Os custos de um liberalismo sem povo: ensaio sobre o funeral eleitoral do PSDB?
Ao que tudo indica, os resultados das eleições de 2018 vão consolidar a mais significativa ruptura do PSDB com as demandas da sociedade brasileira em toda a história do partido. É cada vez mais flagrante que o diálogo da elite tucana com o povo brasileiro é um diálogo de surdos
No ano de 1975, sob o calor dos conflitos da redemocratização brasileira, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso colocava em questão o quão comprometidos os liberais brasileiros seriam com a democracia. No seu diagnóstico, estes jamais teriam demonstrado verdadeira fidelidade aos seus próprios princípios, pois, “na prática, raramente os liberais têm aceito o ônus do liberalismo”, enfatizando que “seria fastidioso relembrar os momentos em que derrubados regimes ou governos considerados pelos liberais como autoritários (como o de Vargas em 45) ou burocrático-populistas (como o de Vargas em 54 e Goulart em 64), eles próprios foram os primeiros a apelar e confiar na qualidade mediadora das Forças Armadas e do estado”. Por tal razão, concluia que o liberalismo brasileiro seria uma forma de liberalismo castrado, pelo fato de ser “temeroso quase sempre da liberdade, da organização efetiva da sociedade civil e da participação”.[1] Em outros termos, suas suspeitas pareciam indicar que um liberalismo sem povo estaria fadado ao conservadorismo, ou, aos flertes com o autoritarismo.
O tempo parece ter utilizado dos seus caprichos para demonstrar que o sociólogo da década de 1970 tinha razão, e tomou o próprio PSDB como exemplo prático da teoria de FHC. Ao que tudo indica, os resultados das eleições de 2018 vão consolidar a mais significativa ruptura do PSDB com as demandas da sociedade brasileira em toda a história do partido. É cada vez mais flagrante que o diálogo da elite tucana com o povo brasileiro é um diálogo de surdos.
Os tucanos parecem não entender o que fizeram de errado para o povo preferir, de acordo com a última pesquisa do IBOPE, divulgada dia 24 de setembro, o autoritarismo de Bolsonaro (28%), o lulismo de Haddad (22%), ou o nacional-desenvolvimentismo de Ciro (11%), em detrimento do gélido carisma de Geraldo Alckmin (8%).[2] Por sua vez, o povo não vê razão alguma para acreditar nas promessas do partido da social democracia brasileira. Afinal, este já não faz jus nem ao termo social – vide o apoio inconteste do partido às reformas antipopulares do governo Temer – e tão pouco ao de democracia, tendo em vista o infeliz papel que as lideranças tucanas protagonizaram ao rejeitarem o resultado das urnas nas eleições de 2014, lembrando os piores momentos da UDN quando o partido negava as vitórias de Vargas, JK e a ascenção de Jango e Brizola nas décadas de 1950 e 1960.
As quatro derrotas consecutivas para o PT nas últimas eleições presidenciais impactaram de forma profunda o PSDB, ao ponto do partido abandondar muitas de suas pautas históricas e um debate aprofundado sobre a realidade nacional para se tornar, exclusivamente, a agremiação do anti-petismo. Sem propostas concretas para os problemas brasileiros e com uma ausência profunda de diálogo com os setores populares, o único discurso sólido dos tucanos nos últimos anos foi tentar propor uma auto-imagem invertida em relação ao PT; o que o PT é, seremos o contrário.
Nenhuma figura poderia sintetizar melhor o que o PSDB se tornou – esta híbrida mistura de anti-petismo e desconhecimento da realidade do povo – do que a imagem do ex-prefeito de São Paulo, João Dória. Ora vestido com o uniforme dos garis no Centro da cidade, ora mostrando a sua carteira de trabalho para uma câmera com vistas de atender uma estranha necessidade de provar que já trabalhou na sua vida, e quase sempre surfando no anti-petismo mais rasteiro, Dória é o retrato perfeito do atual momento vivido pelo PSDB: um partido em crise de identidade, que já não sabe qual o seu papel no sistema partidário brasileiro, ao ponto de estar desesperado por não conseguir mais dialogar com as camadas populares da nossa sociedade.
A despeito do atual distanciamento entre PSDB e o povo, é válido lembrar que o partido surgiu no contexto da redemocratização brasileira, sendo este o período de maior mobilização social da história contemporânea do país. No ano de sua fundação, 1988, amplos setores da população brasileira estavam descontentes com os rumos da Nova República, a influência do presidente José Sarney no chamado centrão da Assembleia Nacional Constituinte e o problema crônico da inflação, agravado no ano anterior com a fracassada política do Plano Cruzado II.
Perante esta conjuntura, lideranças do PMDB – como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, André Franco Montoro, José Serra, Luiz Carlos Bresser-Pereira – atendiam uma demanda popular ao romper com o partido e fundavam o PSDB. Suas principais promessas visavam romper com o fisiologismo da política brasileira, adotar práticas econômicas que misturassem propostas liberais de responsabilidade fiscal e controle das taxas inflacionárias, mas que não abandonassem o central papel do Estado em promover políticas de bem-estar social e distribuição de renda. Estas últimas propostas eram defendidas pelos setores desenvolvimentistas que ainda integravam o partido, mas que abandonariam o mesmo com o passar do tempo por discordarem dos seus rumos conservadores, como Ciro Gomes e Bresser-Pereira.
Ao se observar o passado com o quadro atual em vista, pode parecer estranho que a experiência internacional que serviu de referência ideal ao recém-fundado PSDB era a do governo do Partido Socialista (PS) francês, chefiado então pelo presidente François Mitterrand (1981-1995). Mitterrand foi eleito no ano de 1981 por meio de uma coalizão histórica entre tradicionais frentes de esquerda na França, a qual agregou o seu partido – o Partido Socialista – e o Partido Comunista, que triunfaram perante o candidato centrista, o então presidente Valéry Giscard d’Estaing. A eleição de Mitterand causou grande repercussão mundial, sendo que o seu governo social-democrata adotou como políticas públicas: a abolição da pena de morte, taxação de grandes fortunas, aprovação das 39 horas semanais de trabalho, de uma quinta semana de férias pagas, de estatizações de empresas, de descentralização regional e da redução de 65 para 60 anos a idade legal para aposentadoria.[3] Quantas destas pautas são defendidas por Geraldo Alckmin ou João Dória em suas campanhas eleitorais de 2018?
Em recente entrevista para O Estado de São Paulo, umas das lideranças históricas do partido, o ex-governador e atual senador, Tasso Jereissati (PSDB-CE), admitiu publicamente uma série de equívocos na história recente da agremiação. Para Jereissati, “um conjunto de erros memoráveis” foram cometidos, entre eles: 1) questionar o resultado das eleições de 2014; 2) votar contra princípios básicos do partido no campo da economia “só para ser contra o PT”; 3) e o maior erro, de acordo com o senador, foi entrar no governo Temer.[4]
Embora o crescimento das frentes de extrema-direita seja um fenômeno mundial, ao se observar o caso brasileiro, é perceptível que o antigo eleitorado do PSDB migrou para a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Ao passo que os tucanos abandonaram formas propositivas de fazer política, apostando suas fichas no anti-petismo e se aliando com os piores quadros do PMDB e do centrão, o partido caiu no descrédito popular e este vazio foi rapidamente preenchido pelo radicalismo autoritário de Bolsonaro. Não obstante, segundo os dados obtidos em pesquisa anterior , no próprio estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin possui apenas 13% dos votos, e perde com larga margem para Bolsonaro, que lidera isolado com 30%.[5]
O resultado destas políticas desastradas e anti-populares devem ser colhidas neste pleito de 2018. De acordo com os prognósticos atuais, a bancada do partido deve diminuir no Congresso Nacional e, mesmo com todo o seu tempo de TV, Geraldo Alckmin não chegará no segundo turno. Sem contar que, após 24 anos sem perder uma eleição para o governo do Estado de São Paulo, João Dória deverá ser derrotado no segundo turno por Paulo Skaff. Perante esta conjuntura, e a incapacidade do partido se renovar, seria possível marcar o funeral eleitoral do PSDB ainda para este ano?
Uma resposta plenamente afirmativa para este questionamento seria exagerada e não levaria em consideração a força que o PSDB ainda desempenhará no sistema partidário brasileiro após as eleições – nas quais possui grandes chances de eleger governadores em estados importantes como Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Por outro lado, é inegável que o partido vive o momento de maior descrédito na sua história, e a atual imagem do mesmo é uma caricatura deformada e irreconhecível em relação ao seu projeto de fundação em 1988. Lembrar desta época pode ser ainda mais significativo quando se resgata o fato de que nas eleições de 1989 para presidente, Mário Covas apoiou Lula no segundo turno contra Fernando Collor de Mello.
Os anos passaram e o atual contexto é consideravelmente distinto do de 1989. Todavia, o cenário mais provável para o segundo turno será o enfrentamento entre Jair Bolsonaro e algum candidato da centro-esquerda, como Fernando Haddad ou Ciro Gomes. O papel do PSDB neste embate, independente qual seja, terá efeitos práticos muito relevantes para a disputa e isso é inegável. Mas, tão certo quanto, é o fato de que, perante a ameaça que Bolsonaro representa para os valores democráticos do país – valores estes que lideranças históricas do PSDB lutaram contra durante a ditadura militar –, a história impõe uma decisão crucial a ser tomada pelos tucanos e que diz respeito às tradições do partido. Isto é, se estas ainda são de alguma serventia moral para suas lideranças. Caso a intransigência pragmática e anti-popular da elite tucana insista em adotar um discurso ‘nem Bolsonaro, nem Haddad/Ciro’, o PSDB perderá, novamente, o bonde da história. Mas, desta vez, o bonde levará consigo o povo, a social democracia e as tradições do partido junto com ele, restando ao PSDB cumprir a profecia que o seu presidente de honra fez na década de 1970: um liberalismo sem povo está fadado ao fracasso.
*Ricardo Duwe é historiador. Doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realiza pesquisas na área de História Política, História Contemporânea e Brasil Republicano, com ênfase em culturas políticas, eleições, partidos políticos e ditadura militar