. Entre 1980 e 1998, sua tonelagem aumentou em 77%. As companhias petroleiras utilizam cada vez mais esse recurso em decorrência das pesadas indenizações e reparos obtidos depois da catástrofe do Exxon Valdez da Exxon, em 1989. Dos 7.030 petroleiros, 61% estão sob essas bandeiras. [7] A idade média dos matriculados atinge 17 anos em Antigua, 21 anos em Saint-Vincent e Grenadinas, 22 anos nas ilhas Turks e Caicos.
As bandeiras de aluguel apresentam grandes vantagens para um armador não-residente pois praticam um “dumping” triplo: legal, fiscal e social.
· “Dumping” legal: Essas bandeiras permitem fugir de boa parte das rigorosas regulamentações nacionais e internacinais, e de eventuais requisições por parte dos poderes públicos nacionais, em caso de crise. O registro é efetuado em impressos prontos e sem contrôle, em um consulado ou embaixada; o Estado que empresta sua bandeira é remunerado a um valor previamente fixado em função da tonelagem do navio. Se a Libéria ou as Bahamas não aceitam qualquer navio, Chipre e Malta têm péssima reputação. A frota da Libéria, símbolo desta pura ficção jurídica, — atingida pela guerra civil — é, efetivamente, gerenciada por uma grande sociedade americana da Virgínia, e um acordo, entre Monrovia e Washington, prevê que em caso de crise todos os navios da Libéria pertencentes a interesses americanos podem ser imediatamente repatriados sob a bandeira dos Estados Unidos.
· “Dumping” fiscal: as taxas de registro de navios são 30% a 50% inferiores às da Europa.
· E, por fim, “dumping” social, uma vez que os Estados envolvidos não reconhecem nem convenções coletivas, nem proteção social, e as tripulações, às vezes de boa qualidade, como a do Érika, são mão pagas. O custo da tripulação de um navio de linha regular sob a bandeira francesa metropolitana era avaliado, em 1997, em 1,8 milhões de dólares por ano, contra 1,4 milhões sob a a bandeira francesa bis [8] das Kerguelen (ou seja um ganho de 23%) e 600 a 650 mil francos sob uma bandeira de conveniência (um ganho de 63%). A tripulação de um petroleiro de 45 mil toneladas, sob bandeira das Kerguelen, custa 1,2 milhões de francos por ano, contra menos de 1 milhão do custo de um sob bandeira de conveniência.
Cumplicidade dos Estados “desenvolvidos”
Essa lógica é construída com a cumplicidade ativa dos Estados e empresas dos grandes países desenvolvidos. Em 1998, 46 % dos navios e 62% da tonelagem dos 35 Estados marítimos mais importantes do globo estavam sob bandeiras de aluguel [9] Na Europa Ocidental, que detém o controle de 48,7% da frota mundial (dos quais 33,5% estão com países membros da União Européia), contra 41% para a Ásia, há 63% dos países nessas condições. Os principais Estados, ao invés de realizar vigorosa contra-ofensiva com base legal, lançaram-se, eles mesmos, na criação de “bandeiras-bis” que permitem contratar marinheiros e compor a tripulação com mão de obra estrangeira [10]. Criada em outubro de 1986, a bandeira das Kerguelen permite empregar, assim, até 65% de marinheiros estrangeiros e reduzir os encargos sociais em 50%. Já a França, que tinha 47 mil oficiais e marinheiros em 75, não reunia mais que 10 mil, em 1998.
Face a esta situação, as autoridades nacionais e internacionais poderiam, ter agido com rigor se tivessem vontade política. Assim, desde 1993, após o naufrágio do Braer, o Parlamento Europeu exigiu da Comissão de Bruxelas que proibisse a ancoragem dos petroleiros com mais de 15 anos nos portos da União (como nos Estados Unidos); que adotasse um planejamento proibindo a acostagem de petroleiros desprovidos de casco duplo; e que abandonasse as bandeiras de aluguel Porém, sob a pressão do lobby do petróleo, o conselho dos ministros da União Européia retomou as decisões da OMI.
Uma convenção internacional sobre as condições de matrícula dos navios que considerava a realidade de uma “ligação autêntica entre navios e Estados de matrícula”, foi adotada em fevereiro de 1986, após dez anos de negociações sob a égide da Conferência das Nações Unidas para o comércio e o Desenvolvimento (Unctad). A recusa de muitos Estados em ratificá-la em bloco ainda impede sua execução. O Japão e os Estados Unidos agiram sozinhos, tomando medidas extremamente constrangedoras para navios que permanecem em suas águas territoriais e reservando a cabotagem para suas frotas nacionais.
A União Européia, toda ultraliberal, não seguiu este exemplo. As companhias petroleiras, contudo, têm recursos financeiros suficientes para se servir das bandeiras nacionais, utilizar navios novos e seguros (duplo casco), ou mesmo reconstituir suas frotas, no médio prazo, segundo um escalonamento a ser negociado. O princípio do “poluidor-pagador”, apesar de seus limites [11], deveria ser sistematicamente utilizado a fim de desencorajar financeiramente essas escandalosas ações de risco ambiental. Deveria ser complementado pelo reconhecimento da responsabilidade conjunta e solidária do armador, do “afretador-carregador”, da companhia e dos seguradores que certificaram a navegabilidade do navio. O setor das sociedades privadas de controle técnico e de verificação de normas deve, urgentemente, ser saneado depois da falha técnica do Rina (Registro Italiano Navale), cujo perito examinou o Érika em 24 de novembro de 1999, autorizando-o, por servilismo, a navegar.
A União Européia deve, também, engajar-se numa luta vigorosa contra as bandeiras de aluguel, primeiramente contra aquelas da Europa (Grécia, Chipre, Malta, por exemplo), proibindo, pura e simplesmente, a acostagem de seus navios e exercendo, com vigor, as prerrogativas que lhe permitem manter no cais um navio defeituoso. Embora a França tenha proposto, depois da catástrofe do Amoco Cadiz, um memorando que previa a inspeção de pelo menos 25% dos navios fundeados em cada porto; e ainda que o documento tenha sido adotado por 18 Estados (os quinze da União Européia, a Noruega, o Canadá e a Rússia), ela mesma, a França, tem sido incapaz de respeitar a quota (inspeciona apenas 18%). Isto devido à falta de pessoal, à restrição orçamentária, ambas ligadas à ideologia do Estado mínimo. Há, apenas, 60 inspetores de segurança, ou seja, quinze vezes menos do que há dez anos e três vezes menos do que no muito mais rigoroso Reino Unido. O ministro encarregado dos transportes, sr. Jean-Claude Gayssot vem, nesse sentido, anunciar um plano de duplicação dos efetivos de segurança nos próximos dois anos.
Enfim, a OMI — organização da família das Nações Unidas, com sede em Londr