Opondo “pacíficos” x “violentos” nos discursos sobre manifestações
O tema é velho para quem acompanhou a mesma narrativa emergir por ocasião das manifestações de massa desde 2013 no Brasil. Trata-se exatamente da mesma dicotomia, à parte o tom copiosamente positivo atribuído à pauta em si no caso das manifestações iniciadas nos Estados Unidos e espalhadas pelo mundo sob o mote “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”), inexistente quando os mesmos temas foram justamente as pautas das manifestações no Brasil: violência policial, racismo, Amarildo, educação pública
Conforme aumentavam em número e intensidade as manifestações nos Estados Unidos, cujo estopim foi a morte por sufocamento de George Floyd por um policial branco, a imprensa brasileira oscilava a narrativa, classificando as ações dos manifestantes: marchar, andar pelas ruas em multidão é permitido, legítimo. Assim como diversos expedientes simbólicos similares – ajoelhar diante de policiais, abraçá-los, as “mãos ao alto” em alusão ao que fez Trayvon Martin, de 17 anos, antes de ser assassinado pela polícia em 2012, as palavras de ordem, dentre outros. Os saques, as situações de discussão entre manifestantes (“provocadores”, assim adjetivados) e policiais, as depredações de lojas e demais fachadas de prédios comerciais, nesse discurso eram localizadas como ações criminosas cometidas por “não-manifestantes”, por pessoas que “não estavam ali para protestar”, mas “vândalos”. Que era preciso saber discernir esses “dois tipos de grupos”.
Uma repórter que estava em Washington D.C., cujo papel é particularmente estratégico por ser a responsável em retratar o avanço da manifestação à Casa Branca, chegava a se aproximar de manifestantes e descrevê-los como “vândalos” e “provocadores”, em português, portanto ininteligíveis para que os próprios pudessem ter a oportunidade de respondê-la, enquanto mostrava seus atos classificados como desviantes do todo, segundo a ideologia do Grupo Globo.
Eram raras as entrevistas, os repórteres e comentaristas do estúdio monopolizavam toda a narrativa e interpretação sobre o que se passava. Não é preciso ir muito longe para depreender que a repressão, as prisões, os acossamentos, as bombas, as balas de borracha, as agressões, estavam majoritariamente dentro do curso normal dos acontecimentos e não eram objeto de maiores questionamentos pelos comentadores. Afinal, para todos os efeitos, policiais estão ali para “impor a ordem”. O ápice da adesão a esse ideário foi uma cena transmitida ao vivo de um jovem negro que tinha seu corpo imobilizado e coberto por seis policiais brancos, e uma jornalista insinuou que “talvez ele tivesse batendo carteira”. Isso porque o lema dos atos que narravam era a luta contra o racismo. Toda a cobertura, até agora, mobilizou essas duas imagens, a de uma “primavera norte-americana” altamente elogiada, colocada em oposição a comportamentos de exceção de pessoas que não estariam interessadas na pauta, mas para “fazer vandalismo”.
Junho de 2013
O tema é velho para quem acompanhou a mesma narrativa emergir por ocasião das manifestações de massa desde 2013 no Brasil. Trata-se exatamente da mesma dicotomia, à parte o tom copiosamente positivo atribuído à pauta em si no caso das manifestações iniciadas nos Estados Unidos e espalhadas pelo mundo sob o mote “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”), inexistente quando os mesmos temas foram justamente as pautas das manifestações no Brasil: violência policial, racismo, Amarildo, educação pública, os cartéis mafiosos dos transportes que inviabilizam o direito à mobilidade sobretudo dos mais pobres – majoritariamente negros –, etc.
Seria ilusório esperar algo diferente disso vindo da imprensa liberal-burguesa brasileira. No entanto, essa mesma polarização mambembe, que se arroga analiticamente capaz de dividir e classificar intenções individuais e grupais segundo uma lógica binária e moralizante assistindo imagens e sem sequer indagar os atores envolvidos, reverbera e passa a ser (re)utilizada no Brasil por quem supostamente não somente apoia as pautas como dedica boa parte de seu tempo em torno delas, como é o caso de artistas e do amplo e amorfo campo de oposição ao atual governo de extrema direita. Claro que isso se insere em determinadas avaliações de conjuntura e de elucubrações várias do que fazer para superá-la ou não aprofundá-la. Assim, o discurso do “perigo dos infiltrados” nos atos, igualmente velho conhecido para quem acompanhou as Jornadas de 2013, passa a ser divulgado como ponderação para a realização dos atos – ou seja, questionando a emissão pública e coletiva de posições políticas em um regime ainda e formalmente democrático. Discurso que se constrói a partir de achismos difusos e pressupostos similares aos da imprensa, mas por vezes aglomerando indistintamente num mesmo saco grupos com pautas antagônicas, a partir da inflamação de um medo da violência de multidões e do risco pandêmico associado a ela, curvando-se, no limite, à permanência e perpetuação da violência de Estado e, inclusive, da pandemia, já que o atual governo brasileiro a nega e despreza seus mortos.
Como opera a violência
Sem entrar no mérito das apropriações ideológicas do tema da violência por setores que já têm relativamente consolidadas suas estratégias políticas para reduzir abismos sociais, gostaria de descrever dois episódios específicos que problematizam essa vaga ideia de como opera a violência. Ao invés de inscrevê-la em uma linguagem parental mediadora de briga entre irmãos, cuja solução passaria por identificar e punir “quem começou primeiro”, tipicamente atribuída à multidão ou “grupos infiltrados” “provocadores” e “vândalos” nas narrações a que esse texto se refere, é necessário retomar sua caracterização a partir de configurações de contextos, como ela emerge, como se instaura e, sobretudo, por que é impossível escondê-la durante o choque entre manifestantes e as forças de repressão.
Em outubro de 2013 ocorria, no Rio de Janeiro, uma greve dos professores da rede pública estadual e municipal, a maior categoria laboral do estado. A cidade vinha de um intenso percurso de atos e mobilizações desde junho, sobretudo em torno da violência policial, da educação e dos transportes urbanos, durante o qual alguns grupos de jovens aderiam à tática chamada de black block, originariamente proveniente de grupos anarco-punks europeus que atuavam como grupos de autodefesa contra a violência policial em manifestações. Esse setor foi altamente criminalizado durante as Jornadas de Junho, inclusive por partidos da esquerda parlamentar. Os professores faziam acampamentos em frente a Assembleia Legislativa e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, convocavam atos em prol da educação pública, e as assembleias semanais do Sindicato Estadual dos Professores aglomeravam aproximadamente três mil professores e professoras. Em uma delas o tema da participação ou não dos blacks blocks ficou candente, de modo que se votou sobre a permissão da participação deles no próximo ato. Ganhou a opção por não permitir, de modo que houve um pedido feito via redes sociais já que não havia contato oficial entre esses setores, solicitando à essa juventude que não estivesse lá, o que foi acatado. Aconteceu que esse próximo ato, no dia 15 de outubro, a Cinelândia se transformou em palco de guerra, e os professores foram duramente reprimidos pela polícia, apesar da ausência dos “mascarados” – sutil deslocamento semântico do termo “vândalo”, porém ainda pejorativo, já que o segundo se encontrava devidamente devolvido com o lema “vândalo é o Estado”.
As professoras e professores avaliaram então que não era a presença de instrumentos e táticas de autodefesa o que causava a ação da polícia. Que a truculência policial já estava colocada diante do simples fato de existir uma categoria mobilizada contra o desmonte da educação pública no estado do Rio de Janeiro; contra o drástico desprezo conferido às políticas sociais como um todo, suficientemente informados que estavam os professores de que essa dilaceração de direitos sociais no Brasil certamente privilegia alguns. Na assembleia seguinte, a mesma categoria que rechaçava anteriormente os grupos de autodefesa, indignada após testemunhar que era percebida pela polícia e seus mandatários como oponentes e inimigos, entoava em coro “black block é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”.
Violência de Estado contra indígenas
Alguns anos antes, no nordeste brasileiro, uma liderança indígena narrava um episódio específico em que precisavam dar alguma resposta à um assassinato de um indígena, dos muitos que ocorriam, por jagunços de fazendeiros que não aceitavam o processo de demarcação territorial em curso. Explicava que se chorava os assassinatos violentos dos tantos parentes indígenas que tombavam naquela luta, mas o máximo para que restasse força para continuar a caminhada: recuperar as terras pertencentes aos encantados. As retaliações não previam “derramar uma gota de sangue sequer” porque não se igualariam aos mesmos meios espúrios dos seus inimigos. Numa delas, o dono da fazenda sabidamente assassino de um indígena foi surpreendido por um grupo de indígenas, que assombravam seu redor de madrugada com barulhos ecoando no meio da mata. O susto foi alimentado pela fama da força de batalha desses indígenas na região. Após um breve diálogo de aviso, o fazendeiro, que já sabiam que ocupavam uma área que estava dentro da área indígena, e seus poucos subordinados, bateram em retirada. No entanto, os assassinatos de indígenas não cessaram, tampouco as repressões provenientes diretamente de aparatos estatais, que chegou a mobilizar a Força Nacional de Segurança, helicópteros e polícia militar para acossar uma comunidade e atirar bombas e balas de borracha do alto durante uma manhã de atividade escolar infantil, em 2008.
Independente da escolha por “não derramar nenhuma gota de sangue”, a violência não foi extirpada, nem a diretamente provocada pelos fazendeiros, nem a latência do conflito em torno da terra, na medida em que os indígenas eram percebidos como ameaça pelo simples fato de estarem ali, de viverem ao redor e, sobretudo, de se mobilizarem em torno da retomada de um território historicamente saqueado e espoliado. Tanto que a criminalização seguiu em escalada, algumas de suas casas foram queimadas, uma campanha com outdoors em estradas os classificavam como “falsos índios” contra quem a população deveria combater, dentre diversos outros tipos de violências racistas e preconceituosas cometidas historicamente contra as populações indígenas no Brasil.
Independente da ausência de instrumentos e táticas de autodefesa diante do ostensivo e desproporcional aparato humano e armamentista da Polícia Militar, a violência não pôde ser extirpada das ruas do Rio de Janeiro em 2013. A violência está irremediavelmente ali: na interdição de trajetos dos atos, nas prisões e revistas seletivas e truculentas, nos celulares de alguns policiais captando de perto imagens de manifestantes, nos olhares patrulhas e ameaçadores durante a marcha, nas bombas de efeito (i)moral, no gás lacrimogêneo e de pimenta que sufocam, cegam e ardem[1], na blindagem a prédios e representantes governamentais para deliberarem o que bem entenderem, nas imagens mais visceralmente visíveis, no transcorrer das marchas, dos efeitos das deliberações arbitrárias de Estado. Um deles, Rafael Braga, alvo mais vulnerável para servir de repressão exemplar a manifestantes e manifestações.
“Pacíficos” e “violentos”
Saquear e destruir lojas, seguindo a lógica da defesa irrestrita às grandes corporações e seus mandatários que se beneficiam largamente de um sistema de sobre-exploração do trabalho, de pauperização e precarização das condições de vida, também será classificado como “crime” dentro dessa polaridade mistificada entre “pacíficos” e “violentos”. Não importa se a despeito de inexistir sistema público de saúde no país mais rico do mundo e por isso tenha sido o mesmo que deixou morrer o maior número de pessoas de Covid-19. Não importa se essas lojas representem a dimensão palpável e acessível de um modo de vida que mata de sufocamento, de desgosto, à bala, de fome, via pandemia.
Na cultura do terror ninguém passa incólume ao medo e ao risco da reação e ao ímpeto de reagir. Quando a violência é uma modalidade de socialização normatizada da vida ordinária torna-se uma armadilha sucumbir à tentativa de identificar e apontar quem “inicia” provocações ou ações violentas em protestos, eventos onde os problemas e conflitos sociais são visceralmente expostos. Essa tentativa de pinçar desde multidões de rua “pacíficos” e “violentos”, categorias voltadas a questionar índoles e transbordar suas intenções para além das reivindicações políticas ali colocadas, presentes não apenas no discurso da imprensa brasileira de grande alcance quanto de muitos que frequentam os atos no Brasil, serve tão somente à criminalização de suas pautas e não ao avanço delas. Porque inverte narrativamente a correlação de forças tal como objetivamente opera: a execução militarmente treinada de movimentações policiais com o objetivo de impor o medo, encurralar e dispersar manifestantes, e interromper suas presenças e expressões nas ruas. Essa falsa oposição, obviamente aplicada somente a manifestantes já que vivemos sob o mito do contrato social justificador ideológico do monopólio do uso da força pelo Estado, tem como efeito mascarar as reais violências e brutalidades, sobre as quais esses manifestantes estão tentando expor em alto e bom som. Resta saber até quando vamos confundir ou tolerar ser confundida a reação do oprimido com a violência do opressor.
Aline Moreira Magalhães é antropóloga, atualmente pesquisadora vinculada à Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz)
[1] Somente em junho de 2013 a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro precisou empenhar (reservar no orçamento para pagamento posterior) R$ 1,6 milhão para repor emergencialmente o estoque de bombas de gás lacrimogêneo do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2013/06/27/estoque-acaba-e-pm-compra-bombas-emergencialmente.htm?cmpid=copiaecolahttps://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2013/06/27/estoque-acaba-e-pm-compra-bombas-emergencialmente.htm