Os cinquenta anos do “Paraíso das potências”
Promotores incansáveis da globalização (e de seu tripé privatização, desregulamentação e liberalização), os especialistas da OCDE parecem ter esquecido o passado keynesiano de sua instituição. Os muros do Château de la Muette, que há cinquenta anos os abriga, encobrem uma história subvalorizada e surpreendenteVincent Gayon
(Hillary Clinton, secretária de Estado Norte-americano, discursa no aniversário de cinquenta anos da OCDE)
“Clube dos ricos”, “think tankneoliberal”, “paraíso das potências”, “Otan econômica”, “especialista em prognósticos ineficazes”, “braço armado da globalização”. Os rótulos variam; as constatações, menos. A reputação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) contrasta com a imagem que a instituição gostaria de projetar: a de um “fórum que permite aos governos responder, juntos, aos desafios econômicos, sociais e ambientais gerados pela interdependência e pela globalização”, ou de uma “fonte de dados comparativos de análise e previsão para apoiar a cooperação multilateral”.1
O funcionamento da organização – para além de seu papel de facilitadora – é tão desconhecido quanto sua presença é incontornável: a OCDE figura abaixo de quadros e estatísticas publicados na imprensa sempre que se trata de “classificar” sistemas educativos, listar os paraísos fiscais ou comparar as “legislações que protegem os trabalhadores” e colocam entraves à “flexibilização do mercado de trabalho”.
Em 2011, a instituição sediada no Château de la Muette, no 16º arrondissement [distrito] de Paris, celebrou seu cinquentenário – cerimônia ostensiva que, por sua vez, proporcionou a releitura e reavaliação da própria organização. A OCDE se gaba de ter reunido com grande pompa catorze chefes de Estado, onze primeiros-ministros, setenta ministros, mil delegados, mais de uma centena de conferencistas e mais ou menos duzentos jornalistas. Poucos convidados, contudo, se interrogaram sobre a história movimentada de uma organização marcada pelas alternâncias políticas, os movimentos sociais e as reviravoltas econômicas da segunda metade do século XX.
Na ocasião, o auditório teve a oportunidade de escutar a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton sublinhar que a criação da Organização Europeia para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECE), no contexto do Plano de Recuperação Europeia (Plano Marshall) de 1948, e depois sua transformação em OCDE, em 1960-61, representam uma “comunidade de valores compartilhados: mercados abertos e eficientes, direitos humanos, liberdades e estado de direito, governos e líderes que devem prestar contas à população, concorrência livre, justa e transparente”. Nessa visão da história, são promovidos à categoria de “grandes democracias” os cofundadores da OCDE, como a Espanha franquista, Portugal salazarista, a Turquia de Cemal Gürsel (e depois a Grécia dos coronéis).
Fábula internacionalista
O ditirambo de Hillary respeitou a ordem das prioridades: antes a economia de mercado e, em seguida, a democracia. Apoio ao capitalismo em 1947, diante de um inimigo comunista que planejava um sistema de cooperação econômica concorrente, redobrado em 1960, a alguns meses da construção do Muro de Berlim. Assim, o aniversário ofereceu a ocasião de exaltar a “independência” da organização, sua “abertura à sociedade civil”, a “competência de alto nível internacional” de seus especialistas e o papel precursor da instituição em diversos repertórios tecnocráticos ainda hoje incontornáveis: “sociedade do conhecimento”, “ativação de políticas de emprego”, “capital social e humano” etc. Também se celebrou a recente incorporação do Chile, da Estônia, de Israel e da Eslovênia, elevando a 34 o número de membros.
Diante das “virtudes” do livre-comércio, e para superar a crise econômica atual, o secretário-geral da organização, o ex-ministro da Fazenda mexicano Angel Gurría, recorreu ao habitual apelo por uma cooperação econômica sólida e, talvez, estendida a futuros países-membros, como Brasil, Índia, África do Sul, China e Rússia.
Certos episódios foram ocultados, provavelmente porque sua evocação pudesse atrapalhar as festividades: o fracasso do Acordo Multilateral sobre Investimento (AMI) em 19982 e os enfrentamentos entre o secretário da OCDE e os falcões da administração Reagan, como Martin Feldstein (atual conselheiro de Barack Obama), no início da década de 1980. Também foram omitidos os nomes de antigos funcionários da casa, como Stephen Marris, Gösta Rehn, Alexander King, Christopher Dow, Angus Maddison, Ron Gaas, Cornelius Castoriadis, François Chesnais ou Michael Pollack. Todos passariam, hoje, por “heterodoxos” e até “arcaicos”. Todos eles, cada um à sua maneira, contribuíram para fazer da instituição… aquilo que ela nunca chegou a ser.
Existem brechas para vozes minoritárias e audácias intelectuais nesse tipo de organização. Contudo, a OCDE obedece a uma hierarquia tão rigorosa e a um conjunto de axiomas tão estreitamente ligado, em relacão a questões estratégicas, às forças públicas e privadas que dominam as relações econômicas internacionais que as palavras dissonantes ou críticas são marginalizadas ou reduzidas ao silêncio. Foi assim tanto no período keynesiano da instituição como no neoliberal.
Desde as mobilizações anti-AMI, e com o intuito de lutar contra uma imagem pública desastrosa, a organização desenvolveu um verdadeiro “marketing da transparência”. Porém, a vida real de uma instituição desse tipo e o desafio que representaria revelar3 certos processos fizeram as mesmas práticas permanecerem vigentes: a reescritura de estudos, as demissões forçadas e a expressão firme de conclusões que no interior da organização se deram de forma frágil. Se os discursos oficiais enaltecem a “independência” e a “competência” de seus especialistas, os poucos pesquisadores que se dedicam a estudar a instituição constatam que as delegações dos países-membros intervêm em momentos-chave de elaboração de relatórios emblemáticos da organização. Em geral, trata-se menos de inovar em matéria de análises e recomendações econômicas e sociais e mais de oferecer a políticas nacionais impopulares uma legitimidade de competência internacional (o que, finalmente, é o papel mais comum das burocracias supranacionais, como atesta o inquietante relatório do Escritório Independente de Avaliação do FMI).4
Diferentemente de outras instituições do mesmo tipo, a OCDE não distribui fundos nem estabelece regras jurídicas. Sua razão de ser reside na produção incansável de relatórios consensuais e na reunião de milhares de “especialistas”. Em sua organização interna, há uma profunda similitude de estruturação entre nacional e internacional − similitude que constitui a verdadeira corrente de transmissão entre a OCDE e as esferas burocráticas e universitárias nacionais.
Com esse funcionamento, seria inútil procurar nos materiais do cinquentenário da instituição qualquer referência às receitas econômicas keynesianas associadas à prosperidade do pós-guerra e sobre as quais a organização se construiu antes de se tornar porta-voz do (neo)liberalismo doutrinário. Da mesma forma, seria inútil buscar as diretrizes cooperativas definidas pelos acordos de Bretton Woods em 1944, que limitavam os movimentos de capitais internacionais, restringiam o poder dos setores financeiros (considerados responsáveis pela crise de 1929) e autorizavam, por negociação multilateral, políticas de câmbio e de ativação econômica. A desregulamentação do sistema monetário internacional e a virada Reagan-Thatcher pesaram no equilíbrio de forças dentro da organização e reorientaram as prioridades à desinflação e à flexibilidade dos mercados de trabalho, reconectando essas diretrizes com a era pré-keynesiana e com a visão mais elementar de desemprego e desempregados.
A forte contestação do AMI, o desenvolvimento de competências da União Europeia em temas sociais e as alternâncias políticas socioliberais, contudo, obrigaram a OCDE a construir seus discursos com base em pesquisas menos dogmáticas. O secretário-geral da época, o canadense Donald Johnston, tentaria durante todo seu mandato conter a “contestação”: “A globalização não é ideológica, é um processo irresistível. As trocas comerciais e a livre-troca sempre trouxeram grandes vantagens”.5 Na mesma época, uma associação ecologista premiou-o com o “troféu da hipocrisia” para denunciar o posicionamento da organização em relação ao “desenvolvimento sustentável”, identificado como uma estratégia para “enverdecer” a própria OCDE e o capitalismo.
Alguns meses antes, o jornal Le Figaro, com a manchete “O progresso social é prioritário”, reportava a proposta de Johnston, que inaugurava a nova vitrine ideológica da OCDE: “É um erro separar comitê social e comitê econômico. […] é impossível separar as questões sociais, educação, saúde, em resumo, a qualidade do capital humano que está no centro do crescimento, dos interesses econômicos. Entendo muito bem que a OCDE passava uma imagem de organização desequilibrada em relação aos problemas sociais, mas a realidade agora é outra”.6 O relatório apresentado pelo secretário-geral à imprensa nessa ocasião, com matizes dignos do Fórum Social Mundial de Porto Alegre (criado em 2001), intitulava-se “Por um mundo solidário – A nova agenda social”.
Sempre as mesmas receitas
As ações do “social” subiram de repente na bolsa de valores da OCDE e passaram a figurar nos “Estudos por país” ao lado de constatações como o crescimento da pobreza e a dependência dos desempregados de longa duração dos mecanismos de compensação.
Para o Departamento de Emprego e Assuntos Sociais, o momento era de novos comandos, de exposição crescente de seus trabalhos e de uma “reavaliação” da “estratégia de pleno emprego” da organização. Aos poucos, esta foi se afastando das posições mais dogmáticas da década anterior e chegou a reconhecer, em 2006, que o salário mínimo podia exercer efeitos positivos (se fosse fixado em um “nível razoável”) e que não se pode estabelecer nenhum laço sólido entre “legislação protetora de emprego” e resultados em matéria de luta contra o desemprego.7
No Departamento Estatístico, em 2001, já se tinha retomado a reflexão sobre os “indicadores sociais” ou de “bem-estar” sob os conceitos de “capital social” ou “capital humano”.8 Essa reorientação conduziu o departamento, no fim da década, a assegurar o essencial da logística do relatório da “comissão sobre a medida dos desempenhos econômicos e do progresso social”, chamada Stiglitz-Sen-Fitoussi. Para a ocasião do cinquentenário, foi proposta uma nova publicação, intitulada “Como vai a vida? Medindo o bem-estar”, preparada, como de costume, a portas fechadas. Era uma tentativa de pensar uma quantificação da “riqueza” ou do “bem-estar” das nações saindo do economicismo mais obtuso e integrando às análises indicadores de educação, saúde, qualidade do meio ambiente etc., mas sem insistir muito nos indicadores de “saúde social”.9 Observa-se que os Estados Unidos compartilham com Chile, México, Turquia e Israel desigualdades de renda pronunciadas e que, “em vários países da OCDE, aumentou o número de pessoas cuja renda é inferior à linha de pobreza”.10
Esses realinhamentos podem ser analisados como uma recomposição forçada das estratégias de aliança. Eles seduziram e reconstruíram de uma hora para outra os governos neodemocratas ou socioliberais (então dominantes na Europa) pela “terceira via”: um meio-termo entre o projeto social-democrata e o neoliberal, blairista ou clintoniano. A política buscava tranquilizar os novos membros, que, escaldados pelos planos de ajuste estrutural do FMI, começaram a se organizar em vias cooperativas alternativas, como a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) ou a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). A OCDE busca, de forma geral, sair do trilho político e científico: como se livrar da crítica do movimento antiglobalização e de organismos internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho, aos “custos sociais” do neoliberalismo?11 Como explicar também o sucesso econômico e social de países não desreguladores?
Essa inflexão do discurso, contudo, ainda não chegou às políticas monetárias e orçamentárias ou à desregulação dos mercados. O novo programa macroeconômico da OCDE, intitulado “Vamos pelo crescimento” e desenvolvido pelo Departamento Econômico, ao contrário, prolongou em 2005 a orientação das décadas de 1980-1990: desinflação competitiva e flexibilização do mercado de trabalho, deixando a origem desses problemas intacta. Em plena crise financeira, as conclusões da reunião do Conselho de Ministros nos dias 24 e 25 de junho de 2009 não disfarçaram o posicionamento geral da organização: “Reconhecemos que a realização rápida de reformas estruturais que aumentam a flexibilidade e a produtividade de nossas economias, nos mercados de trabalho e de produtos, por exemplo, será essencial para remediar a deterioração dos orçamentos públicos e o recuo do nível de vida provocado pela crise”.12 Na edição de 2006 de “Reformas econômicas”, o diretor econômico da época, Jean-Philippe Cotis – atual diretor do Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos (Insee) francês –, considerava que “os entraves à concorrência no setor bancário tendem a brecar o desenvolvimento do setor financeiro e, portanto, o crescimento econômico”.13
Vincent Gayon é Pesquisador do Instituto de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Socias (Irisso), em Paris.