Onde os fracos não têm vez
A eugenia tinha uma linguagem cientificista e uma preocupação racista: fazer viver os considerados mais aptos, mais fortes, mais brancos e deixar morrer os que fossem o oposto disso tudo
“Às vezes, salvar uma vida é um crime maior do que tirá-la”. Eis a frase dita pelo médico eugenista Harry Haiselden no filme A cegonha negra de 1917, em que interpreta a si mesmo, momentos antes de recusar uma manta quente a um recém-nascido com deformações físicas. O filme trata da eugenia, ideia bastante presente na ciência médica e biológica da passagem do século XIX para o XX, que supunha que se podia controlar as qualidades raciais das gerações futuras. O bebê em questão, com problemas, seria o resultado de quando pessoas com “limitações” ou “genes inferiores” não foram impedidas de se reproduzirem, para “infortúnio” da sociedade.
Foucault chamava a atenção para a “estatização do biológico”: o direito que o soberano tinha de deixar viver e fazer morrer. Posteriormente, de deixar morrer e fazer viver. A eugenia era basicamente isso, com uma linguagem cientificista e uma preocupação racista: fazer viver os considerados mais aptos, mais altos, mais sadios, mais fortes, mais brancos e deixar morrer os que fossem o oposto disso tudo. O primeiro princípio (fazer viver) era a eugenia positiva, e o segundo (fazer ou deixar morrer), a eugenia negativa.

Inspirado em Foucault, Achille Mbembe cunhou o termo “necropolítica”, ou seja, quando a morte se transforma em um verdadeiro objeto de gestão do poder. Se, no início do século XX, os eugenistas esperavam impedir o nascimento do “bandido nato” ou de qualquer um que trouxesse impureza à raça branca, hoje, o sonho eugênico não deixou de existir e os mecanismos pelos quais a necropolítica atua no corpo social garantem o sorriso no rosto dos racistas e daqueles que dizem que “bandido bom é bandido morto”.
Governo Bolsonaro
O tom eugênico do pensamento de Jair Bolsonaro apareceu em cadeia nacional de televisão. O médico Arnaldo Lichtenstein foi um dos primeiros a apontar para o fato. Ao se referir ao primeiro pronunciamento do presidente durante a pandemia, em que o Bolsonaro minimizava o problema e fala de gripezinha, Lichtenstein chamou a atenção para outro ponto do discurso: em outras palavras, explicou que, se os jovens e atletas não estariam em risco (como alegava o presidente) e, por isso, não haveria motivo para “histeria”, logicamente, tampouco haveria motivo para “histeria” o fato de que “apenas” os vulneráveis morreriam. Isso é um pensamento eugênico, como explicou Lichtenstein.
Não surpreende Bolsonaro apresentar um pensamento eugênico nesses meses de pandemia: no passado, ele já defendeu rígido controle de natalidade entre os pobres para controle da miséria e da criminalidade. Também já defendeu guerra civil em que morreriam 30 mil – com mortes de inocentes. Para o presidente e o projeto político vencedor de 2018, seria melhor que alguns nem nascessem, mas já que insistem em nascer, que morram.
Às vezes o presidente também aponta predileções em suas falas. Quando questionado sobre as mortes de brasileiros por coronavírus com relação às vítimas argentinas, ele fez uma comparação entre Argentina e Suécia – que se mostrou errônea, por sinal – para, segundo ele, não cair na “ideologia”. Segundo o presidente, o ideal seria seguir o exemplo sueco, que não implementou o isolamento social. Mas essa foi a segunda vez em que o presidente mencionou a Suécia.
A primeira foi no ano passado, em um vídeo em que reprovava e ironizava a multirracialidade brasileira, ele afirmou: “tu acha que o [cidadão] da Suécia vai querer vir para esse lixo aqui?” E seguiu dizendo que japonês era “uma raça que tem vergonha na cara”. Ele estava fazendo a clássica hierarquização entre as raças. E não nos esqueçamos que, se por um lado, Bolsonaro fala do “japonês trabalhador com vergonha na cara”, por outro, ele já se referiu ao genital de um oriental em outro vídeo que viralizou: “tudo pequenininho aí?”. Ele parece fazer questão de colecionar e reafirmar todos os preconceitos possíveis.
Contudo, no vídeo em que ele fala do cidadão sueco, Bolsonaro o coloca no topo da pirâmide. A admiração seria pelo Estado de bem-estar social sueco, tido como modelo inclusive pelas esquerdas do mundo? Provavelmente não. Trata-se do povo, não a organização política da Suécia. A admiração talvez venha da ideia de nobreza racial, exportada durante o século XX e cultivada internamente pela obscura política eugênica que durou de 1935 a 1975, esterilizando cerca de 63 mil pessoas. O país foi o primeiro a criar um centro de biologia racial, em Upsalla, e deu as bases das pesquisas na área, tendo sido um modelo inclusive pela Alemanha nazista. No século XX, o tipo europeu foi o exportado como o ideal físico para o mundo. Quanto mais europeu – portanto, mais branco – “melhor”. E a Escandinávia, mas em especial a Suécia, se tornou o destino estético dos supremacistas brancos. A pretensa supremacia sueca já esteve presente no Brasil em propaganda de cerveja, em esquete de grupo de comédia e agora na boca do presidente.
Recentemente a Suécia pediu desculpas por não ter estabelecido o isolamento social, o que resultou em uma taxa muito elevada de mortes por coronavírus. Por aqui é impensável um pedido de desculpas. Até porque o cidadão da Suécia não está “nesse lixo aqui”, nas próprias palavras do presidente, portanto, não lhe importa muito. O seu famigerado e chocante “e daí?” do dia 28 de abril diante das vítimas da covid-19 não é teoricamente descolado do seu histórico de declarações a esse respeito. Ele já relacionou as mortes causadas pela doença à renda, conforme já mencionado em artigo anterior. É claro que a pandemia é um fardo ao seu governo, mas não se trata, dentro dessa sua concepção de população ideal, de um problema moral. Os fracos e os pobres não têm vez na sua sociedade utópica.
Cinquenta mil, sessenta mil mortes, sendo, na maioria, pessoas consideráveis “matáveis”, não são mais importantes do que cuidar da ficha criminal dos filhos e da sua própria. Diante da aparição de Fabrício Queiroz, o deputado Bibo Nunes do PSL, afirmou tratar-se de uma “tentativa para denegrir a imagem do presidente Bolsonaro”. Ter a própria imagem ou de algum dos amados filhos “denegrida” seguramente é um pesadelo maior do que um horizonte de 100 mil mortos. Terão morrido alguns inocentes? Sim, mas ele já tinha previsto que este seria um efeito colateral de uma ação considerada por ele necessária.
Dias atrás estava sendo discutido se o copo de leite em suas lives era um aceno ao supremacismo branco brasileiro. Não é necessário o copo para desvendar o que não está oculto: basta escutar o que ele sempre disse e defendeu sem nenhum pudor. Mas ainda assim, a Secom diz que irá processar cartunista por falsa imputação de nazismo.
Ora, Bolsonaro defende a esterilização dos pobres. Falava de guerra civil com trinta mil mortos. Durante a pandemia, afirmou que os pobres são os maiores afetados enquanto atrapalha e sabota todas as medidas profiláticas. Nomeou um ministro que gravou um vídeo inspirado em Joseph Goebbels. Publicou um vídeo com uma frase que ficou conhecida por ter sido utilizada por Benito Mussolini. Como diria Leonel Brizola, “se algo tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré, pé de jacaré, olho de jacaré, corpo de jacaré e cabeça de jacaré, como é que não é jacaré?”
Mas esse jacaré te processa se você o chamar de jacaré. Ele é cioso da própria imagem e passa os dias cuidando dela ao invés de ocupar-se dos problemas mais urgentes do Brasil, mas supor que o desastre pelo qual atravessa o país é fruto de desgoverno é um erro. Não se trata de uma política equivocada por não se ter avaliado corretamente um parecer ou uma estratégia: trata-se de uma política deliberada que se justifica e se justificará desfigurando os dados. E, no fundo, ainda que não queira ser chamado disso ou daquilo, ceifar vidas sempre foi um desejo abertamente expresso pelo instinto predador que é inerente aos jacarés que bebem leite.
Rafael Mantovani é sociólogo, doutor pela FFLCH/USP e pós-doutorado pela Faculdade de Saúde Pública/USP. Autor do livro “Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840)” – Fiocruz (2017).