Orçamentos Participativos, Direito à Cidade e crise da democracia
Uma das questões mais relevantes dos Orçamentos Participativos diz respeito ao poder real de decisão da sociedade civil sobre as prioridades orçamentárias, principalmente no item investimentosLuciano Fedozzi
Dentre a pluralidade das Instituições Participativas que surgiram com a redemocratização do país 1 (PIRES e VAZ, 2010) destacou-se o Orçamento Participativo (doravante OP) como a inovação que mais se notabilizou e, que, a partir do efeito-demonstração do caso de Porto Alegre 2, se expandiu no país e no mundo. Desde a década de 1990 o OP tornou o Brasil uma referência internacional de vanguarda da democracia participativa. Esse foi um dos principais elementos para que o Fórum Social Mundial fosse realizado em Porto Alegre.
Nessa trajetória de 26 anos dos OP (e considerando que eles são muito distintos entre si), uma parte desses processos participativos possibilitou avanços democráticos significativos na gestão das cidades. Embora esses avanços não possam ser generalizados, pode-se indicar: a inclusão de setores sociais mais pobres nas decisões orçamentárias; a inversão de prioridades dos investimentos públicos; o aumento do controle social sobre as Administrações Municipais; o incentivo ao exercício de uma cidadania ativa; a quebra de circuitos tipicamente clientelistas nas relações entre os poderes (Executivo e Legislativo) e desses com a população; a ampliação da transparência da gestão pública.
O direito à cidade em tempos de crise A série “O direito à cidade em tempos de crise” é uma parceria do Le Monde Diplomatique Brasil com o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) Observatório das Metrópoles. A série tem como objetivo suscitar a reflexão e monitorar os avanços e conquistas na afirmação do direito à cidade no Brasil, denunciar retrocessos e apontar tendências para o futuro das cidades brasileiras. A cidade transformou-se, em pleno século XXI, no palco principal das lutas políticas e sociais. A reprodução da vida, individual e coletiva, biológica e social, depende cada vez mais da qualidade do meio urbano construído que se expressa na forma social que chamamos de cidade, mas que também se expressa na sociedade urbana global. Ao mesmo tempo, a atual crise do capitalismo tornou a cidade uma nova fronteira de escoamento do capital sobre acumulado e financeirizado. Estes dois movimentos tornaram a cidade palco e objeto das lutas contemporâneas de classes, opondo a razão da reprodução da vida à razão da reprodução do capital. Esta contradição global está também cada vez mais presente no Brasil. Com efeito, ingressamos na sociedade urbana com legado de cidades historicamente precárias, nas quais estão presente dois projetos antagônicos em disputa. De um lado, o representado pelos ideais, princípios e mecanismos da reforma urbana que obteve alguns avanços na afirmação do direito à cidade, no período 2003-2013. De outro lado, o projeto representado pela ideologia neoliberal que, em nome do empreendedorismo urbano, tem incentivado a adoção de políticas urbanas habilitadoras das forças mercantilizadoras do solo urbano, da moradia, privatização dos serviços coletivos, entre outros. Mas qual desses projeto irá predominar diante do atual quadro de crise político-econômica de longa duração no país? Se caso a saída para a crise for conservadora e ultra liberal, isso representará um provável retrocesso das conquistas do direito à cidade no Brasil. E é esse um dos principais campos em disputa. |
Os potenciais normativos dos OP somados a expansão quantitativa e ao êxito de casos ensejaram, em geral, avaliações ufanistas e abordagens apologéticas, isto é, de baixa ou nula reflexão crítica sobre a realidade dos Orçamentos Participativos. Hoje, essa posição vem sendo substituída por avaliações mais realistas e mais reflexivas. É nesse registro que se encontra o presente artigo. Não há espaço aqui e nem se propõe que seja realizado um balanço. Cabe, entretanto, abordar alguns elementos que, para além dos avanços democráticos que os OP já possibilitaram, indicam certos limites quanto à qualidade e à efetividade da participação na gestão pública, assim como quanto ao papel dos OP frente ao desafio do direito à cidade.
No contexto de profunda crise da representação política e da própria democracia no país, hoje, refletir realisticamente sobre os OP, assim como sobre as outras formas de democracia participativa, é um imperativo para a resistência democrática das conquistas e para a eficácia das lutas pelo direito à cidade.
Para tal, inicialmente, serão expostos dados sobre o processo de expansão quantitativa dos OP. Como ver-se-á, esse cenário causa dúvidas e ainda está em aberto para conclusões a partir de maior embasamento empírico. Em seguida, serão expostos alguns limites que se destacam nas experiências dos OP e que julga-se significativos para a análise dessa destacada forma de democracia participativa no processo democrático brasileiro. Por fim, é realizada uma síntese dos principais limites estruturais e situacionais dos OP e são apontadas possíveis hipóteses para o futuro dessa participação no Brasil.
OP no Brasil: expansão ou retração quantitativa?
Desde seu surgimento os OP experimentaram grande expansão, primeiro no país e após em escala internacional3 . O número aumentou de dez, em 1993-1996 (RIBEIRO E GRAZIA, 2003, p. 88-94), para 355, em 2008-2012 (RBOP, 2012). Entretanto, outras pesquisas indicam ao contrário: uma tendência de decréscimo no número de OP no país a partir de 2004 (SPADA, 2014)4 . Essa hipótese não deve ser descartada devido a mudanças políticas e econômicas, como serão vistas abaixo. Ressalta-se que são casos auto-declarados de OP e cujos números devem ser tomados como aproximativos. Novas pesquisas deverão trazer dados mais robustos6 . Destaque-se, nesse contexto, que os OP também foram adotados por agentes vinculados ao ideário neoliberal, caso do Banco Mundial, com grande influência em países africanos e latino-americanos.
OP: alguns limites que as experiências indicam
Uma das questões mais relevantes dos OP diz respeito ao poder real de decisão da sociedade civil sobre as prioridades orçamentárias, principalmente no item investimentos. Embora haja variação nos casos, o que prevalece na grande maioria é a participação sobre uma pequena fatia dos investimentos municipais, quando muito chegando a 5% ou no máximo 10%6 . São raros os casos em que os OP são constituídos pelo debate público sobre toda a matriz orçamentária (receita e despesa) em que a decisão sobre as despesas corresponde a um processo político de co-gestão ou compartilhamento de decisões entre participantes e governantes, isto é: onde os governantes apresentam suas propostas de obras e projetos para toda a cidade e, ao mesmo, tempo, adotam as demandas populares mediante critérios objetivos e distributivistas. Associado a esse item do volume de recursos está a questão do poder real de decisão dos cidadãos. Na grande maioria dos casos (77%), a última decisão ficou ao encargo dos governantes (RIBEIRO; GRAZIA, 2003, p. 94), ou seja, em lugar da co-gestão prevalece a consulta.
Faz-se necessário reconhecer que o agravamento da crise financeira dos municípios também é fator que tem obstaculizado os OP. A análise da distribuição dos OP nos municípios no período 2009-2012 sugere que fatores relacionados ao desenvolvimento econômico local (PIB per capita), à saúde financeira das administrações municipais (receita orçamentária per capita) e ao nível de desenvolvimento humano e social (ranking do IFDM)7 , são condições que parecem favorecer a implementação dessas (OP) IP, desde que haja projetos políticos favoráveis à essa prática (FEDOZZI E LIMA, 2014).
Ao mesmo tempo a variável político-partidária tem alta relevância na adoção e sustentabilidade dos OP. Os últimos dados demonstram mudanças na posição ocupada pelos partidos quanto ao número de municípios com OP. Na gestão 1997-2000, após o PT, o PSDB era o segundo partido em número de casos, seguido pelo PSB e PMDB, (RIBEIRO E GRAZIA, 2003, p. 38). No último período analisado (2009-2012), ocorreu troca de posições entre o PMDB e o PSDB. O PMDB subiu para o segundo posto (26% dos OP) e o PSDB caiu para o quarto (4% dos casos). É provável que a reprodução local da aliança nacional entre PT e PMDB tenha contribuído para esse quadro. O PT continua sendo o partido com o maior número de municípios com OP (150 municípios ou 45% do total dos casos)8 . Entretanto, os dados parecem confirmar a tendência, já apontada por estudos anteriores, de diminuição do número de OP nas administrações do PT (RIBEIRO, 2004; SOUZA, 2010). No período de auge da proliferação das instituições participativas (1997-2000), o percentual chegou a 46,8% (52 municípios dentre 111 governados pelo PT) (RIBEIRO E GRAZIA, 2003). Esse percentual caiu quase 100% na última pesquisa relativa às gestões 2009-2012 (RBOP, 2012), ou seja, de 46,8% para 26,9%, equivalente a 150 municípios entre os 558 governados pelo PT. Os demais partidos de esquerda também apresentam baixo percentual de cidades com OP (2009-2012): o PCdoB, 14,6% (6 entre 41) e o PSB com apenas 8,4% (26 entre 308). (RBOP, 2012). Vários estudos têm apontado para a perda da centralidade política dos OP nas gestões locais do PT. Uma das principais hipóteses para isso seria oriunda das mudanças programáticas e ideológicas que passaram a ocorrer na “fase estatal” do partido e ao mesmo tempo a tendência à reprodução da ampla política nacional de alianças. As mudanças teriam aproximado o PT de partidos eleitorais tradicionais e amenizado as práticas mais críticas aos limites e vícios da democracia representativa.
O OP e a Reforma Urbana
Outra questão de alta relevância diz respeito à desconexão entre os OP e o planejamento urbano das cidades. Como se sabe, grande parte das decisões que mais impactam a construção e uso do espaço urbano são tomadas nos Conselhos Municipais dos Planos Diretores. Nesses conselhos, se apresentam os grandes interesses do capital imobiliário e especulativo que, regra geral, se encontram articulados com forças políticas das Administrações Municipais. Nas últimas décadas, aumentou consideravelmente a adoção de regimes urbanos que favorecem a mercantilização das cidades (ROLNIK, 2009).
Não raro, o que se observa, inclusive em cidades governadas por partidos de esquerda ou progressistas, é que os OP se mantém fora desse círculo de influência, constituindo-se, por vezes, como apêndice da política urbana. E o mais grave: com anuência dos participantes e de lideranças comunitárias do OP, em razão do desconhecimento sobre o funcionamento da lógica urbana, ou de concepções pragmáticas de curto prazo, ou mesmo de cooptação política. O mesmo vale para o papel ativo dos agentes políticos da gestão pública.
Não obstante, o ideário histórico da luta pela Reforma Urbana no Brasil tem ressaltado que a efetivação do direito à cidade exige a necessária complementaridade entre os processos de inversão de prioridades orçamentárias (universalização do acesso à infraestrutura e aos serviços) e a implementação de políticas urbanas que incidam sobre a lógica perversa de produção e reprodução do espaço urbano. Sem essa conexão se corre o risco, não incomum, de promover um simulacro de participação nas decisões que realmente influenciam o modelo de construção e uso do espaço urbano. Por isso, um dos maiores desafios de qualquer projeto democrático transformador na esfera local, está em conectar o OP à aplicação dos instrumentos de reforma urbana representados hoje pelo Estatuto da Cidade.
A participação na encruzilhada
As questões abordadas acima, somadas ao contexto internacional de disseminação dos chamados OP pelas mãos de agências internacionais e forças políticas neoliberais, nos levam ao que Dagnino denominou de “confluência perversa” no campo do discurso sobre a participação. Chamando atenção para a importância dos projetos políticos9 em jogo na democratização, esta confluência se refere aos deslocamentos de sentido que operam nas noções de Sociedade Civil, Participação e Cidadania. Segundo a autora:
A disputa política entre projetos políticos distintos assume então o caráter de uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: participação, sociedade civil, cidadania, democracia. A utilização dessas referências, que são comuns mas abrigam significados muito distintos, instala o que se pode chamar de crise discursiva: a linguagem corrente, na homogeneidade de seu vocabulário, obscurece diferenças, dilui nuances e reduz antagonismos. Nesse obscurecimento se constroem sub-repticiamente os canais por onde avançam as concepções neoliberais, que passam a ocupar terrenos insuspeitados. [….]. A perversidade estaria colocada, desde logo, no fato de que, apontando para direções opostas e até antagônicas, ambos os projetos requerem uma sociedade civil ativa e propositiva. (DAGNINO, 2004, p. 97).
Os elementos acima elencados estão longe de abarcar o conjunto de questões que constituem os maiores desafios para que os OP possam se efetivar como instituições que promovam o direito à cidade. Em síntese, pode-se dizer que, dentre outros desafios e obstáculos, encontram-se, como visto acima: a) a baixa parcela dos investimentos discutidos com os setores da sociedade civil; b) na maioria dos casos, o poder meramente consultivo dos processos; c) a baixa capacidade de investimentos dos municípios agravada pela crise financeira e do pacto federativo; d) a desconexão entre os OP e as decisões tomadas nos Planos Diretores, que tem alto impacto no modelo de construção e uso do espaço urbano; e) a hegemonia de regimes urbanos baseados na mercantilização das cidades e dos espaço públicos; f) a perda da centralidade política dos OP nas gestões do PT; e g) a adoção da participação por forças neoliberais, a partir de significados e práticas distintas daquelas surgidas nas décadas anteriores, constituindo a chamada “confluência perversa” porque também exigem papel ativo da sociedade civil.
Considerações finais
Os limites e grandes desafios elencados constituem um contexto mais complexo para se projetar a expansão dos OP no Brasil, e, sobretudo, para a maior efetividade e qualidade desses processos. O novo contexto de crise política e fiscal e de retrocessos democráticos trazem dificuldades maiores para a criação e a sustentabilidade dos OP e da própria democracia participativa. Por outro lado, poderá haver – a título de hipótese – uma rearticulação do campo popular e democrático que seja benéfico à retomada dos OP. Enfim, é justamente nesse contexto que a participação popular e cidadã, inspirada por formas como os OP, faz-se mais necessária.
Luciano Fedozzi é Doutor em Sociologia. Professor da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles.