A história da Teoria da Literatura no último século constitui-se pela contraposição entre diferentes perspectivas de mundo, de sujeito, de texto e de arte, que podem ser, grosso modo, organizadas em grandes tendências. Há aquelas que defendem a independência da literatura em relação à sociedade e que, por isso mesmo, absolutizam, no julgamento de valor, a forma e as relações internas estabelecidas no texto com o mundo da própria arte. Há aquelas que reconhecem, na elaboração literária, a vinculação entre linguagem e subjetividade humana situada, mas que renegam a existência de uma realidade que exceda a produção discursiva singular e rechaçam a possibilidade de investir em grandes questões e projetos comuns. E há, por fim, aquelas que – entendendo a palavra como essencialmente ideológica e, por isso mesmo, histórica e cultural –, defendem que haja uma dialética mundo-texto em que ambos se produzem e transformam mutuamente, sendo, por isso mesmo, indiscerníveis os limites forma-conteúdo ou realidade-arte.
Os desdobramentos das duas primeiras grandes tendências sobre a Educação Literária em contextos de educação formal foram: de um lado, a aposta no ensino (pseudo)científico de categorias formais e de metalinguagem especializada, tomando os textos literários como uma espécie de cadáver a ser dissecado (isolado, descrito, categorizado, analisado). De outro lado, o investimento no processo de leitura singular, na experiência direta e imediata entre texto e leitor, e na valorização de qualquer sentido produzido pelo indivíduo, independentemente de critérios e experiências comunicáveis, discutíveis e questionáveis – ou seja, parece que o abalo às noções de realidade e de universalidade entortaram a vara em direção à negação da possibilidade de formação literária comum, gradual, planejada, sistemática.
Evidentemente, entre essas duas posições apresentadas há várias nuances, mas, dada a limitação de espaço, lidamos aqui com uma necessária generalização. Feita a advertência, nos habilitamos à pergunta: Qual o efeito geral desses dois pólos atinentes às relações Literatura & Educação sobre os leitores empíricos? Alguns, deduziram que literatura é desinteressante, desnecessária, autossuficiente, incompreensível – e se afastaram dela. Outros, passaram a defender a abolição da apreciação crítico-valorativa e passaram a tomar o próprio gosto ou umbigo (que desconsideram ser, fortemente, dirigido pelos mass media e pela indústria da cultura) como norte para a produção de sentidos não apenas em relação aos textos literários, mas também em relação a tudo ou quase tudo, da política à economia, da arte à ciência; e, assim, a aposta na especificidade, na particularidade e na singularidade vêm solapando qualquer possibilidade de transformação mútua e coletiva. Nesse contexto, Iara e a arca da filosofia, de Maurício Abdalla, publicado em 2008 pela editora Mercuryo Jovem, é uma guinada importante.
Em primeiro lugar, é importante porque, de acordo com pesquisas recentes (relembro, a título de exemplo, a dissertação de mestrado de Mariana Passos Ramalhete, defendida em 2015, sobre a literatura juvenil premiada nos últimos 10 anos no Brasil), a literatura juvenil bem-avaliada pela crítica especializada é, fundamentalmente, aquela que investe em relações endógenas no mundo da literatura e em problemas do sujeito singular masculino, branco, urbano, de classe média, escolarizado – dado que reitera os resultados de pesquisa auferidos pelo grupo de pesquisa “Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea”, sobre a literatura brasileira publicada por grandes editoras. Isso porque Iara e a arca da filosofia é protagonizado por uma menina (Iara) e um lêmure falante (Filolau), investe no fantástico e se ambienta em um espaço não-urbano; além disso, excedendo a questão individual da menina Iara com a televisão, a obra a convoca a resolver um problema coletivo e dialoga explicitamente com a história do pensamento filosófico ocidental, passeando de Heidegger a Marx, pertinentemente inseridos na construção ficcional – o que, decerto, foi possível graças à formação e atuação do autor como pensador e professor na área de Teoria do Conhecimento há muitos anos.
Um outro ponto que evidencia o corte que Iara… estabelece com a tradição literária juvenil contemporânea é que, diferentemente de uma produção cultural niilista que renega qualquer possibilidade formativa ao texto literário, defendendo-o como autotélico e bastante em si mesmo, a obra de Abdalla convoca para si um papel educativo, no amplo sentido que a ideia pode ter. Certamente, essa opção tem relação com a história do autor, que, convictamente, defende que a Filosofia é para todos (seja por meio de sua atuação pública como intelectual, seja por meio de sua produção paradidática infantil em obras como Uma janela para a Filosofia, publicada pela editora Paulus, seja, por fim, por meio de seu trabalho como produtor e apresentador do programa semanal de rádio denominado “Nas ondas da Filosofia”).
Além de apresentar conhecimentos necessários à compreensão da obra por meio de boxes explicativos, assumindo uma vocação claramente informativa, Iara e a arca de Filosofia toma explicitamente uma posição político-ideológica contrária ao modo como nossa vida e nossa sociedade estão organizados. Defende que, da mesma forma como forjamos nossa alienação e participamos dos riscos decorrentes disso, podemos coletivamente construir um mundo mais equânime e mais humanizado, onde a vida digna para todos tenha precedência sobre os privilégios particulares. Todavia, longe de um panfletarismo que prejudique sua dimensão artístico-ficcional, a obra – por meio da ficção e da possibilidade de o leitor estabelecer uma alegoria entre a vida de Iara e sua própria vida – diverte, instiga, convida à fantasia.
As diferentes posições sociais existentes na realidade extraliterária são, no texto de Abdalla, assumidas por lêmures, corujas, cães, pavões, galinhas. Com a mediação literária produzida pelo texto e também pelo trabalho editorial (que lança mão de recursos gráficos variados), o leitor juvenil vai progressivamente caminhando da ficcionalidade à compreensão mais densa de sua experiência concreta. Como afirma o próprio autor, se “ninguém precisa de um diploma de filosofia para filosofar”, há, porém, “um caminho a percorrer” e, “Para trilhar esse caminho, precisamos ter a mesma coragem, esforço, curiosidade, senso de humor e responsabilidade que a menina Iara demonstrou, mesmo sem saber que era capaz de todas essas coisas”.
Por isso, os 10 anos de lançamento de Iara e a arca da filosofia merecem ser celebrados. Uma obra que respeita a inteligência dos leitores juvenis (inclusive, sem supor que sejam incapazes de vencer as quase 300 páginas de texto…), que respeita a melhor tradição literária e que, enfim, nos convoca a todos a reinventar nossas possibilidades no mundo.
*Maria Amélia Dalvi é licenciada em Letras e doutora em Educação, professora de graduação e pós-graduação em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo. Co-organizadora do livro Leitura de literatura na escola (Ed. Parábola)