ONGs na Europa recorrem contra patente de medicamento para a hepatite C
Gilead, detentora da patente do sofosbuvir, vende o tratamento de três meses a cerca de R$ 200 mil por pessoa em países da Europa e no Brasil e a R$ 343 mil nos EUA. Países que rejeitaram a patente conseguem produzir o mesmo tratamento por R$ 400
Pela primeira vez em 46 anos de existência, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) decidiu se opor à patente de um medicamento concedida pelo Escritório Europeu de Patentes (EPO). “Chegou a hora do EPO e dos escritórios de patentes de todo o mundo examinarem mais de perto os monopólios sobre medicamentos e reconhecerem o impacto negativo que as patentes injustificadas têm sobre a saúde das pessoas,” declara Gaelle Krikorian, chefe da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais da MSF.
Na semana passada, organizações não governamentais médicas, entre elas a MSF e a Médicos do Mundo (MdM), tiveram negado o pedido de derrubar a patente da empresa farmacêutica americana Gilead para um medicamento que pode curar a hepatite C. No dia 14 de setembro, o EPO optou por confirmar a patente do Sofosbuvir à Gilead.
Gaelle acusa as companhias farmacêuticas multinacionais de abusar do sistema de patentes para excluir a concorrência e continuar a impor preços exorbitantes. “A revogação da patente da Gilead acabaria com o monopólio na Europa, abrindo caminho para o acesso a versões genéricas e acessíveis. Também enviaria um forte sinal para que outros países contestassem patentes injustificadas quando a saúde e a sobrevivência das pessoas estivessem em jogo”, destaca Gaelle.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que hoje existam na Europa 15 milhões de pessoas sofrendo de hepatite C. Em todo o mundo, são mais de 70 milhões de pessoas que sofrem da doença. A OMS recomenda o uso do sofosbuvir como medicamento eficaz e seguro para os sistemas de saúde, oferecendo cura da patologia em 90% dos casos. No entanto, devido ao alto preço do sofosbuvir, governos e profissionais de saúde de muitos países se vêem obrigados a racionar o remédio somente para pacientes em estágio avançado da doença. Se não tratada a tempo, a hepatite C pode levar à morte. A cada ano, 112.500 europeus morrem de câncer de fígado ou cirrose como consequência da doença.
Apesar da derrota da semana passada, a MSF ainda não se deu por vencida. “Vamos apelar dessa decisão porque acreditamos firmemente que o Escritório Europeu de Patentes (EPO) deveria ter revogado a patente”, afirma Gaelle.
Consultado pela reportagem, a assessoria de imprensa do EPO detalha que o presente caso seguiu para o sistema judiciário da própria organização – as Câmaras de Recurso. “Eles são independentes do escritório em suas decisões. Caso decidam manter a patente europeia, esta pode ser contestada nos tribunais nacionais dos países europeus onde a patente foi validada”, explica a assessoria de imprensa por e-mail.
Quando o assunto é o custo das invenções registradas, o escritório europeu parece lavar as mãos. “O procedimento de exame no EPO refere-se apenas aos aspectos técnicos da invenção. Aspectos econômicos, como o preço dos produtos ou o valor das invenções examinadas, não são de competência do EPO. Questões regulatórias e de políticas públicas, incluindo acesso a medicamentos e preços, são de responsabilidade de outras agências governamentais”, afirmam ainda por meio de nota.
Por outro lado, a mesma nota do EPO admite que as leis de patentes de muitos países fornecem salvaguardas para impedir que “o patenteador abuse de sua posição no mercado”. Nestes casos, as autoridades públicas podem proibir práticas anti-competitivas ou impor licenças compulsórias.
Disparidade de preços
Em países onde detém a patente e o monopólio de produção do sofosbuvir, a farmacêutica Gilead pratica preços bastante díspares e elevados. O tratamento de 12 semanas com o medicamento oral sofosbuvir, espinha dorsal dos tratamentos contra hepatite C, custa US$ 84 mil (R$ 343 mil) por paciente nos Estados Unidos. Em países da Europa, o mesmo tratamento custa 43 mil euros (R$ 200 mil). No Reino Unido, 35 mil libras (cerca de R$ 190 mil) por pessoa, mesmo valor praticado no Brasil. No Chile, são 18 milhões de pesos (aproximadamente R$ 110 mil).
Os valores certamente não variam segundo o custo de produção, estimado em uma pesquisa da Universidade de Liverpool entre US$ 68 (R$ 280) e US$ 136 (R$ 560) para cada paciente.
Nos países onde a MSF está tratando pessoas com hepatite C, como Mianmar, Camboja, Índia, Paquistão, Moçambique, Uganda e Quênia, o sofosbuvir é vendido por fabricantes de genéricos por menos de US$ 100 (R$ 412) para o mesmo tratamento de três meses.
O Egito, um dos países mais bem sucedidos no combate à hepatite C, chegou a examinar o pedido de patente da Gilead, mas não o concedeu, preferindo abrir caminho para que os fabricantes de genéricos entrassem no mercado nacional. Sem patente garantida, a Gilead acabou concordando em licenciar seus medicamentos no Egito por US$ 900 (R$ 3710) por todo o curso de tratamento de 12 semanas. E o tratamento genérico também pode ser encontrado no mercado por cerca US$ 300 (R$ 1236) por paciente.
Em entrevista à revista americana The Atlantic, o presidente do Comitê Nacional para o Controle das Hepatites Virais do Egito, Wahid Doss, explica que a redução do preço do medicamento da Gilead ainda lhe permitiu vender seus medicamentos para mais de 160 mil pacientes egípcios. “Eles também ganharam algum dinheiro”, afirma Doss. “Não foi um ato de caridade,” ressaltou.
Investimento em patente já “se pagou”
O sofosbuvir foi descoberto em 2007 pela empresa Pharmasset. Em 2011, a Gilead adquiriu a patente do sofosbuvir e conseguiu aprovação para comercializá-lo nos EUA como medicamento contra a hepatite C em 2013. A revista Forbes descreveu a compra da Pharmasset por US$ 11 bilhões como “uma das melhores aquisições farmacêuticas de todos os tempos”, garantindo à Gilead uma capitalização de mercado de US$ 113 bilhões e valorização de 100%.
Em um artigo sobre a cura da hepatite C, o médico australiano James Freeman chama atenção que “as leis de patentes devem ajudar a incentivar a pesquisa e o desenvolvimento, garantindo lucros para novos medicamentos; mas o fato é que a Gilead não inventou o Sofosbuvir,” destaca. Freeman afirma que a pesquisa do medicamento foi parcialmente financiada pelos contribuintes americanos e o investimento que a Gilead fez na compra dos direitos do medicamento “foi mais do que compensado em seu primeiro ano de venda”. “A maior parte do dinheiro que você paga pelo remédio agora vai para o marketing e para o pagamento de dividendos aos acionistas reunidos na Califórnia no momento,” ressalta.
O gráfico abaixo realizado pela empresa de pesquisas financeiras Visible Alpha estima o quanto a Gilead tem faturado com os medicamentos contra a hepatite C em bilhões de dólares e confirma a tese de Freeman. Considerando-se os dados para o remédio Sovaldi (sofosbuvir), percebe-se que a Gilead recuperou os US$ 11 bilhões de investimento praticamente no primeiro ano de venda.
Além disso, uma reportagem do San Francisco Business Times de março deste ano, assinada por Ron Leuty, menciona um relatório financeiro da Gilead no qual a empresa confirma a seus investidores “margens operacionais líderes do setor que são maiores que 50%, resultando em fortes fluxos de caixa.” Pelo gráfico, nota-se também que a farmacêutica vem faturando “menos bilhões”. A mesma reportagem do San Francisco Business Times explica que à medida que outras empresas também começaram a fabricar medicamentos contra hepatite C, houve uma queda na receita da Gilead de US$ 30,4 bilhões para US$ 26,1 bilhões.
Direito à quebra de patente
Em 2008 a Organização Mundial da Saúde (OMS) fechou um acordo sobre patentes e acesso a medicamentos. A decisão reconheceu o direito dos países de quebrar patentes e estabeleceu a criação de um grupo de especialistas para desenvolver um novo mecanismo de financiamento para estimular a pesquisas no setor da saúde.
Em setembro do ano passado 2017, o governo da Malásia emitiu uma licença de “uso do governo” em patentes do sofosbuvir para permitir que 400 mil pessoas que vivem com hepatite C na Malásia tenham acesso a medicamentos genéricos em hospitais públicos. Neste mês, o Escritório de Patentes da China (SIPO) considerou inválidas as reivindicações de patente da Gilead para o sofosbuvir, abrindo também caminho aos genéricos.
No Chile, a Gilead tentou anular a declaração de justificação de saúde pública emitida em março deste ano pela ministra Carmen Castillo durante o governo de Michelle Bachelet, autorizando a concessão de licença compulsória de acesso a medicamentos para deter a epidemia da hepatite C. Organizações como a Innovarte, Nuevo Renacer e membros do Congresso Nacional apresentaram como defesa as liberdades concedidas no acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), bem como na Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública, para defender a licença. Por fim, o ministro de Saúde, Emilio Santelices, do atual governo de Sebastian Piñera, também reiterou em agosto o direito à licença compulsória do Chile.
No Brasil, o juiz Rolando Spanholo, da 21]ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF), anulou nesta terça-feira a concessão de patente do sofosbuvir à Gilead pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) feita em 18 de setembro. Coincidentemente, o Inpi fez seu anúncio apenas quatros dias depois da decisão do EPO.
Spanholo entendeu que o Inpi deixou de analisar que o pedido de patente feito pela Gilead “não se coadunava com o interesse social, tecnológico e econômico” do Brasil. “Não andou bem o INPI quando se eximiu de enfrentar os argumentos de que a patente guerreada atenta contra o interesse social (a vida de quase um milhão de pacientes que dependem do SUS para tratar a Hepatite C), tecnológico (há notícia de que fundação pública nacional já desenvolveu tratamento genérico seguro e eficaz para a mesma doença, cujo projeto teria que ser abortado em decorrência da patente requerida) e econômico do povo brasileiro (anualmente, o SUS desembolsa quase R$ 1 bilhão para atender tais pacientes), sob a pretensa ausência de competência”, afirmou o magistrado.
Agora são os europeus que aguardam que o monopólio da patente para o medicamento da hepatite C também seja revisto em prol da saúde pública. “Eu tive que esperar três longos e dolorosos anos para receber o sofosbuvir”, relata a britânica Clare Groves, membro da ONG Just Treatment e tratada pelo sistema de saúde pública do Reino Unido. “Não quero que o sofosbuvir seja negado a outras pessoas devido ao seu preço exorbitante, por isso continuarei a lutar pelo acesso a este tratamento da hepatite C,” defende Clare, hoje curada.
*Viviane Vaz é jornalista e escreve de Bruxelas