Olhar como gente!
Ouvi muito, ouvi até as orelhas arderem, sem direito de parar de ouvir. Em uma audiência pública pouco se delibera, nela se aprende. E o que eu aprendi é que estamos em falta
Era final da tarde. Passei algumas recomendações à equipe e saí do Tribunal de Justiça, rumo à Assembleia Legislativa de Santa Catarina, logo ao lado, para participar de uma audiência pública. Estava chovendo e um assessor me acompanhou até o parlamento com guarda-chuva. As intempéries, que não poupavam ninguém naquele dia, também não poupariam o que nós, autoridades das três esferas do poder público, estávamos prestes a testemunhar.
A audiência, de iniciativa da deputada Vanessa da Rosa, segunda mulher negra, desde Antonieta de Barros, a ocupar uma cadeira no parlamento barriga verde, trataria de dois pontos: adesão efetiva do estado ao Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), com a proteção dos direitos fundamentais dos jovens e adolescentes; e abordagem da Polícia Militar catarinense nas comunidades vulnerabilizadas.
Espaços como esses permitem que a sociedade civil se manifeste, que os coletivos, as associações e a população em geral transmitam suas vivências, questionem, critiquem, recomendem, ou seja, exerçam sua cidadania. E assim foi, sem meias-palavras.
Primeiro nós, os componentes da mesa, nos apresentamos. De minha parte, pontuei que, mais do que falar, estava ali para ouvir. Não se tratava de oportunizar lugar de fala para os vulnerabilizados, para seus representantes, suas organizações. Falar, eles já falavam, há tempos. Tratava-se de ouvir, escutar o que tinham a dizer.
Então, rapidamente registrei que o Poder Judiciário não era o protagonista no assunto, pois não fazia gestão, não administrava e tampouco legislava. No entanto, por outro lado, era o garantidor da Constituição, tem a missão de fazer respeitar os direitos humanos, a igualdade de oportunidades, enfim, tem muita responsabilidade sobre o estado democrático de direito.
O fato é que tanto no que se refere aos adolescentes em conflito com a lei e submetidos a medidas socioeducativas, como os jovens de comunidades vulnerabilizadas, em sua maioria negros, existe uma grave violência institucional. Famílias compostas por pessoas honestas e trabalhadoras não têm garantida a segurança para seus filhos, sequer para irem à escola. Elas não têm o apoio das instituições e, pior, não são vistas e muito menos ouvidas. São seres humanos que sofrem de um cruel silenciamento, submetidos à invisibilidade.
Na audiência foi apresentado o relatório do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz, de Joinville, e da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, sobre mortes violentas decorrentes da ação policial contra a juventude periférica do estado de Santa Catarina, com foco no Morro do Mocotó, em Florianópolis. O que lá consta é muito sério. Sem julgamentos, o relatório analisa fatos e indica que as mortes de jovens negros do Mocotó a partir da intervenção policial são frequentes e, além disso, não têm a apuração necessária.
Secundado por vários depoimentos, dolorosos depoimentos colhidos na audiência, o relatório demonstrou que, no lugar do Estado comparecer nas comunidades para apresentar educação, saúde, saneamento, habitação, cultura, com qualidade e constância, ele comparece na maior parte das vezes exclusivamente por meio de seus órgãos de segurança pública e aparato policial.
O que a população questiona é como fazer segurança pública, nos moldes legais, exclusivamente pelo braço policial e pelo sistema de justiça criminal. A polícia deve ser a última a ser chamada, para garantir a vida e as liberdades públicas que se encontrarem em risco. Antes disso, o Estado precisa comparecer com seus programas e projetos de cidadania, social e economicamente inclusivos. “Onde não há pão, não há paz”, diz a sabedoria popular.
Ouvi muito, ouvi até as orelhas arderem, sem direito de parar de ouvir. Em uma audiência pública pouco se delibera, nela se aprende. E o que eu aprendi é que estamos em falta. A vida das pessoas das favelas e das comunidades vulnerabilizadas, em sua maioria negras, não tem sido prioridade do Estado. Isso não é pauta ideológica, é pauta Constitucional. É preciso agir!
Tarde da noite, com um céu escuro e ainda tempestuoso, retornei ao Tribunal para encerrar alguns atos. Tive tempo de ler uma mensagem recebida em rede social, que talvez resumisse tudo que escutara e tudo que aprendera.
“Doutor, sei que hoje é seu aniversário. Eu digo pro Senhor, cumpri a cadeia certinho na penita e tô aqui de cabeça erguida também por sua causa. É muita violência contra a gente. Eu era muito novo! Não sei como sobrevivi. Às vezes eu mando essas mensagens no insta, para o senhor, sei lá. Minha mulher e minha mãe foram no fórum uma vez e conversaram com o senhor. Parece besteira doutor, estou com lágrimas aqui, mas o senhor nos olhava como gente.”
Olhava como gente!
João Marcos Buch é desembargador substituto do TJSC.