Olimpíadas ameaçadas
Os protestos contra a dominação do Tibete ameaçam ofuscar o brilho da festa olímpica chinesa. Mas os manifestantes se enganam sobre o alcance de suas ações. Beijing possui interesses fortes demais na região para abrir mão do controle e a independência está fora da agenda do Dalai Lama
Poucos acontecimentos eram tão previsíveis e foram tão minuciosamente planejados. Sede das Olimpíadas de 2008, e com a antevisão de superar os Estados Unidos no ranking das medalhas, a China esperava fazer do evento um espetacular instrumento de propaganda e o marco definitivo de sua ascensão ao pódio das superpotências. Em um país onde o governo opera com planejamentos cuja escala de tempo chega a 50 anos, e no qual as turbulências políticas são amortecidas pela gigantesca e altamente verticalizada estrutura do Partido Comunista1, nada deveria dar errado. Investimentos pesados haviam sido feitos em infra-estruturas e instalações. Atletas e equipes vinham sendo preparados há muito tempo. O roteiro das cerimônias de abertura e encerramento que fazem dos jogos olímpicos o maior show midiático do planeta estava definido e cronometrado. Na ultimíssima hora, porém, a inesperada rebelião independentista do Tibete ameaça tirar o pirulito da boca da criança.
Manifestações antichinesas disseminaram-se pelas principais cidades do mundo. Com inesperada veemência. A começar por Lhasa, capital do Tibete, onde, destoando de seu comportamento tradicionalmente pacífico e pacifista, monges budistas partiram para a violência física [leia, na página 6, o artigo “Tremor no teto do mundo”], até Paris, onde os manifestantes chegaram ao ponto de tentar arrancar a tocha olímpica das mãos de uma atleta para-olímpica chinesa, presa à sua cadeira de rodas. Para não falar da internet, na qual circularam “informações” tão extravagantes como a de que o governo chinês teria produzido o símbolo das Olimpíadas a partir da imagem de um tibetano fuzilado.
Não é preciso recorrer a complôs conspiratórios para explicar tanta exaltação. A maioria das pessoas que se revoltam contra a presença chinesa no Tibete é movida por um genuíno sentimento de justiça, pois tal dominação constitui um ato de violência absolutamente indefensável. Ainda mais para um regime que, desde sua instalação, em 1949, fez da propalada defesa da autodeterminação dos povos uma poderosa peça de propaganda política. Fosse o governo dos lamas o paraíso na Terra, como parecem acreditar seus apoiadores, fosse uma retrógrada teocracia de base feudal, como insistem em afirmar seus detratores, cabia aos próprios tibetanos decidir por sua continuidade ou não, sem ingerências externas.
Mas entre uma posição de princípio, em si correta, e sua efetivação, vai um longo caminho. E esse é o sinuoso caminho da política, com todas as suas contradições. Movido por uma boa dose de realismo político, o 14º Dalai Lama abriu mão do ideal de independência em 1988, substituindo-o pela reivindicação de uma “autonomia genuína” no seio da nação chinesa – algo talvez semelhante ao status da Catalunha dentro da Espanha ou da Sicília dentro da Itália. Tal política, que os tibetanos chamam de “caminho do meio” já havia sido praticada, com relativo sucesso, pelo 10º Panchen Lama, falecido em 19892. E o Panchen Lama teria bons motivos pessoais para não adotá-la, pois, ao contrário do Dalai Lama, permaneceu no Tibete e foi preso e humilhado pelos chineses3.
Importância estratégica
Para o bem-estar do povo tibetano, no entanto, esse realismo é fundamental. A ocupação do país se arrasta há 49 anos. Milhares de pessoas morreram por conta das atrocidades cometidas. Mais de uma geração nasceu, cresceu e alcançou a maioridade sob domínio chinês. Mais de uma geração nasceu, cresceu e alcançou a maioridade no exílio. E está claro que, por mais que sua posição seja denunciada como ilegítima, por maior que seja o desgaste político que tenham que enfrentar, os líderes de Beijing não estão dispostos a abrir mão do Tibete – seja em curto ou médio prazo.
O motivo é que o enorme altiplano tibetano possui, para a China, uma importância econômica e estratégica fundamental. Rica em minérios, a região detém a maior reserva mundial de urânio. De suas geleiras, nascem três dos maiores rios asiáticos, o Indo, o Bramaputra e o Mekong, responsáveis, juntos, pelo abastecimento de água doce de toda a Ásia Central. E a área possui vales férteis, vastas reservas florestais e amplos espaços pouco ocupados. Quanto ao papel militar que lhe atribuem os chineses, basta dizer que lá está instalado um quarto de seus mísseis intercontinentais, inclusive nucleares, e uma força de não menos de 300 mil soldados4.
Ademais, a concessão de independência total ao Tibete desestabilizaria todo o mosaico étnico-cultural chinês, provocando um efeito dominó de conseqüências imprevisíveis5. Por hora, o máximo que o governo de Beijing parece disposto a ceder é na negociação de uma autonomia mais substantiva com os representantes do Dalai Lama, como foi anunciado, de maneira um tanto vaga, no último dia 26 de abril. Para obter a retomada das negociações, interrompidas em função dos protestos de Lhasa, o líder tibetano teve que dar reiteradas provas de boa vontade, pedindo o fim dos protestos e até ameaçando renunciar a seu cargo caso eles degenerassem em violência6 – o que parece não ser levado em conta por alguns de seus apoiadores ocidentais, guiados por uma visão maniqueísta que não reconhece meios tons.
A oportunidade rara oferecida pelas Olimpíadas não é algo que esses manifestantes pretendam deixar escapar7. Mas é ingenuidade imaginar que os protestos venham a produzir uma mudança radical no status quo. Poderão empurrar chineses e tibetanos para a mesa de negociações, porém a independência total com que sonham alguns militantes não estará na pauta. E, com o poder de atração que o espetacular crescimento da economia chinesa exerce sobre os investidores internacionais, nenhum governo estrangeiro, de relativa importância, ousará avançar além das alfinetadas retóricas. Elas têm certamente o poder de irritar Beijing, mas seus astutos dirigentes sabem que, passado o momento olímpico, a realpolitik falará mais alto.
Além do que, se a questão é fazer das Olimpíadas uma arena política, não existe, em relação a isso, nada de novo sob o Sol. Porque, desde sua origem, na Grécia antiga, os jogos não têm sido outra coisa. Sempre celebrados de quatro em quatro anos, inicialmente em associação ao culto de Zeus, os certames tinham o dom de interromper as guerras e possibilitar que os habitantes das diferentes cidades se reconhecessem como algo que não eram em nenhuma outra ocasião: gregos.
No período das Olimpíadas modernas, o momento mais ostensivamente político ocorreu nos Jogos de Berlim, de 1936, instrumentalizados pela propaganda nazista [veja, no quadro, outras edições fortemente politizadas do torneio]. O estádio olímpico, projetado no estilo monumental característico do gosto hitlerista8, custou US$ 30 milhões e, para fazer do evento um espetáculo irretocável, todos os grandes empresários alemães aportaram polpudas contribuições. A cada aparição das autoridades do regime ou a cada vitória dos atletas alemães, as 120 mil pessoas acomodadas no estádio respondiam com saudações, palavras de ordem e hinos, numa uniformidade coreográfica de dar náuseas. Como se sabe, essa apoteose nazista foi ofuscada pela realização de um único homem, o atleta negro norte-americano Jesse Owens (1913-1980), que, derrubando o mito da superioridade “ariana”, conquistou quatro medalhas de ouro nas provas de atletismo9.
Observada na perspectiva da posteridade, toda a encenação que caracterizou os Jogos de Berlim adquire um ridículo tom de farsa. Adjetivado como “milenar”, o Terceiro Reich durou 12 minguados anos. Foi varrido do mapa ao preço de milhões de mortes10 e de uma destruição sem paralelo de recursos naturais e culturais. Agora, os prósperos alemães excedem a todos no exercício da cidadania e no zelo pelo meio ambiente.
Na China, os uniformes azuis cederam lugar aos trajes ocidentais. E o culto à personalidade foi substituído pelo culto ao consumo11. Do antigo décor comunista, restou apenas um retrato de Mao Tsé-tung pendurado na Praça da Paz Celestial. Quanto tempo levará ainda para que os pragmáticos ocupantes da Cidade Proibida afrouxem o laço que estrangula o Tibete?
*José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.