Os diferentes feminismos da mulher palestina e israelense
Afinal, qual é a diferença entre a continuidade de poder de Netanyahu, que já ocupa o cargo há 13 anos (1996 a 1999 e 2009 a 2019), e os novos ventos vindos do ex-comandante militar centrista para as mulheres palestinas e israelenses? A resposta é: nenhuma. Mais um artigo do especial Feminismos transnacionais.
Abril de 2019. Setembro de 2019. Março de 2020. Em menos de um ano Israel passou por três eleições nacionais. O motivo é o impasse entre o Likud, partido do atual premier Benjamin Netanyahu (conhecido como Bibi), e o Azul e Branco, do principal opositor Benny Gantz para a formação de um governo. Após o processo eleitoral é preciso que um dos partidos, que foram os mais votados, cheguem ao número de 61 cadeiras no Knesset, parlamento composto por um total de 120 assentos. Em meio a discussões sobre corrupção, espectro político e segurança, a democracia israelense foi suspensa até que se chegasse a um consenso sobre a formação do governo. A questão é que ao mesmo tempo que o processo eleitoral falha e cria uma instabilidade política para aqueles que vivem em Israel, as ações militares do exército israelense continuam nos territórios ocupados, criando marcas profundas nos corpos das mulheres palestinas e israelenses.
Enquanto Bibi enfrenta um histórico processo de corrupção, com três acusações distintas, mulheres palestinas continuam sendo presas e torturadas sem ter acesso aos seus direitos básicos. Durante todo o ano em que os dois partidos, Likud e Azul e Branco, discutiram formas de chegar a um consenso sobre a constituição do Knesset, mulheres palestinas que vivem em Gaza foram impedidas de fazer exames pré-natais e de se locomoverem no território para proverem aos seus filhos os melhores cuidados. Junto com os debates políticos que tomaram Israel e toda a política internacional, mulheres israelenses continuaram se alistando compulsoriamente ao exército deixando seu “ser mulher” de lado em prol de um “bem nacional”. Afinal, qual é a diferença entre a continuidade de poder de Netanyahu, que já ocupa o cargo há 13 anos (1996 a 1999 e 2009 a 2019), e os novos ventos vindos do ex-comandante militar centrista para essas mulheres? A resposta é: nenhuma.
Linha dura
Apesar das grandes diferenças ideológicas e de Gantz ser, inclusive, apoiado por partidos árabes para formar uma coalizão, ambos seguem uma linha dura quanto a causa palestina, principalmente no quesito militarização dos territórios ocupados, uma das maiores armas contra as mulheres na região. Durante sua campanha eleitoral, Netanyahu prometeu que caso fosse reeleito não haveria um Estado palestino, rejeitando a solução de dois Estados propostas pelas Nações Unidas desde 1948.
Com o discurso de uma extrema direita nacionalista Bibi foi responsável pela expansão da ocupação israelense ao longo de seus mandatos e pelo endurecimento do sionismo1 político. Além disso, o sobrenome Netanyahu possui um grande peso político no que tange às questões securitárias em Israel, uma vez que Bibi fez parte da força de elite do exército israelense libertando o voo 571, que havia sido tomado pelo grupo Setembro Negro em 1972 para ser usado como moeda de troca por prisioneiros palestinos, e seu irmão morreu no ano de 1976 em uma tentativa de resgate parecida, se encaixando em uma imagem muito importante no Estado de Israel: a do sacrifício pela nação.
O adversário do atual premier não difere muito em termos militares.
Gantz comandou as Forças de Defesa Israelenses entre 2011 e 2015, possuindo um grande prestígio militar, social e político em decorrência da sua carreira como comandante. Vangloriando-se constantemente de quantos “terroristas” havia matado, Gantz declara que podem haver negociações porém sem dar fim aos assentamentos judaicos na Cisjordânia e à ocupação dos territórios considerados pelas Nações Unidas como palestinos, o que na prática mantém o estado atual na região. Sendo assim, para o povo palestino a possibilidade de uma saída de Netanyahu do poder não levar a nenhuma esperança de fim ao conflito e, para as mulheres, sejam elas palestinas ou israelenses, a previsão é da perpetuação de uma militarização que continuamente enxerga seus corpos como alvos.
Mas porque a militarização é tão prejudicial para essas mulheres?
Porque a militarização é um fenômeno essencialmente masculino que exclui e subjuga tudo aquilo considerado feminino. A agência e a luta das mulheres palestinas e israelenses funcionam como um espelho uma da outra. Ambas são idealizadas por seus movimentos nacionais como uma fonte de resistência. Ambas são influenciadas por uma sociedade extremamente militarizada a entrar na luta por uma causa maior. Ambas possuem seus corpos instrumentalizados e militarizados como consequência disso. Apesar de serem imagens semelhantes umas das outras, são também opostas. Opostas porque uma delas é considerada pelo Ocidente um dos principais exemplos de igualdade de gênero e a guardiã do feminismo no Oriente Médio, seguindo o arquétipo da guerreira. Enquanto isso, a outra nega e é negada pelo movimento feminista ocidental, sendo colocada dentro do estereótipo de manipulável, seja como guerrilheira (chamada de terrorista por muitos) seja como oprimida, por seguir o islã. Opostas, também, porque colonialidade e capacidade bélica pesam a balança em prol da vangloriação de uma e do assassinato da outra. No entanto, de formas diferentes, e essa diferença precisa sim ser colocada em pauta, as mulheres palestinas e israelenses são as principais vítimas da militarização dos territórios ocupados.
A israelense
A sociedade israelense tem a sua construção identitária no sionismo, na memória do Holocausto e, em partes, na igualdade de gênero. O mito, construído na sociedade e tecnicamente garantido pela constituição, da igualdade entre homens e mulheres é corroborado pelo alistamento obrigatório de todos os cidadãos do Estado judeu. Há, então, uma entrada massiva de mulheres no exército acreditando que neste irão lutar contra o “inimigo de seu povo” e se tornarão mártires por protegerem sua nação.
Sob esse ponto de vista nacionalista o palestino é visto como o “inimigo”, pois nega a tragédia do Holocausto e ataca constantemente a fronteira impedindo a existência do seu povo. Por conta dessa aparente equidade, o movimento feminista (principalmente o feminismo liberal) ocidental coloca a mulher israelense como um modelo a ser seguido, como uma mulher feminista que conseguiu de alguma forma alcançar o que o movimento tanto busca no ambiente mais masculinizado que existe: o exército.
A bandeira da mulher israelense feminista é levantada dentro e fora do país, colocando esta como uma luz entre àquelas que estariam escondidas pelo véu islâmico no Oriente Médio. No entanto, ao entrar no exército essas mulheres vão ao encontro de uma realidade muito mais dura do que a idealizada e passam por diversos processos de destruição do que é ser mulher.
Inicialmente as mulheres entram no exército ocupando majoritariamente cargos que são classicamente femininos, como áreas de apoio administrativo e da saúde, sempre sendo associadas ao cuidado e a maternidade. Somente em 2000, o parlamento israelense votou a favor da inserção de mulheres em todas as instâncias do serviço militar, inclusive em posições importantes de combate, decisão que foi duramente criticada por conservadores e pouco colocada em prática. Além disso, mulheres são facilmente liberadas do serviço militar, com muitas servindo apenas dois anos e sendo dispensadas por motivos como casamento ou gravidez. Sendo assim, a divisão sexual das funções dentro do exército israelense é muito clara e completamente distinta daquelas que enxergam Israel como um oásis feminista na região.
A pesquisa de campo realizada pela autora israelense Sasson-Levy nos mostra que, para se inserir no “grande clube de homens” em que entraram, as mulheres passam a mimetizar comportamentos masculinos como forma de serem mais respeitadas por seus colegas homens, imitando suas práticas discursivas, gestos corporais, se distanciando e ridicularizando qualquer forma de feminilidade e até mesmo minimizando o assédio sexual. Nenhum questionamento é feito sobre a situação das mulheres do outro lado do muro porque a identidade nacional teria que estar sempre acima da identidade feminina. A mulher é apagada, a militar israelense é aplaudida. Da mesma forma, a mulher palestina não é vista como mulher, com necessidades e agências de uma mulher, é vista como palestina e, por conta disso, o inimigo.
A palestina
Em oposição a mulher israelense, a palestina é apagada por um feminismo que não a contempla e que não enxerga a luta e as diferentes formas de resistência por trás do véu islâmico. Leila Khaled, Fatma Khaskiyyeh Abu Dayyeh e Ahed Tamimi – elas e muitas outras, que foram menos reconhecidas, mas não por isso são menos importantes, são exemplos de mulheres palestinas que fizeram parte da resistência. O ato de resistir na terra santa pode ocorrer de muitas formas, desde uma ação militar dentro dos grandes grupos armados até a maternidade. Em um lugar que traduz na prática a necropolítica teorizada por Mbembe2, a guerra é constante, a movimentação é controlada e a possibilidade de prisão, morte e tortura são tão comuns quanto a visão de um soldado armado.
Maternidade como forma de resistência
Como resultado disso, a resistência é diária e acontece nas pequenas ações do dia a dia. A Sumud (resistência pacífica mas não passiva) passa a importar tanto quanto pegar em armas e ir para a linha de frente (algo que a mulher palestina também faz, porém em menores números nas últimas décadas). Para isso, a mulher palestina ressignifica o que para mulheres israelenses e ocidentais é considerado um símbolo da “passividade feminina” como a sua forma de resistência e de participação na causa palestina. A maternidade se torna um meio de luta, pois através desta são gerados novos combatentes para a linha de frente ou mulheres que poderão cumprir o mesmo papel. A gravidez deixa de ser ligada diretamente ao anseio pela construção familiar e passa a fazer parte da causa palestina.
Até a década de 1990 a identidade da mulher palestina é construída através da imagem da mãe lutadora que se sacrifica para salvar seus filhos, a qual sofre uma ruptura com a militarização e masculinização do movimento, principalmente através da figura de Yasser Arafat, líder da Autoridade Palestina que exaltava o âmbito militar da causa usando em todas as ocasiões oficiais um uniforme militar.
Assim, há uma aproximação da mulher do ambiente privado, algo que em um primeiro momento a afasta da luta, mas logo é ressignificado. Dessa forma, a mulher palestina cria um novo simbolismo para o papel materno, afastando-o do espectro patriarcal e o associando à resistência ao se sacrificar entregando seu filho à luta e sendo tão respeitada dentro da sociedade palestina quanto o próprio mártir. Essa mulher é colocada em um lugar de respeito, ao lado de importantes oficiais e comandantes por acreditarem que ela fez um dos maiores sacrifícios entregando seu filho.
Feminismo islâmico
A resistência maternal dessas mulheres pode não ser vista como feminista por mulheres ocidentais e ocidentalizadas, mas o feminismo islâmico abraça tais formas de agência. O feminismo islâmico surge, de acordo com Cila Lima, uma das pioneiras nessa pesquisa no Brasil, de uma interseção entre o mundo moderno e o islã. Através de uma releitura das escrituras sagradas e da Ijtihad (livre interpretação das fontes religiosas) busca mostrar que o patriarcalismo do Corão é resultado de uma interpretação específica de um momento histórico e que precisa ser atualizada.
Há nessa luta também uma busca pelo respeito da expressão religiosa, ou seja, nenhuma mulher deveria ser menos feminista por usar o véu islâmico, nem ser menos islâmica por ser feminista. O feminismo islâmico busca abraçar essas mulheres que são consideradas vítimas por outros feminismos e enxergar a agência e a luta nas pequenas ações do dia a dia. Apesar disso, o uso da maternidade palestina não deixa de ser uma instrumentalização do corpo feminino. O útero dessas mulheres é militarizado em prol da causa palestina, uma consequência pouco pensada do constante conflito da região.
As palestinas e as israelenses são os alvos dessa militarização independentemente de quem formará um governo em Israel, seus corpos são marcados pelo gênero e pela identidade nacional que escolheram defender. Nem Likud, nem Azul e Branco, Netanyahu ou Gantz. Nem mesmo uma coalizão nacional. Nenhuma projeção de governo israelense busca uma diminuição significativa da militarização dos territórios ocupados e a situação das mulheres dentro deste conflito, assim como na maioria dos outros que ocorrem pelo mundo, é negligenciada. Enquanto os territórios forem ocupados elas “se apagarão” como mulheres para defender a causa nacional, que sempre irá aparentar mais urgente que a causa feminina. Por isso, para pensar nas eleições israelenses e na importância desta para a estabilidade na região é preciso pensar nas palestinas e nas israelenses.
Giovanna Lucio Monteiro é feminista, anticolonialista e graduanda em Relações Internacionais. Pesquisadora sobre gênero e mundo islâmico a partir de uma perspectiva do sul global.
1 O sionismo é um movimento político fundado por Theodor Herzl que busca a autodeterminação do povo judeu e busca a criação de um Estado soberano no local onde foi anteriormente o reino de Israel. Este foi a base ideológica na qual o Estado de Israel foi criado em 1948.
2 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.