Os desencontros da Reforma Tributária do Bolsonaro
O tributo do PL 3887/2020, proposto por Bolsonaro, já nasce desafiando alguns limites constitucionais
O Sistema tributário brasileiro é datado do século passado e apresenta muitas disfuncionalidades que atrapalham os principais personagens da cadeia produtiva, seja entendendo o que e quando pagar ou como a contribuição influencia o seu dia-a-dia. A Reforma Tributária apresentada pelo governo, primeiramente por meio do Projeto de Lei nº 3887/2020, tem o objetivo de atualizar esse sistema com a proposição de um novo tributo.
A tentativa de instituição de uma nova contribuição se origina da alta complexidade do sistema tributário brasileiro. A todo o momento, o contribuinte depende de técnicos jurídicos e contábeis que procuram entre jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Soluções de Consulta, legislações estaduais e municipais, e vestígios de interpretações para se manter na legalidade em um cenário no qual a mesma mercadoria ou serviço é atingido por diferentes tributos em diferentes entes federativos. Ainda assim, essas decisões divergem entre si ou ficam à mercê de uma interpretação vaga, formando uma teia de diferentes tributos que atrapalham a transparência tão cara para o povo brasileiro.
Porém, há de se ter um certo cuidado ao abordar a questão tributária. Primeiro, porque é um tema muito técnico e específico da área tributária, sendo de conhecimento inatingível para a maioria dos brasileiros. Neste caso, os especialistas atuam como intermediários entre os sujeitos, sempre buscando a melhor opção para equilibrar o sistema. Além disso, por se tratar de um tema distante, impopular e por vezes abstrato para a maioria dos brasileiros, é conveniente para a classe política não abordá-lo em programas eleitorais e manter o status quo.
Essa mesma dificuldade em abordar um tema para leigos pode levar à demora em propor a reforma. Devido a isso, a reformulação do sistema tributário é sempre vítima de protelação por parte dos agentes políticos legislativos que não querem sofrer o desgaste político natural de uma remodelação na estrutura econômica.
A Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), ao substituir PIS e Cofins, aumenta a alíquota no consumo, reforçando um sistema regressivo em alguns setores, ao contrário da arrecadação do imposto de renda, que se configura como progressivo, ou seja, quanto mais se ganha, mais paga-se imposto. Certamente, essa seria a primeira parte de uma mudança maior que pretende deixar o sistema tributário mais uniforme e custear os altos gastos governamentais recentes com a Covid-19.

A tributação pelo consumo passa despercebida e afeta uma grande parte da população brasileira que ganha menos, mas está sujeita à mesma alíquota de uma minoria que possui salários elevados. Essa tentativa de suavizar a arrecadação não contribui para transparência na relação entre fisco e contribuinte e contribui para um sistema em que o pagador não sabe o destino do dinheiro, ocorrendo uma dissociação entre a arrecadação e o sentimento de pertencimento, de solidariedade social. Além disso, é essa mesma solidariedade que move uma parte das arrecadações. O fato de estar contribuindo para algo maior é característico de contribuições para seguridade social, por exemplo, impostos como PIS e Cofins, que serão substituídos pela CBS.
A contribuição social possui especificidades que devem ser observadas. Algumas delas é a função arrecadatória de custeio da seguridade social, por isso não é indicado ser utilizado em benefícios fiscais. De acordo com o art. 149 da Constituição brasileira, é de competência da União instituir essas contribuições discriminando os fatos econômicos a serem tributados, como lucro líquido ou folha de pagamentos. Já os imposto podem ser instituídos por municípios e estados e utilizados para variadas finalidades, entre elas provocar uma mudança econômica social.
O PL entregue pelo governo nos últimos dias estabelece em seu art.2 o fato gerador do novo imposto: receita bruta. Porém, a nomenclatura do Imposto remete a bens e serviços, o que pode gerar dúvidas no contribuinte e conflitos judiciais ao lançar mão de hipóteses de incidência. Em um primeiro momento, é possível considerar a CBS inconstitucional, ao enxergá-lo como uma contribuição que incidente sobre bens e serviços o que se opõe ao Art. 149 da Código Tributário Nacional que deixa explícita a instituição de contribuições sociais sobre receitas e faturamentos. Em outra hipótese, é possível deduzir que o novo tributo incidirá sobre a receita bruta de bens e serviços. Porém, na prática jurídica há uma dificuldade em definir conceitos como bem e serviço. Desse modo, operações de locação, por exemplo, estariam excluídas da tributação
A instituição de uma nova contribuição também não seria a melhor escolha do governo ao tratar de uma função extrafiscal. Por exemplo, a concessão de benefícios fiscais envolvendo tributos como PIS e Cofins seria prejudicada. É através desses incentivos que o Estado deixa regiões como o norte brasileiro, com a Zona Franca de Manaus, em nível de competitividade com o mercado internacional.
De certo modo, o governo tenta, sem muito apoio popular, propor reformas para adequar a legislação brasileira a realidade do século XXI e as consequências deixadas pela Covid-19. Porém, faz isso sem abertura para o diálogo com os maiores protagonistas da relação fiscal e com a sociedade em geral e sem pensar em estar em conformidade com a Constituição brasileira. Dessa forma, o tributo já nasce gerando mais dúvidas do que simplificando a vida contribuinte.
Julia Sevenini é graduanda em Direito na UFRJ, pesquisadora na área de Direito tributário, ex-presidente da Destro Jr. e (UFRJ) e estagiária no BRGC Advogados.