Os cadernos inéditos de Che Guevara
Da conquista do poder em Cuba (1959) até o ano de sua morte (1967), o pensamento do revolucionário argentino evoluiu muito. A partir de 1963, suas reflexões apresentam uma crítica crescente aos impasses do modelo soviético
Pouco a pouco, Ernesto Che Guevara distanciou-se de suas ilusões iniciais sobre a URSS e o marxismo de tipo soviético. No ano de 1965, em carta ao amigo Armando Hart, então ministro da Cultura de Cuba, ele critica duramente o “continuísmo ideológico” que se manifesta na ilha com a edição dos manuais soviéticos para ensino do marxismo – um ponto de vista convergente com o defendido na mesma época por Fernando Martínez Heredia, Aurélio Alonso e seus amigos do Departamento de Filosofia da Universidade de Havana, editores da revista Pensamiento Critico. Esses manuais – chamados por ele de “calhamaços soviéticos” – “têm o inconveniente de não o deixarem pensar: o Partido já o fez por você e você deve digeri-lo”1.
De forma cada vez mais explícita, percebe-se a busca de um outro modelo, de um método diferente de construção do socialismo, mais solidário, mais igualitário, mais radical.
A obra de “Che” não é um sistema fechado, um argumento acabado, com resposta para tudo. Para muitas questões – a democracia socialista, a luta contra a burocracia – sua reflexão permanece incompleta, já que foi interrompida pela morte prematura, em 1967. Mas, em relação a esse aspecto, Martínez Heredia está certo ao ressaltar: “O caráter inacabado do pensamento de Che (…) também apresenta aspectos positivos. O grande pensador lá está presente, assinalando problemas (…), exigindo que seus camaradas pensem, estudem, combinem a teoria e a prática. Torna-se impossível, quando se assume realmente o seu pensamento, dogmatizá-lo e convertê-lo em um (…) baluarte especulativo (…) de frases e de receitas”2.
Em um primeiro momento – 1960-1962 –, Guevara depositou muita esperança nos “países irmãos” do chamado “socialismo real”. Mas, após algumas visitas à União Soviética e aos países do Leste Europeu, e após ter vivido a experiência dos primeiros anos de transição para o socialismo em Cuba, ele se mostra cada vez mais crítico. Suas divergências são expressas publicamente em várias ocasiões, especialmente durante o célebre “Discurso de Argel”, em 1965. Mas é a partir de 1963-1964, durante o grande debate econômico realizado em Cuba, que aparecem suas tentativas de formular uma abordagem distinta do socialismo.
Esse debate opõe os partidários de uma espécie de “socialismo de mercado”, com autonomia das empresas e busca da rentabilidade, nos moldes soviéticos, e Guevara, que defende o planejamento centralizado, baseado em critérios sociais, políticos e éticos. Muito mais do que bonificações pelo rendimento e preços fixados pelo mercado, ele propõe que alguns bens e serviços sejam gratuitos. No entanto, há uma questão que permanece não muito clara nas intervenções de Che: quem toma as decisões econômicas fundamentais? Em outras palavras, como ele trata a questão da democracia no planejamento?
A respeito desse tema, e de vários outros, os documentos inéditos de Guevara recentemente publicados em Cuba oferecem novas perspectivas. Trata-se de suas Notas críticas ao Manual de Economia Política: uma reflexão sobre o famoso textoda Academia de Ciências da URSS – um desses “calhamaços” que ele criticava na carta dirigida a Hardt – redigida durante sua estadia na Tanzânia e principalmente em Praga, em 1965-1966. Não é um livro, nem mesmo ensaio, mas uma coleção de trechos da obra soviética, seguidos de comentários freqüentemente ácidos e irônicos3.
Há muito tempo, muito tempo mesmo, esperava-se a publicação desse documento. Durante décadas, ele permaneceu “fora de circulação”: no máximo foi permitido a alguns pesquisadores cubanos consultá-lo e citar certas passagens4. Graças a Maria Del Carmen Ariet Garcia, do Centro de Estudos Che Guevara de Havana, que o organizou, ele está agora à disposição dos leitores interessados. Essa edição ampliada contém, aliás, outros materiais inéditos: uma carta de Fidel Castro, de abril de 1965, que serve de prólogo ao livro; notas sobre os escritos de Marx e de Lênin; uma seleção de anotações das conversas de Guevara com seus colaboradores do Ministério das Indústrias, em 1963-65 (já publicadas, parcialmente, na França e na Itália, na década de 1970); cartas a diversas personalidades (Paul Sweezy, Charles Bettelhein); trechos de uma entrevista ao jornal egípcio El-Taliah (abril de 1965).
Independência de espírito
A obra é ao mesmo tempo um testemunho da independência de espírito de Guevara, de seu distanciamento crítico em relação ao “socialismo real” e de sua busca de uma via radical. E mostra também os limites da sua reflexão.
Comecemos pelos limites: Che, naquele momento (não se sabe se sua análise a esse respeito avançou em 1966-1967), não compreendeu a questão do stalinismo. Ele atribui os impasses da URSS na década de 1960 à… Nova Política Econômica (NEP) de Lênin! Certamente, pensa que se Lênin tivesse vivido mais tempo (“Ele cometeu o erro de morrer”, observa com humor) teria corrigido os seus efeitos mais retrógrados. Permanece, todavia, convencido de que a introdução de elementos capitalistas pela NEP conduziu às tendências nefastas, indo no sentido da restauração do capitalismo, que observava na União soviética de 1963.
Mas nem por isso suas críticas à NEP são sem importância. Elas coincidem às vezes com aquelas formuladas pela oposição de esquerda da URSS em 1925-1927; por exemplo, quando constata que “os quadros se aliaram ao sistema, constituindo uma casta privilegiada”. Mas a hipótese histórica que torna a NEP responsável pelas tendências pró-capitalistas da URSS de Leonid Brejnev é decididamente pouco operacional. Não que Guevara ignorasse o papel nefasto de Stalin. Em uma de suas notas críticas, encontramos esta frase precisa e surpreendente: “O terrível crime histórico de Stalin” foi “o de ter desprezado a educação comunista e de ter instituído o culto ilimitado da autoridade”. Mesmo que ainda não represente uma análise do fenômeno stalinista, já é uma rejeição categórica.
O balaio de gatos do Comecon
Em seu “Discurso de Argel”, Che exigia dos países que se diziam socialistas que pusessem fim a sua “cumplicidade tácita com os países
exploradores do Ocidente”, prática traduzida em relações de troca desiguais com os povos em luta contra o imperialismo5. Essa questão é retomada várias vezes nas Notas críticas ao manual soviético. Enquanto os autores dessa obra oficial elogiam “a ajuda mútua” entre países socialistas, o revolucionário argentino é obrigado a constatar que isso não corresponde à realidade: “Se o internacionalismo proletário presidisse os atos dos governos de cada país socialista (…), seria um sucesso. Mas o internacionalismo foi substituído pelo chauvinismo (de grande potência ou de pequeno país) ou pela submissão à URSS (…). Isso fere todos os sonhos honestos dos comunistas do mundo.”
Algumas páginas adiante, em comentário irônico sobre a exaltação feita pelo manual da divisão do trabalho entre os países socialistas, fundada numa “colaboração fraternal”, Guevara observa: “o balaio de gatos que é o Comecon6 desmente, na prática, essa afirmação. O texto se refere a um ideal que somente poderia se estabelecer pela verdadeira prática do internacionalismo proletário, mas este, lamentavelmente, está ausente hoje em dia”. Na mesma linha, outra passagem constata com amargura que, nas relações entre os países que se diziam socialistas, encontram-se “fenômenos de expansionismo, de troca desigual, de concorrência, até certo ponto de exploração e certamente de submissão dos Estados fracos aos fortes”.
Por fim, quando o manual fala sobre a “construção do comunismo” na URSS, Che comenta: “O comunismo pode ser construído em um único país?” Uma outra observação segue o mesmo raciocínio: Lênin, observa o revolucionário, “afirmou claramente o caráter universal da revolução, coisa que a seguir foi negada” – crítica explícita ao “socialismo em um só país”7.
A maior parte das críticas de Guevara ao manual soviético corresponde de perto aos seus escritos econômicos de 1963-1964: defesa do planejamento central contra a lei do valor e as fábricas autônomas, que funcionam segundo as regras do mercado; defesa da educação comunista contra os estímulos materiais individuais. Ele também se preocupa com o recebimento de benefícios pelos dirigentes das fábricas, que considera um princípio de corrupção.
Che defende o planejamento como eixo central do processo de construção do socialismo, porque ele “libera o ser humano de sua condição de coisa econômica”. Mas reconhece – em carta a Fidel – que em Cuba “os trabalhadores não participam da elaboração do plano”.
Quem deve planejar? O debate de 1963-1964 não havia respondido à questão. São sobre este assunto os avanços mais interessantes que encontramos nas notas críticas de 1965-1966: algumas passagens apresentam de forma clara o princípio de uma democracia socialista na qual as grandes decisões econômicas são tomadas pelo próprio povo. “As massas”, escreve Che, “devem participar da elaboração do plano, ao passo que sua execução é um assunto puramente técnico”. Na URSS, em sua opinião, a concepção do plano como “decisão econômica das massas, conscientes do seu papel” foi substituída por um placebo no qual as alavancas econômicas determinam tudo. As massas, ele insiste, “devem ter a possibilidade de dirigir seu destino, decidir quanto vai para a acumulação e quanto vai para o consumo”. A técnica econômica deve operar com esses números – decididos pelo povo – e “a consciência das massas deve garantir a sua realização”.
O mesmo tema é retomado em várias ocasiões: os operários, o povo em geral, “decidirão sobre os grandes problemas do país (taxa de crescimento, acumulação/consumo)”, mesmo se o próprio plano for obra de especialistas. Esta separação por demais mecânica entre as decisões econômicas e sua execução é discutível, mas, por meio de tais formulações, Guevara se aproxima consideravelmente da idéia de planejamento socialista democrático. Ele ainda não extrai disso todas as conclusões políticas (democratização do poder, pluralismo político, liberdade de organização), mas não se pode negar a importância dessa nova visão da democracia econômica8.
Tais notas podem ser consideradas uma etapa importante no caminho de Che para uma alternativa comunista/democrática ao modelo soviético. Um caminho brutalmente interrompido, em outubro de 1967, pelos assassinos bolivianos a serviço da CIA (a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos).
*Michael Löwy é sociólogo e diretor de pesquisa em sociologia do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) de Paris. Autor do La Pensée de Che Guevara (Paris, Syllepse, 1997) e co-autor, com Olivier Besancenot, de Che Guevara: une braise qui brùle encore (Paris, Mille et une nuits, 2007)