Os anti-iluministas de hoje
A direita estadunidense, os nacionalistas religiosos em Israel e os islâmicos extremistas compartilham o postulado de uma modernidade diferente, que considera nação como uma comunidade unida, voltada a Deus, segura de uma existência objetiva e cujos motores são independentes da vontade individual e da razãoZeev Sternhell
A guerra contra os valores do Iluminismo é tão atual quanto nos séculos passados. As grandes questões enfrentadas pelos filósofos do século XVIII permanecem centrais: uma sociedade representa um corpo orgânico, um organismo vivo ou apenas um conjunto de cidadãos? Em que consiste a identidade nacional? Uma comunidade nacional se define em termos políticos e jurídicos ou em função de uma história e de uma cultura? Qual é o peso da religião na cultura? O que é mais importante na vida dos homens: aquilo que é comum a todos ou aquilo que os separa? O mundo existente é o único possível? Uma mudança na ordem social vigente constitui um objetivo legítimo ou a certeza de um desastre? Evidentemente, as respostas a estas perguntas fundamentais colocam em questão uma concepção de homem. Para o pensamento político representado pela poderosa e tenaz corrente anti-iluminista, o indivíduo só tem sentido em e para a comunidade. Ele existe apenas no particular concreto, e não no universal abstrato. É preciso, portanto, privilegiar o que distingue, divide, separa os homens: aquilo que torna sua identidade, irredutível à razão pura, mais vigorosa.
Esta questão “identitária”, novamente na ordem do dia na França e em outros países, jamais desapareceu desde que Diderot e D’Alembert formularam na Enciclopédia a definição iluminista de nação: “Uma quantidade considerável de povos, que habita certa extensão do território, encerrada em certos limites e que obedece ao mesmo governo”. Nenhuma palavra sobre a história, a cultura, a língua ou a religião: é assim que o cidadão veio ao mundo, livre de suas particularidades. Sobre essa base os judeus e os escravos negros foram libertos pela Revolução, e, pela primeira vez na história moderna todos que habitavam um mesmo país e obedeciam a um mesmo governo tornaram-se cidadãos livres e iguais em direitos, sujeitos às mesmas leis. Essa concepção de nação, convém precisar, não expressava uma realidade sociológica ou cultural, mas representava o esforço heroico dos pensadores iluministas para superar as resistências da história, liberar o indivíduo dos determinismos de seu tempo – sobretudo da religião – e afirmar sua autonomia.
Essa visão política e jurídica de nação não sobreviveria aos primeiros anos da Revolução Francesa: logo seria substituída pela concepção de Johann Gottfried Herder, inimigo de Rousseau e de Voltaire, crítico de Kant e fundador do nacionalismo ideológico. Segundo esse grande pensador alemão, a nação é um fenômeno natural, um organismo vivo dotado de alma e gênio próprios, que se manifestam na língua. Assim como as folhas e os galhos só existem enquanto parte da árvore, os homens só existem enquanto nação. Esta unidade homogênea, quase tribal, possui uma personalidade e um caráter e representa o que a história criou de mais nobre.
O nacionalismo, que atravessou os séculos XIX e XX como um furacão, continua vivo. Afirma-se, com frequência, que ele nasceu da própria Revolução Francesa, mas trata-se exatamente do contrário, pois a revolução só foi possível à medida que a nação já era uma realidade e a transferência de poder pôde ser feita de modo natural. Mas Diderot e D’Alembert quiseram dar a esta realidade um sentido político e jurídico, orientando-a como uma coletividade de indivíduos, para não permitir que a história e a cultura tornassem o homem prisioneiro de determinismos. Para eles, assim como para Kant, o Iluminismo era um processo por meio do qual o indivíduo alcançava a maturidade, e sua liberação dos entraves da história constituía a essência das Luzes e o nascimento da modernidade. Para o pensamento iluminista, desde então e até nossos dias, o bem do indivíduo constitui o objetivo final de toda a ação política e social.
Os anti-iluministas dos séculos XIX e XX respondem a isso com a ideia de que a comunidade deve prevalecer sobre o indivíduo, que é definido antes de tudo como herdeiro do passado: nossos ancestrais falam por meio de nós, somos o que eles fizeram de nós. O político Nicolas Sarkozy, o intelectual Alain Finkielkraut, os muçulmanos, os judeus nacionalistas religiosos em Israel e os neoconservadores e seus aliados evangélicos nos Estados Unidos lutam, a despeito das aparências, o mesmo combate, porque todos afirmam, como Herder, que cada pessoa e cada comunidade histórica têm sua própria “cultura”, específica e inimitável, e é isso que deve ser privilegiado.
Nacionalidade
Se a nação é uma comunidade histórica e cultural, a qualidade de “francês histórico” torna-se um valor absurdo, enquanto a qualidade de cidadão francês é apenas um valor relativo, visto que ela designa uma simples categoria jurídica criada artificialmente. É possível, desse modo, considerar a possibilidade de, 65 anos depois das leis raciais do regime de Vichy, retirar a nacionalidade francesa dos “estrangeiros” naturalizados… Como diria George Orwell, graças a essa concepção, certos cidadãos podem descobrir da noite para o dia que são menos iguais que outros. Alain Finkielkraut se considera o depositário de uma herança histórica e cultural que remonta à sagração de Reims: no entanto, um bom maurrasiano1 o definiria sempre como um judeu polonês nascido na França por acaso… Hoje, ele se encontra protegido de discriminações, o que não é o caso dos árabes e de outros muçulmanos.
Entretanto, de um modo que poderia parecer inesperado, essa direita e os militantes muçulmanos das periferias têm em comum alguns valores importantes: privilegiam o pertencimento cultural, defendem o seu “eu” histórico, fundam a sua identidade em um passado real ou mítico, pensam que sua comunidade cultural tem algo de único a dizer e sempre deve permanecer fiel a si mesma. Eles têm mais afinidades entre eles que com os enciclopedistas… Mas os fundamentalistas islâmicos ganham de longe da direita no poder no que diz respeito à questão essencial da impermeabilidade de culturas. Diferentemente da direita, o islamismo e outros fundamentalismos, como o judaico ou o cristão, pregam a necessidade do isolamento.
É necessário, sem dúvida, relembrar brevemente a fascinação pós-modernista pelo multiculturalismo e pelo diferencialismo cultural, que cumpriu um papel central no enfraquecimento dos valores universais. Claude Lévi-Strauss, seu grande profeta, era consciente da vocação anti-humanista e antiuniversalista do diferencialismo cultural, que reivindica para cada cultura uma originalidade incomunicável e inimitável. Com efeito, explica ele, “não importa quais os fins morais a ela atribuídos, a luta contra todas as formas de discriminação participa deste mesmo movimento que conduz a humanidade a uma civilização mundial, que destrói velhos particularismos cujo privilégio e honra consistem na criação dos valores estéticos e espirituais que dão sentido à vida”. Sob pena de decadência cultural e espiritual, a humanidade “deverá reaprender que toda criação autêntica implica certa surdez com respeito às demandas de outros valores, podendo levar à sua recusa ou até mesmo à sua negação. […] Plenamente bem-sucedida, a comunicação integral com o outro condena, a mais ou menos curto prazo, a originalidade da criação tanto do outro quanto da minha.”
Os pensadores anti-iluministas, de Herder aos pós-modernistas e fundamentalistas de todos os tipos, sempre disseram isso. É evidente que essa recusa do universalismo e do humanismo está de acordo com todas as variantes do comunitarismo e do neoconservadorismo, sobretudo em sua versão estadunidense.
Para Daniel Bell, o mais importante teórico neoconservador contemporâneo, dizer que “Deus está morto significa dizer que a sociedade está morta”. Ora, a cultura “modernista”, aquela do Iluminismo, que teve a infelicidade de “deslocar o centro da autoridade do sagrado ao profano”, é incapaz de oferecer “um conjunto transcendental de valores últimos, ou mesmo de satisfações na vida cotidiana”. Nada substitui a religião como consciência da sociedade: se no novo “capitalismo”, desprovido de ética moral ou transcendental, pôde aparecer a contracultura hedonista em que se perdem os valores estadunidenses, foi por causa do enfraquecimento da ética protestante.
Neoconservadorismo
O discurso do ideólogo político do movimento, Irving Kristol, morto em setembro de 2009, adquire um tom digno de um manifesto islâmico ou nacionalista religioso israelense ao recordar que, sem uma dimensão religiosa, o conservadorismo não tem consistência, e a laicidade é o inimigo, pois não basta dizer que este mundo é o melhor possível e que os males que existem nele são necessários, resta saber qual conduta adotar face a esses males. Para Kristol, é precisamente esta a glória do neoconservadorismo: ter conseguido convencer a grande maioria dos estadunidenses que as frustrações econômicas e outras questões sociais são na verdade questões morais, para as quais a religião tem a chave. Compreende-se porque os neoconservadores se associaram facilmente com os conservadores religiosos e souberam criar junto o conservadorismo populista. A direita estadunidense, a direita nacionalista religiosa e anexionista em Israel, e os islâmicos espalhados pelo mundo compartilham, assim, o postulado de uma modernidade diferente: aquela que considera a nação como o tipo ideal de uma comunidade unida, voltada a Deus, segura de uma existência objetiva, e cujos motores são independentes da vontade individual e da razão, pois os homens precisam do sagrado e têm de obedecê-lo.
Isso supõe uma visão de futuro totalmente oposta àquela do Iluminismo à medida que toda a refundação é necessariamente um pecado capital e traz consigo sua própria perda. Os neoconservadores, incluindo os franceses, veem a Revolução Francesa como um fenômeno diabólico, que eles opõem à gloriosa Revolução Inglesa de 1688-1689 e ao nascimento dos Estados Unidos. No entanto, as três revoluções foram eventos fundadores que instauraram regimes sem precedentes, e a Declaração de Independência estadunidense e as declarações francesas de direitos humanos são baseadas nos mesmos princípios. Mas era necessário estabelecer uma distância intransponível entre a Inglaterra e os Estados Unidos, onde as mudanças de regime teriam permitido a restauração das antigas liberdades inglesas, e a França, onde uma revolução voltada contra Deus e a civilização teriam apagado seis séculos de história. Essa interpretação, que atingiu seu auge na esteira da Guerra Fria, ainda alimenta a ideia da excepcionalidade francesa: apenas a França teria engendrado uma revolução à margem da via real anglo-americana, para conduzir não à democracia liberal e ao capitalismo, mas simplesmente à democracia stricto sensu, aquela que Renan já chamava de “essa vil democracia terrorista”.
Apesar da experiência desastrosa do século XX, o enfrentamento entre as duas tradições políticas continua. A defesa do universalismo e do racionalismo – e da importância de seus postulados – permanece, hoje, uma tarefa urgente e complexa: manter aquilo que funda uma nação composta de cidadãos autônomos.
*Zeev Sternhell é historiador.