Os donos da bola
Com o cerco se aproximando, vários cartolas se afastaram dos negócios para, quem sabe, escapar das garras da justiça. Nem todos, é claro, pois muitos não se imaginam distantes da galinha dos ovos de ouro em que se transformou o futebol. Onde encontrariam oportunidades semelhantes e tamanho poder?
A manipulação das ligas amadoras e dos pequenos clubes, com o intuito de tornar perene o poder adquirido nas Federações de Futebol no Brasil, pode ser estendida ao poder central do futebol globalizado. E por isso resolvi imaginar uma reunião qualquer do condomínio Maracanã, que pode ser vista com olhos planetários, desde que se idealizou a internacionalização do futebol mundial nos anos 1970, não por acaso, mas por um representante brasileiro que permaneceu por muito tempo à frente da Federação Internacional.
Foi em uma sala suspeita que se reuniram alguns elementos, também suspeitos, para deliberar sobre assuntos de seus interesses. O lugar era algo estranho, com certo ar de antiguidade deteriorada. Não pareciam estar muito à vontade. Estou falando de um condomínio de certo porte, que agregava alguns figurões da sociedade local. Por uma destas ironias do destino ou mania de mandar, alguns de seus representantes se investiram do direito de responder e decidir por todos os outros. Quase como em um golpe. Deliberou-se ali sobre a taxa de condomínio e algumas outras formalidades que passaram a ser exigidas para a boa convivência dos vizinhos.
Essas poucas pessoas que ocupavam os sofás pouco cuidados aparentavam estar um pouco alteradas. Diria até que não tinham condições plenas de admissão de suas posições. Um, de alva cabeleira que mais lembrava um decadente cantor de fundo de quintal, comandava todos os outros, que para serem considerados marionetes faltava muito pouco. Em voz alta, bradava que uma tomada de posição deveria ser assumida. “Que absurdo cobrar de todos os moradores do prédio, por exemplo, a manutenção dos elevadores!” Uma garçonete em trajes sumários adentrou o recinto com uma bandeja e provocou mal-estar no funcionário que guardava a porta, armado, diga-se de passagem. Os participantes da mesa reagiram com absoluta naturalidade como se aquela visão fosse comum. Na verdade, a maioria estava louca para que aquele encontro se encerrasse logo e assim pudessem se dirigir a um local mais permissivo, digamos assim, que já se encontrava devidamente agendado como uma forma de prêmio pela participação. Só o fato de se recordarem do depois era motivo para extrair um sorriso incontrolável da maioria.
Outro, que se alojava do lado oposto enquanto saboreava arrogantemente um charuto cubano que comprara nas docas, resolveu colocar mais fogo no gargalo. Levantando insistentemente a mão por mais de 10 minutos, conseguiu chamar a atenção do chefão que, irritado, anuiu à sua palavra. Levantou-se solenemente como se um lorde fosse e começou a desfilar as suas impressões: “nós, gente da melhor espécie, temos que imediatamente definir nossas posições. Devemos exigir que nenhum tipo de taxação incida sobre nossa cabeça. Que todos os motoristas particulares nos recebam de joelhos dobrados e cabeça baixa. Que empregados, jamais os tenhamos por perto. Que deixemos de pagar os impostos do imóvel. As taxas e outras extorsões deverão, a partir de hoje, ser pagas pelos funcionários, que trabalharão sem direito a salário e a qualquer tipo de privilégio; muito menos horas extras”.
Foi uma loucura. Os pequenos – e pretensos tiranos – comensais se levantaram para um eufórico brinde com uma aguardente envelhecida. O orgulho se estampara em seus rostos. Sentiam-se o máximo. Os únicos. Os invencíveis. O que diriam suas pobres esposas, amantes ou suas próximas companhias? Nada mais que isso. Nem sabiam com quem tratavam suas vidas. Ou, quem sabe, conheciam muito bem quem as saciava de colares, moedas e vergonha. Chamaram a secretária para colocar em ata todos estes absurdos. Um, o pior, escapou no ocaso do evento. Era definitiva a resolução de que nada nem ninguém poderia, a partir daquele momento, ingressar naquele prédio. Nem eles! Embriagados pelo poder investido, não se deram conta de que era a própria derrocada.
Com o cerco se aproximando, vários cartolas se afastaram dos negócios como uma maneira de distrair a atenção e, quem sabe, escapar das garras da justiça. Nem todos, é claro, pois muitos não se imaginam distantes da galinha dos ovos de ouro em que se transformou o futebol. Onde encontrariam oportunidades semelhantes em qualquer outro ramo de atividade e onde possuiriam tamanho poder? Jamais! Principalmente porque não produzem excelência em nada do que fazem. Um deles, velho conhecido de todos, já desapareceu. Sua trajetória foi fulminante e sempre causou surpresa até para os mais chegados. Principalmente os que com ele conviveram desde a sua infância e que, portanto, conheciam bem a sua história.
Menino do interior, ele sonhava com uma vida bastante simples. Melhor que aquela que levava, é verdade, mas bastava muito pouco para que ela fosse proporcional ao seu sonho. Nos primórdios da vida, pouco se destacava dos companheiros. Na escola, não conseguia acompanhar o ritmo ditado pelos professores. E olhem que não era nada de extraordinário. Apenas tinha dificuldade para assimilar as informações recebidas. Na adolescência, se virava como podia para ajudar no orçamento familiar. Parecia, naquele momento, que tudo que imaginara jamais aconteceria. Estava muito distante dos seus objetivos e resolveu dar uma guinada em sua vida, porém ainda não sabia como.
Saiu de sua cidade em busca do sonho maior como um migrante qualquer, com um currículo sem muitas qualificações que, mesmo assim, não seria um limitador para suas ambições. Sua única riqueza, reconhecia, era a de ser mestre em atrair ouvintes para suas prosas e criar um leque de relacionamentos que pudesse abrir-lhe as portas mesmo sem um ofício definido. Conseguiu, através de amigos, ser aceito em um posto inferior de uma estrutura esportiva onde hibernou por muitos anos com o indisfarçável intuito de conhecer em profundidade o negócio da empresa. Sentia que era um produto excepcional e que as pessoas que mantinham cargos de direção estavam mais interessadas em utilizá-los como degraus para outros voos ou estavam prestes a se aposentar. Passou então a trabalhar para galgar a diretoria sem necessariamente passar pelo dissabor de estagiar na supervisão, o que lhe exigiria muito mais tempo do que gostaria.
Trabalhou nos bastidores, conquistou adeptos, se fez candidato e chegou à presidência. A partir daí aconteceu uma reviravolta em sua vida. Com o poder adquirido, desfilava com desenvoltura por terrenos poucos visitados. Em poucos anos pôde centralizar todas as decisões de interesse dos filiados. Isso lhe permitia negociações cada vez mais rentáveis, e não necessariamente lícitas, sem que nunca houvesse controle por parte dos demais membros. Contratos de exploração geravam pequenos desvios, chamados de comissões, que repousavam agora em algumas contas numeradas em paraísos distantes. Contratos de comercialização interna eram fechados por um valor abaixo dos de mercado desde que uma parte também fosse parar em seus cofres. Na distribuição antecipada de dividendos exigia descaradamente uma recompensa, em dinheiro vivo, que ultrapassava os vinte por cento. Ninguém jamais reclamava, porque sua capacidade de retaliação era temida. E assim, foi amealhando um “respeitável” patrimônio que assustava até os parceiros. Um prodígio, afirmavam. Mas como o crime não compensa, errou inesperadamente em dois pequenos detalhes: em mais de uma de suas aventuras por essa e outras áreas se esqueceu de contabilizá-las e jamais se preocupou em tornar visível uma fonte qualquer para os seus recursos. Eis que, através de uma série de denúncias contra a sua administração, descobre-se toda sorte de falcatruas que há anos realizava. De cabeça baixa, é expulso do imponente salão que construíra e de onde despachava diariamente. Apesar de tudo que conquistara materialmente, neste momento percebe que aqueles que o cercavam estavam interessados apenas nas facilidades que ele lhes oferecia e que para os dias futuros teria de lutar sozinho para tentar provar, inutilmente, a sua inculpabilidade. E assim, só lhe sobrou a velha solidão.
Sócrates é médico e ex-jogador de futebol.