Os agrotóxicos, os peixes e o cérebro
Consumo de peixes contaminados é uma das principais causas da exposição humana às toxinas ambientais
Formado por 86 bilhões de neurônios e pesando cerca de 1,5 kg, o cérebro é responsável por nossas sensações, emoções, raciocínio, linguagem e consciência. Ao longo da vida, o cérebro humano está em constante transformação, tornando-se um órgão altamente eficiente. No entanto, essas características apenas se tornaram possíveis pelas experiências adquiridas e dificuldades enfrentadas por nossos ancestrais ao longo da história, as quais foram capazes de modular o cérebro durante a evolução da espécie humana. De fato, existem muitas hipóteses que tentam explicar essa evolução cerebral, tais como as mudanças no ecossistema, a linguagem, a socialização, a capacidade de fabricar ferramentas, a domesticação do fogo e o consumo de carne de caça e peixe. Nesse aspecto, elegantes estudos têm demonstrado que a alimentação foi um processo chave na evolução do cérebro. De fato, como o cozimento dos alimentos permitiu uma maior absorção de calorias, esse aumento de enegia no organismo e tempo livre disponível para atividades sociais e resoluções de problemas foram fatores essenciais para o aprimoramento da capacidade cerebral e o desenvolvimento do tamanho do cérebro.
Do ponto de vista nutricional, análises criteriosas da dieta dos nossos ancestrais (animais de caça, peixes, e alimentos vegetais) revelaram que os peixes eram consumidos com muita frequência. Além de ser mais fácil de capturar e cozinhar, o peixe é uma fonte de nutrientes de alto valor biológico e principalmente, de gorduras saudáveis, ambos essenciais para o desenvolvimento cerebral. Com relação às gorduras boas, é sabido que de todos os órgãos do corpo humano (excluindo o tecido adiposo), o cérebro apresenta o maior conteúdo lipídico (gorduras). O peso seco de um cérebro adulto é composto de 50% a 60% de lipídios, e 35% desse conteúdo lipídico é constituído por gorduras saudáveis, os ácidos graxos poliinsaturados (PUFAs). Os dois tipos de PUFAs existentes, o ômega-3 e o ômega-6, são chamados essenciais pois nosso organismo não consegue produzi-los. Dessa forma, estas gorduras devem ser obtidas através da alimentação. O ômega-6 está presente nos óleos vegetais (girassol, milho, soja, algodão), em nozes e sementes e o ômega-3 é encontrado principalmente em uma dieta rica em peixes. De fato, os peixes são altamente valiosos do ponto de vista médico/nutricional. Do ponto de vista cerebral, uma vasta quantidade de estudos científicos tem evidenciado que o ômega-3 presente nos peixes é essencial para o crescimento do cérebro e desenvolvimento cognitivo (memória e aprendizagem), como também na prevenção e/ou redução dos sintomas de doenças neuropsiquiátricas.
Os peixes são animais vertebrados que habitam exclusivamente o ambiente aquático. Estima-se que 71% da superfície da Terra é coberta por água, totalizando um volume de 1,386 bilhão de quilômetros cúbicos de água. Dessa quantidade extraordinária de água, 97% é salgada (mares e oceanos) e apenas 3% é água doce. Infelizmente, essa água está doente (lagos, rios, oceanos e águas subterrâneas) e necessita de cuidados urgentes. Além da má qualidade e contaminação da água influenciar negativamente na reprodução, crescimento e sobrevivência dos peixes, também atinge os seres humanos como consumidores finais. Ou seja, a atuação da sociedade de consumo no espaço geográfico é uma grande ameaça à biodiversidade do planeta, particularmente à sobrevivência da nossa espécie. Dentre os maiores contaminantes das águas, os agrotóxicos ocupam lugar de destaque. Realmente, a quantidade de agrotóxicos comercializada no Brasil (um dos principais produtores agrícolas do mundo) aumentou três vezes em comparação ao crescimento de áreas cultivadas, colocando nosso país em primeiro lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Catastroficamente, a contaminação de ambientes aquáticos por agrotóxicos é frequente, persiste por anos e dessa forma, deve ser considerada grave. Basicamente, esses agrotóxicos atingem as águas devido ao manuseio incorreto dos produtos, pela pulverização aérea (método utilizado para aplicação de agrotóxicos através de aviões e drones) e pela lixiviação (transporte vertical dos agrotóxicos no perfil do solo contaminando às águas subterrâneas, juntamente com a água das chuvas ou da própria irrigação que desce pelo solo). Sendo assim, ao entrar em contato direto com os peixes por meio dos seus tegumentos (pele), boca e guelras (respiração), os agrotóxicos podem ser bioacumulados, significando que o consumo de peixes contaminados é uma das principais causas da exposição humana às toxinas ambientais. Desse modo, estudos recentes demonstram que os resíduos de agrotóxicos se acumulam nos músculos e vísceras dos peixes, alterando a fisiologia, os mecanismos de defesa e o comportamento dos animas.
Em linhas gerais, o consumo de peixes é a principal fonte alimentar de ômega-3 para os seres humanos. Infelizmente, as evidêcias científicas atuais nos alertam que a ingestão de peixes contaminados por agrotóxicos pode trazer graves impactos à saúde humana. De fato, são amplamente conhecidos os diversos efeitos agudos e crônicos à saúde da exposição aos agrotóxicos, incluindo os dermatológicos, visuais, auditivos, respiratórios, gastrointestinais, cardiovasculares, de fertilidade, cancerígenos e neuropsiquiátricos. Nesse sentido, tem-se demonstrado que alguns tipos de agrotóxicos (ex., carbamatos, organoclorados e organofosforados) podem causar sérios danos ao cérebro, sendo considerados potentes fatores de risco para o surgimento de doenças neurodegenerativas. Por exemplo, tem sido verificado que cinco a dez anos de exposição a agrotóxicos estejam relacionados a um aumento de 5% a 11% no risco de aparecimento da Doença de Parkinson. Além disso, estudos experimentais e clínicos demonstram uma correlação positiva entre a exposição a agrotóxicos e o aumento da incidência da Doença de Alzheimer. Paralelamente, vários agrotóxicos produzem efeitos neurológicos adversos de forma indireta, desequilibrando os mecanismos celulares que mantêm a atividade cerebral. Além disso, a exposição dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais aos agrotóxicos potencializa o surgimento dos transtornos mentais mais comuns, como depressão e ansiedade. Tragicamente, os casos de suicídio nesses indivíduos cresceram o dobro da média nacional.
Finalmente, o consumo regular de peixes é fundamental para a manutenção da nossa saúde cerebral. Os tipos de peixes (ricos em ômega-3), a frequência e a quantidade de consumo (duas ou três porções de 150g de peixe por semana) são requisitos essenciais para a manutenção de uma alimentação saudável, equilibrada e eficiente. Infelizmente, a contaminação de peixes em seu habitat natural por agrotóxicos é um fato que não deve ser negligenciado. Nesse sentido, uma fiscalização intensa e a criação de novas políticas públicas são fundamentais para reduzirmos de forma eficaz a exposição de peixes a elementos potencialmente tóxicos. Diante das recomendações de consumo, uma dieta rica em peixe traz muito mais benefícios do que riscos. Além disso, também é nosso papel promover o consumo de alimentos orgânicos e agroecológicos. Embora os alimentos orgânicos sejam geralmente mais caros que os alimentos produzidos convencionalmente (em função da pouca oferta de orgânicos no mercado), é indiscutível que o consumo de peixes provenientes da piscicultura tradicional (criação de peixes em água isenta de contaminantes ou poluentes) é altamente recomendado, pois além de ser extremamente saudável, esse sistema orgânico de produção promove o equilíbrio do ecossistema, a preservação do meio ambiente e valoriza a agricultura familiar.
Fulvio Alexandre Scorza é professor do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), coordenador científico do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e consultor científico da A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Larissa Mies Bombardi é professora associada do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Laboratório de Agroecologia da ULB (Universidade Livre de Bruxelas), membro do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (Brasil) e da Diretoria da Organização Internacional “Justice Pesticide” e curadora da aliança International Pesticides Standard Alliance (IPSA).