Os camisas-vermelhas ocupam Bangcoc
Considerados provincianos pouco instruídos e caricaturados como hordas de selvagens, os camisas-vermelhas ocuparam a área mais luxuosa e visível da capital tailandesa. Os manifestantes exigem a saída do primeiro-ministro, Abhisit Vejjajiva, que em 2006 chegou ao poder devido a um golpe de EstadoXavier Monthéard
O Exército se prepara para invadir o acampamento dos camisas-vermelhas. Laem – um pseudônimo – se alegra, calmamente sentado sobre um tapete surrado: “Agora, todo mundo entende o que realmente está acontecendo na Tailândia. Não temos de explicar mais nada. Um grande obrigado aos camisas-amarelas –um movimento fora do Parlamento que se proclama defensor da monarquia e da moralidade na política – e ao golpe de 2006. E longa vida para a rainha!”.
Como sugere seu delicado rosto de intelectual, Laem é um ativista acostumado com a retórica. “Quando os camisas-vermelhas marcharam sobre Bangcoc, em março, seu objetivo era simplesmente conseguir a dissolução do Parlamento. Depois do massacre de 10 de abril1, o alvo mudou. A monarquia deixou cair a máscara. Mas agora não podemos ir mais longe. Não estamos prontos. Imagine que você entrasse em um ringue de boxe pensando em enfrentar alguém do seu porte, e se visse diante de Mike Tyson. Você não está pronto! Você precisa voltar e treinar. Porque o rei é Mike Tyson.”
Essas observações poderiam custar anos na cadeia a seu autor, pelo crime de lesa-majestade. No entanto, desde a destituição do primeiro-ministro Thaksin Shinawatra pelo Exército em setembro de 2006, Laem não mais se furta a fazer discursos desse tipo. “Eu viajo pelo país de norte a sul para falar de política, em campos de arroz, em casas, em templos… Só exijo algumas garantias. Três condições: sem nomes, sem registros, sem fotos.” Ele chama a atenção para a tradução ilegal de um livro proibido no país: The king never smiles [O rei nunca sorri]2, a única biografia crítica de Bhumibol Adulyadej, o monarca constitucional da Tailândia desde 1946.
“Sempre faço duas perguntas aos agricultores. Primeiro: o que o rei lhes deu, concretamente falando? Às vezes eles ficam pensando por uns dez minutos sem responder. Então eu emendo: e o que Thaksin lhes deu? Aí, não lhes falta o que dizer, têm lembranças concretas. Em seis anos, Thaksin cresceu mais no coração das pessoas que o rei em seis décadas. Essa é a única e verdadeira razão pela qual ele foi destituído.”
Há poucos manifestantes tão radicais assim nessa noite de 12 de maio de 2010. A ocupação de ruas da cidade já dura 40 dias. A maior parte quer apenas a saída do primeiro-ministro Abhisit Vejjajiva, que chegou à cúpula do Estado após um golpe judicial em dezembro de 2008. Na época, fortes manifestações dos camisas-amarelas tinham levado a justiça a destituir sucessivamente dois primeiros-ministros saídos do People’s Power Party (Partido do Poder Popular- PPP) e a dissolvê-lo. Essa agremiação apoiava Thaksin, condenado em outubro de 2008 a dois anos de prisão por corrupção e atualmente exilado.
Pele curtida pelo sol, de fala enérgica, Jat Ubon é uma fervorosa admiradora do ex-homem forte do reino. Diante de uma bandeira vermelha do Liverpool, clube de futebol inglês, ela mostra orgulhosa o cartão de sócio da União para a Democracia e contra a Ditadura (UDD) que conseguiu por cerca de 50 bahts (pouco mais de dois reais): “Antes, no meu vilarejo, ninguém prestava atenção em política. Depois de Thaksin, isso nos interessa. Começamos a entender que o governo de fato tinha poder, que ele poderia agir contra a droga, pela educação, pela saúde”. A referência é aos programas sociais que tornaram Thaksin tão popular, como por exemplo, o de estabelecer um preço único para todos os cuidados médicos (30 bahts, menos de dois reais); a alocação de um fundo de 1 milhão de bahts por vilarejo; os empréstimos sem juros para os agricultores…
“Em 8 de fevereiro, houve um grande comício na minha província, Khon Kaen. Posteriormente, nos reunimos no vilarejo e ficou decidido que eu iria, como voluntária, a Bangcoc. Fizemos uma coleta para angariar alimentos e pagar a gasolina. Estou na capital desde 12 de março e vou permanecer até a dissolução do Parlamento!”.
Como ela, dezenas de milhares de pessoas deixaram Isaan (no nordeste do país) e Lanna (no norte) para se encontrar no distrito de Ratchaprasong, bloqueando seu funcionamento e causando prejuízos financeiros estimados em várias centenas de milhões de dólares. Ratchaprasong não é um lugar comum. Orgulho dos moradores de Bangcoc, constitui um dos símbolos da economia do país. Seus principais hotéis e centros comerciais cheios de ostentação recebem turistas, empresários e gente de classe média abastada. Agora, o cartaz “Bem-vindo ao bairro Ratchaprasong” (escrito em inglês), colocado sob uma propaganda gigante dos ternos de Ermenegildo Zegna, contrasta com a faixa “Bem-vindo à Tailândia. Só queremos a democracia”, estendida no espaço onde os líderes vermelhos realizam sua reunião permanente.
Em Bangcoc, a coisa não é vista da mesma forma. “Eles são pagos para vir!”, argumentam. Valores como 500, 1.000, 2.000 bahts por dia… a quantidade varia de acordo com as convicções da pessoa que fala. Dezenas de programas de televisão, centenas de horas de rádio e milhares de artigos promoveram a ideia de que os camisas-vermelhas não tinham nem consciência nem independência. De fato, quem iria contestar que o Puea Thai, o partido de oposição, financia uma parte da logística, uma vez que a UDD se apresenta como o braço extraparlamentar dele? E por que um multibilionário como Thaksin, apesar de suas negativas, não investiria sua imensa fortuna em uma luta da qual ele pode esperar benefícios pessoais3? Daí a achar que os vermelhos não passam de marionetes manipuladas que teriam sofrido lavagem cerebral é apenas um passo – passo esse que muitos deram nos últimos meses.
Considerados como provincianos pouco instruídos, que não falam o siamês padrão, mas sim um dialeto entre o tailandês e o laociano, os vermelhos têm sido caricaturados como hordas de “selvagens” e “bárbaros”, “buffles [búfalos]” que tinham de ser mandados de volta para o campo. O historiador tailandês Thongchai Winichakul, da Universidade de Wisconsin, decodificou o imaginário inconsciente dos moradores bem de vida de Bangcoc: eles os veem como “sujos, feios, vulgares, de classe inferior, bannok (rurais). Em página do Facebook, uma esnobe típica diz que tem medo e treme toda vez que pensa nos vermelhos por causa de seu comportamento e aparência: pele escura e suja, cara horrível e rude.
A manifestação vermelha em Ratchaprasong não se resume à ocupação da área mais luxuosa e visível de Bangcoc. É a invasão de Krungthep, a cidade dos anjos [nome tailandês de Bangcoc e seu significado], por camponeses desarrumados, sujos e vulgares – micróbios4”.
No entanto, analisa um pesquisador estrangeiro, “sem o povo de Isaan, Bangcoc nunca teria existido. Sem a exploração desses trabalhadores maleáveis, não haveria milagre econômico tailandês. Mas tal visão tornou-se impossível por causa do grande discurso nacional, martelado desde o jardim de infância, que associa uma monarquia benevolente a uma ordem harmoniosa do mundo própria do budismo. Essa convicção errônea, violentamente contestada pelos camisas-vermelhas, provoca em contrapartida a negação do outro”.
O coordenador-geral dos camisas-amarelas, Suriyasai Katasila, não diz nada diferente, mas é claro que formula as coisas de uma maneira diversa: “Os vermelhos estão tentando criar um conflito de classes, gerando um clima emocional entre os pobres, mas isso não vai funcionar. Por quê? O nosso sistema social e a nossa cultura ainda estão muito vivos. Ora, na Tailândia não há classes. Apesar das diferenças de riqueza e posição social, ajudamos uns aos outros. Essa propaganda baixa, esses métodos de agitação falharam no passado. E vão falhar novamente”.
Suriyasai lembra as organizações que se uniram para denunciar o golpe militar desde 2006 e que levaram ao nascimento dos camisas-vermelhas: entre outros, o grupo Red Siam [Sião Vermelho] e o atípico universitário trotskista Giles Ungpakorn, forçado ao exílio após ter publicado A Coup for the Rich [“Um golpe para os ricos”]5; o June 24 Group, que faz referência à “revolução inacabada” de 24 de junho de 1932 (ver cronologia), ou os sites Fah Diew Kan e Prachatai, bloqueados pela censura do governo. Díspares, esses grupos abrigam ex-membros do Partido Comunista da Tailândia (PCT), que participaram da insurreição armada maoísta dos anos 1970 e 1980 e que depois foram anistiados. Embora ultraminoritários, esses ex-comunistas de trajetórias pessoais diversas são citados com frequência na mídia.
Sociedade feudal
Para um deles, Jaran Ditapichai – a quem alguns atribuem uma influência oculta sobre o movimento –, os tempos mudaram: “Os vermelhos não são comunistas e o comunismo não é de forma alguma popular na Tailândia. O vocabulário usado não é mais o dos anos 1970 e 1980. A diferença é que esse movimento quer a democracia, não a ditadura do proletariado”.
O secretário-geral da Federação dos Estudantes Tailandeses, Anuthee Dejthevaporn, de 22 anos, detalha: “Alguns ex-membros do PCT permaneceram fiéis à teoria maoísta ortodoxa. Se a sociedade ainda é de natureza feudal, a revolução democrática nacional deve ser feita aglomerando-se quatro categorias: operários, camponeses, pequena burguesia e os grandes capitalistas. Se a sociedade ainda é feudal, o único jeito é passar pelo capitalismo. Ora, a Tailândia continua a ser uma monarquia. Nessa concepção, Thaksin é o empresário que faz explodir a velha ordem. É por isso que os maoístas estão a seu favor. Se a monarquia desaparecesse, iriam lutar contra ele”.
Dois termos catalisaram o discurso político vermelho: phrai e ammat. Duas palavras de significado impreciso, mas potencialmente explosivas. Uma delas é orgulhosamente reivindicada pelos vermelhos, enquanto a outra é passível de todas as conotações pejorativas. “No que se refere a esses dois termos, é preciso distinguir o uso tradicional daquele moderno”, diz François Lagirarde, diretor do Centro da Escola Francesa do Extremo Oriente (Efeo), em Bangcoc.
Phrai significava cidadão tailandês livre, mas que tinha de prestar serviços ao senhor. “Cada phrai – havia várias categorias deles – pertencia a um senhor ou a um notável e lhe devia serviços ou impostos. O significado destacado pelos vermelhos é o de oprimido ou explorado.
Ammat designava todos os cortesãos, ministros, conselheiros, notáveis, proprietários de terras e funcionários ricos a serviço direto da nobreza tailandesa, da qual recebiam cargos do governo. Portanto, não exatamente aristocratas. Hoje essa é a palavra usada no sentido de ‘elite burguesa e urbana’: pessoas enriquecidas próximas do aparelho de Estado, como os famosos conselheiros particulares do rei, odiados pelos vermelhos”.
Essa reconstrução ideológica começou no fim de 2008, quando três líderes da UDD, Veera Musikhapong, Jatuporn Prompan e Natthawut Saikua, no programa de televisão Truth Today sugeriram ao público que se vestisse de vermelho em um comício em Nonthaburi. Em dezembro, Natthawut proferiu perante o Parlamento o primeiro grande discurso político do movimento: “Nós somos o sal da terra. Somos pessoas sem privilégios. Nós nascemos neste país, nele crescemos, nele damos cada um dos nossos passos. Com os dois pés assim enraizados, como estamos longe do céu! (…) Mas eu acredito no poder dos camisas-vermelhas. Acho que aumentamos em número a cada dia, a cada minuto, [e que] a nossa voz vai chegar ao céu6”.
Samut Prakan, província situada cerca de 30 quilômetros ao sul de Bangcoc. Um bairro popular. O carro sobe quatro andares de estacionamento. Pilhas de pneus permitem bloquear o acesso caso seja preciso. Dezenas de pessoas estão lá, junto das reservas de água e de alimentos. Esse é um lugar altamente estratégico dos vermelhos: uma estação de rádio. Instalado em uma poltrona, seu proprietário, Peera Pringhklong, também membro do Puea Thai, sorri: “Sim, o governo realmente gostaria de bloquear nosso transmissor de sinal, como fez com centenas de emissoras no país. Mas a polícia não ousa se aventurar aqui. Se o fizesse, nós lançaríamos um apelo, e milhares de pessoas viriam no mesmo instante para nos ajudar”. O transmissor difunde 24 horas por dia programas meio políticos, meio comunitários. “Os ouvintes compartilham seus problemas conosco, são eles que nos fornecem a informação”, insiste Peera. Com isso, as pessoas e a rádio tornam-se uma só família. Uma rede. “A maioria dos nossos locutores são voluntários”, diz.
Um raiar da madrugada diante do cenário de Ratchaprasong. Os líderes vermelhos estão no recinto. Arisman Pongruangrong, um ex-cantor profissional com porte de crooner, camiseta azul-turquesa, conclui um discurso marcial e depois entoa uma balada melosa que acorda a multidão. Ele emenda com os ritmos cadenciados da música tradicional de Isaan. Jatuporn pega seu charuto Cohiba, junta-se a ele e assume os instrumentos de percussão. Abraços. Política e entretenimento, rumores assassinos, poses viris: é a receita retransmitida – pelas telas gigantes e por um som potente – ao resto do país por essas rádios comunitárias e pela rede de televisão People TV. Informação, emoção, doutrinação.
A força do discurso vermelho decorre do fato de ele operar em dois níveis. O primeiro é lírico, simples, por vezes demagógico, e quase não é ideologicamente articulado. Ele se incorpora naturalmente em falastrões, que adicionam isso à sua imagem de camponeses para ridicularizar o desprezo de que são alvos. O segundo nível é aquele dos ativistas ou militantes aguerridos que, por causa da brutalidade da repressão militar – um dos males inerentes à Tailândia desde a década de 1950 –, são forçados a assumir uma prudência verbal, uma discrição, uma quase clandestinidade. Por exemplo, não é permitido formar um partido que tenha as palavras “comunista”, “socialista” ou “revolucionário”. A acusação de crime de lesa-majestade assume tal importância que não há espaço para emitir o menor início de crítica racional da monarquia. A palavra “república” é odiada.
Como o rei, de 82 anos, está hospitalizado desde setembro de 2009, o ressentimento contra a mais alta instituição do reino foi alimentado pelo comportamento da rainha, considerada partidária por ter visitado camisas-amarelas feridos, em 2008.
Em seu tapete puído, Laem continua sorrindo: “Os camisas-vermelhas são uma novidade. É a primeira vez na história da Tailândia que existe uma estrutura de nível distrital e mesmo de vilarejo, onde as pessoas se organizam por si mesmas. Não importa que a grande maioria dos camponeses continue respeitando a monarquia. Essas coisas estão mudando, e rápido. Os camisas-vermelhas não são como um melão. Se você abre um melão, as duas partes são idênticas. Os camisas-vermelhas são como um cacho de uvas. Uma uva pode ser excelente, outra sem gosto, uma terceira péssima. Mas todas pertencem ao mesmo cacho”.
Xavier Monthéard é jornalista.