Onde estamos e para onde vamos?
Desejar um país igual significa criar e colocar em prática políticas públicas universais, capazes de alcançar a complexidade dos modos de vida na diversidade geopolítica, étnico-racial e de gênero deste imenso Brasil. E é, antes de tudo, uma decisão política radicalmente comprometida com os direitos do povo brasileiroMárcia Helena Carvalho Lopes
além do que foi possível escrever na Constituição Federal de 1988, assegurando inúmeros dispositivos de garantia de acesso aos direitos e serviços públicos universais, o povo brasileiro, em qualquer lugar do país, sabe e conhece o que são serviços públicos, onde eles estão, como se apresentam e o que podem significar na vida individual e coletiva, de modo a determinar as melhores ou piores condições de vida e/ou ameaças no contexto da exclusão ou do não acesso a eles, principalmente os de saúde, educação, assistência social, habitação, saneamento, entre outros. Não há dúvida de que essa consciência do direito universal tem levado a enormes avanços na ampliação e acesso a mais e melhores serviços públicos, responsabilizando todas as esferas governamentais, legislativas, órgãos de controle externo e também os diversos espaços de participação e controle social. É indiscutível que nos últimos anos a rede de serviços públicos em todo o país, inclusive em regiões remotas, incluiu milhões de novos usuários, antes nunca alcançados.
Para compreender melhor o atual contexto, vale lembrar que em governos neoliberais, cuja tônica era o Estado mínimo, a pobreza era naturalizada a ponto de se admitir como parte da paisagem humana que um considerável contingente de crianças morresse antes de completar 5 anos de vida. A fome, a ausência completa de renda, a negação do acesso à água, à escola, à saúde, ao devir pareciam não tocar corações e mentes da parte “abastada” da população brasileira.
A invisibilidade da miséria só era rompida nas manchetes trágicas e sensacionalistas – “a dor da gente não sai no jornal”, já disse uma vez Chico Buarque.
Trabalhar na gestão de políticas públicas, nas várias esferas de governo, significava atuar sempre sobre a seletividade e reduzidos percentuais de cobertura nos serviços públicos mais essenciais, como saúde e educação, apostando na resiliência como atitude primeira dos excluídos desses serviços. Nos anos 1990, ouvia-se ministro de Estado afirmar que era impossível o governo federal cuidar dos pobres do país e que isso era uma questão para os municípios e as comunidades voluntárias.
Nesse sentido, a ascensão de um governo democrático e popular em 2003 pôs fim a esse ciclo de desresponsabilização do Estado em relação à estruturação da oferta de serviços públicos, para o conjunto da sociedade brasileira, acatando a Constituição Federal, respondendo aos índices alarmantes das demandas reprimidas, bem como adotando um programa de governo que estabeleceu como prioridade o crescimento econômico com distribuição de renda, na perspectiva do desenvolvimento econômico e social sustentável e inclusivo. Sabia-se que não seria nada simples e rápido alterar os indicadores socioeconômicos do país e impulsionar um processo de inclusão social de um terço da população brasileira, considerando o desenho federativo, as condições concretas de gestão pública e os diferentes projetos políticos dos entes federativos.
Transcorridos doze anos de governo popular, é inexorável o reconhecimento dos resultados alcançados. Os serviços públicos cresceram exponencialmente, ampliando sua presença para todo o território nacional. Do ponto de vista do orçamento público e sua execução financeira, houve incrementos a cada ano, sobretudo em áreas muito sensíveis das políticas públicas, como no Desenvolvimento Social, que passou de um orçamento de R$ 11 bilhões em 2003 para R$ 68 bilhões em 2014. Houve importantes pactos de aprimoramento de gestão, nas três esferas de governo, introdução de sistemas de informação, monitoramento, avaliação e capacitação nas diversas políticas setoriais e transversais, atitude republicana e reiteração das estratégias de participação e controle social. Um exemplo exitoso é o Cadastro Único em todos os municípios.
O Brasil de hoje já não admite, como ontem, a banalização da pobreza e os muitos modos de exclusão, os quais vêm dando lugar a políticas e sistemas públicos orientados à universalização de acesso, descentralização político-administrativa e participação social, as três diretrizes da Constituição Federal de 1988. E aqui vão aparecendo as rupturas, superações, conquistas e contradições de um país continental, federado, diverso e ainda tão desigual.
Viveu-se um tempo em que dar publicidade aos reais indicadores e condições de vida da população brasileira e consequentemente às deficiências das estruturas e serviços públicos era atestar as fragilidades do país e comprometê-lo perante o mundo e os interesses internos de manutenção da lógica de reprodução social. O tempo de luta pela construção democrática, a mobilização popular, as experiências dos movimentos sociais, a escolha de um novo projeto de governo e a disputa hegemônica por uma sociedade mais justa e menos desigual converteram em conquistas os processos de transparência e visibilidade da pobreza, da ausência e da precariedade dos serviços públicos, dos desafios da gestão pública e do funcionamento do pacto federativo.
O debate tão em voga sobre a gestão pública deve considerar dois âmbitos de complexidade: o primeiro advém do processo de aprimoramento na gestão, iluminado pelas teorias administrativas que procuram vencer velhos paradigmas do patrimonialismo, do burocratismo e do modelo gerencial. Há nessa dimensão uma preocupação de manter as atribuições precípuas da gestão estatal nas políticas e serviços públicos, sobretudo nos processos de planejamento, execução, financiamento, monitoramento e avaliação, adotando modelos que correspondam aos pressupostos das funções de alargamento da proteção social, assegurada como princípio constitucional.
Um segundo nível de complexidade circunscreve-se à necessidade de a estrutura pública, nas três esferas de governo, adotar novas obrigações de garantia de direitos sociais que se consubstanciem na operacionalização de políticas sociais, identificando e adequando os serviços públicos na quantidade e qualidade condizentes com as demandas da população, em cada ente federado.
O tema do pacto federativo compõe uma arena de pactos mais amplos e desenhos complexos de gestão federativa. Cabe salientar que em sua origem etimológica federalismo relaciona-se com aliança, tratado, confiança, o que vai ao encontro do termo pacto, constituindo-se face de uma mesma moeda.
No que concerne aos pactos, que permitem a condensação das responsabilidades e aprimoramentos em torno das políticas públicas, eles não podem prescindir de convergência em torno de uma aliança “ideopolítica” que transcenda as particularizações de bandeiras partidárias e ultrapasse os limites dos períodos eletivos das gestões dos mandatos governamentais. É preciso construir de modo tripartite processos permanentes de adesão e apropriação das políticas, que são do Estado e da sociedade.
Naturalmente esse modelo gera questionamentos e inquietações quanto aos motivos pelos quais não há adesão convicta e suficiente de todos os estados e municípios brasileiros, e as respostas formam um amplo leque de justificativas, que em geral recai sobre a necessidade de reforma tributária, aumento na arrecadação, estrutura administrativa e mesmo revisão das atribuições dos entes. Tais temas são amplamente discutidos, sobretudo com o advento da Constituição Federal de 1988, que reorganiza as responsabilidades pela aplicação das políticas e serviços públicos para os três entes federados, de modo descentralizado e participativo, além de tratar-se de um contexto e de uma arena de disputa, pois tanto as políticas sociais/públicas como o Estado são espaços de contradição do modelo econômico, social e político instalado no Brasil.
A lógica republicana que serve de esteio para a gestão compartilhada dos serviços públicos conjuga a dimensão política e administrativa que conforma a relação entre a União e seus estados-membros. Alguns conceitos estão embutidos aqui, como os de autonomia, soberania, compartilhamento de poder e preservação do pressuposto do que é comum a todos. A esse respeito, Dallari (2000) coloca que a lógica republicana é clausula pétrea da Constituição Federal de 1988, e Pinho (2002) define oito características para a estrutura federativa. São elas:
1a) a união faz nascer um novo Estado;
2a) a base jurídica da Federação é uma Constituição, e não um tratado;
3a) não existe o direito de secessão;
4a) só o Estado Federal tem soberania, pois as unidades federadas preservam apenas uma parcela de autonomia política;
5a) repartição de competências entre a União e as unidades federadas fixada pela própria Constituição;
6a) renda própria para cada esfera de competência;
7a) poder político compartilhado pela União e pelas unidades federadas;
8a) o indivíduo é cidadão do Estado Federal, e não da unidade em que nasceu ou reside (p.2).
Uma das grandes virtudes da lógica republicana no modo de governar está no estabelecimento de regras transparentes que respeitem os pressupostos da igualdade e da equidade e definam os marcos sobre os quais os mandatários devem se pautar.
“A virtude republicana da abnegação é, sobretudo, uma virtude de quem está no poder. Quem mais precisa tê-la não é quem apenas obedece, mas quem manda. […] A república foi a admirável invenção romana para resolver um paradoxo, uma enorme dificuldade teórica e prática, que são as mesmas pessoas mandarem e obedecerem” (RIBEIRO, 2001).
Em um modelo republicano, o espaço de poder e de decisão deveria ser utilizado para a concretização de projetos políticos que tivessem como compromisso colocar a estrutura do Estado a favor da ampliação do direito, da proteção social e do acesso aos serviços públicos de qualidade. As diretrizes de descentralização, democratização e primazia do Estado (BRASIL, 1993) têm por função precípua orientar a estruturação administrativa das políticas sociais públicas.
Contra as formas conservadoras de políticas públicas no Brasil de ontem, cujos governos introduziam programas e serviços pontuais, clientelistas, seletivos, de baixa cobertura, além da complexa relação entre unidade e heterogeneidade, surgem sob as diretrizes constitucionais os sistemas únicos nacionais, como o SUS (saúde), Suas (assistência social), Sisan (segurança alimentar e nutricional), SNC (cultura), que prezam pela descentralização, territorialização, regulação compatível com as realidades regionais e locais, critérios claros de partilha de recursos e, ainda, adoção e manutenção de pactos políticos de cunho federativo, que deem envergadura à estruturação e fomento dos serviços públicos, em nível nacional.
Portanto, fortalecer o pacto federativo significa recuperar um velho, mas sempre presente dilema – o de adotar de forma radical os pressupostos da gestão republicana, que tem como um de seus pilares a institucionalidade pública e radicalização da democracia, tendo em vista garantir a oferta com qualidade dos serviços públicos, compatíveis às necessidades da população.
Nesse contexto, cada vez mais a ideia de pacto ganha força, pois eles podem ser firmados tanto em torno da construção de novos patamares de inclusão e direitos como para o aperfeiçoamento, definindo metas e a temporalidade para seu cumprimento. Pactuar envolve convencimento, concordância e compromisso.
Por razões históricas, culturais, ideológicas e políticas, não tem sido nada simples pôr em prática os serviços públicos no Brasil na quantidade e qualidade necessárias, mas também pelas mesmas razões há grandes avanços nos últimos anos, envolvendo governos comprometidos, entidades civis e inúmeras instâncias de participação e controle social. Um caminho apenas iniciado.
Exercitar o pacto federativo e a gestão das políticas públicas, com serviços mais efetivos, significa reconhecer a necessidade crescente de parcerias, complementariedade e o estabelecimento de compromissos políticos que superem visões tradicionais, conservadoras, ainda patrimonialistas e clientelistas, rumando de forma radical para o modelo republicano, que traz consigo os pressupostos da descentralização e democratização, com vistas à realização universal dos direitos.
Márcia Helena Carvalho Lopes é assistente social, mestre em Serviço Social pela PUC-SP, professora universitária, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) no governo Lula e atual consultora pela ONU.