Os especuladores cobiçam a Rede
O objetivo do acordo entre a AOL e a Time Warner é transformar a rede mundial de computadores num imenso supermercado virtual. Essa fusão ameaça abocanhar a Internet e pode limitar, ainda mais, o pluralismo da informaçãoDan Schiller
É difícil exagerar o impacto provocado pela fusão entre a maior empresa provedora de serviços na rede eletrônica (America Online — AOL) e o maior conglomerado mundial na área dos meios de comunicação, a Time Warner. A transformação dos meios de comunicação em máquinas que visam fisgar consumidores e vender produtos se tornará cada vez mais evidente.
A história deste acordo está entrelaçada pela especulação financeira, pelas transformações que ocorrem nos meios de comunicação e pela vontade dos grandes empresários de impor o seu controle sobre a sociedade. Ela começa com a comercialização de um serviço on line oferecido pela AOL, que assegurou a sua rentabilidade e o seu domínio. Prossegue com o estouro de suas ações, que atingiram índices estratosféricos e alimentaram o crescimento. E termina, ainda que provisoriamente, com a aquisição da Time Warner (por 165 bilhões de dólares), o que permite à AOL encontrar-se em posição de transformar a Internet, até agora independente, num elemento integrado ao sistema de meios de comunicação dominante.
Voltemos dez anos atrás. Antes de sua fusão, em 1989, a Time Inc. e a Warner Communications já tinham conquistado uma posição dominante nos meios de comunicação: a primeira era uma sociedade diversificada com um patrimônio de 4,2 bilhões de dólares (editora, desde 1923, da principal revista semanal norte-americana); a segunda, um conglomerado de US$ 3,4 bilhões, cujos estúdios de Hollywood a tornaram célebre no mundo inteiro. Por seu lado, a Quantum Computer Services, da qual nasceria a AOL, que começava a esboçar sua orientação estratégica na direção de um mercado então incipiente de serviços on line. Chamava a atenção por uma série de tropeços e de jogadas equivocadas. Seu valor líquido era desprezível [1].
E foi então que nasceu a Rede. Fruto da colaboração entre o exército norte-americano e a universidade, a Internet tornou-se um tipo de mídia genérico e público, de expansão fulgurante. A AOL viu na Internet uma chance imperdível. Promovendo campanhas de marketing estruturadas em moldes quase militares, a AOL conseguiu vender a milhões de neófitos a imagem de que era o meio mais fácil de se conectar com a Rede. A sociedade oferecia uma quantidade crescente de serviços (salas de bate-papo, comunidades virtuais, correio eletrônico) e de programas — dos quais sempre detinha a propriedade exclusiva, embora os obtivesse, muitas vezes, através de parcerias. Um de seus trunfos foi um acordo estratégico de promoção recíproca feito com a Microsoft (a AOL aparecia na homepage do Microsoft Windows).
Modelo de propriedade exclusiva
O modelo AOL tinha como mola-mestra a “propriedade exclusiva”. É verdade que esse sistema oferece um ponto de acesso à Rede, mas unicamente através do navegador (browser) da AOL. Para os 24 milhões de assinantes da America Online (e o número continua crescendo), que passam 84% do tempo on line utilizando os serviços e os programas da AOL — em comparação a apenas 16% na Internet propriamente dita — a AOL é a Rede.
Ao contrário do que ocorre com a maioria dos provedores de serviços pela Internet, a AOL obtém lucros substanciais graças ao sistema de assinaturas mensal de seus clientes, mas também, e cada vez mais, ao retorno da publicidade. Não é surpreendente, portanto, que o extraordinário crescimento do valor das ações da Internet nos Estados Unidos, durante a década de 90, tenha projetado a AOL para a posição de empresa-símbolo da sua área. O valor de suas ações foi multiplicado por 800 desde 1992. A capitalização da empresa foi calculada, no dia em que foi anunciado o acordo, em aproximadamente 165 bilhões de dólares, enquanto a Time Warner valia 111 bilhões. Em outras palavras, o valor da nova empresa, em termos de mercado de capitais, representa 60% do Produto Interno Bruto da Espanha.
Por isso, seriam necessárias quantias astronômicas para se poder comprar alguma das principais empresas do setor on line, como a própria AOL, a Yahoo!, a Amazon, ou ainda a eBay. Hoje em dia, mesmo os maiores dos conglomerados dos meios de comunicação clássicos, incapazes de exercer o controle sobre os mais visitados “sites” independentes do ciberespaço, foram relegados a um segundo lugar na fila da Rede.
A aquisição da Time Warner pela AOL representa um marco decisivo nos negócios feitos entre sociedades on line e outras. Pela primeira vez, uma empresa-Internet tenta demonstrar que suas ações não são apenas utilizáveis no ciberespaço, mas também no mundo “real”. A questão de saber se os acionistas da AOL homologarão o acordo ou não ainda não foi decidida.
Na realidade, a AOL aceitou que, no novo conglomerado, fosse diminuído o valor de sua parte, tomando por base a sua própria capitalização na bolsa (o que sugere que esta esteja supervalorizada). No entanto, a fusão é muito vantajosa para a AOL: enquanto a Time Warner deverá produzir quatro quintos das rendas antecipadas do novo conglomerado, a AOL detém 55% da empresa.
A Internet invade a mídia
A lógica estrutural do acordo concluído ajuda a compreender a importância do acontecimento que permite a integração crescente da Internet na rede dos canais de distribuição e na programação dos meios de comunicação tradicionais. Esta evolução implica, na realidade, em profundas conseqüências para a Internet, enquanto mídia relativamente aberta e independente.
Já há algum tempo, a Internet vem significando um concorrente ameaçador para a totalidade dos meios de comunicação existentes: jornais, revistas, livros, audiovisuais, etc. Ainda que se tratasse de um conglomerado, o colosso Time Warner tinha-se tornado paradoxalmente vulnerável à pirataria em vários dos setores onde atua. Num comunicado interno anterior à fusão e destinado a quem iria dirigir as negociações com a AOL, o presidente da empresa, Gerald Levin, admitia essa ameaça estratégica. E reivindicava “a reinvenção digital de toda a Time Warner [2]”.
A lógica da America Online divergia daquela da Time Warner. Um outro gigante da indústria das comunicações, a AT&T, juntara 110 bilhões de dólares para assumir o controle das duas maiores empresas de televisão a cabo dos Estados Unidos (uma das quais ainda não fechou acordo). A AT&T anunciou então que iria modernizar as suas duas novas filiais e utilizá-las para fornecer qualquer quantidade de serviços aos consumidores. Sua intenção era clara: dominar o mercado da televisão a cabo (uma família de classe média gasta aproximadamente de 100 a 150 dólares por mês com a TV a cabo), assim como o serviço telefônico local, interurbano e o acesso à Internet [3]. A AT&T fez então um acordo com a Microsoft, transformada agora em rival número um da AOL, para obter o software com os programas de gerenciamento destes serviços.
A AOL só podia ver isso como uma ameaça. Através de suas filiais, a AT&T propunha oferecer aos consumidores contratos exclusivos que os beneficiariam com um serviço de acesso à Internet de alta resolução e alta velocidade. Seus assinantes não poderiam ter acesso a outros provedores de serviços da Internet — tais como a AOL — senão pagando um acréscimo. Desta foma, a AOL corria o sério risco de ser excluída desta nova geração de serviços Internet. A compra da Time Warner permitiu-lhe solucionar essa dificuldade, garantindo o seu controle sobre a segunda maior empresa de serviços a cabo de alta velocidade existente nos Estados Unidos (13 milhões de domicílios). Quanto à Time Warner, a fusão resolveu o seu problema de desenvolvimento na área da comunicação digital, permitindo-lhe também uma expansão considerável de seu campo de ação.
É de se esperar, portanto, uma rápida integração da sua principal atração, a revista Time Magazine, dos ativos musicais, cinematográficos e televisivos da Time Warner, no espaço digital dominante da AOL. “A rede do novo milênio se apresenta sob a forma de uma oferta completa de produtos multimídia, de meios para passar de um espaço a outro, esteja ele ou não on line”, observa um técnico independente [4]. Essa previsão foi confirmada de maneira espetacular no dia 23 de janeiro, com o anúncio, pela Warner Music, de sua pretensão de assumir o controle da EMI, a terceira maior empresa musical e a única a não ser ainda coligada a um conglomerado transnacional.
As ambições da Time Warner e da AOL são grandes. O presidente desta última, Steve Case, apresentou a fusão das empresas como um passo que facilita a transformação da Internet “num meio de comunicação de massa que passará a fazer parte dos hábitos cotidianos do consumidor médio [5]”. A distância que separa a realidade deste objetivo ainda é grande. E para reduzi-la, a AOL pensa utilizar o cabo de alta definição para criar, na maioria dos domicílios norte-americanos, um serviço rentável, on line, e funcionando 24 horas por dia e sete dias por semana. Esses serviços, bem como as transações comerciais executadas via Internet, passariam assim a fazer parte do cotidiano da classe média norte-americana. Passariam por essa rede não apenas o lazer e a informação, mas também as finanças pessoais, a lista de compras, a segurança domiciliar e até a compra de aparelhos domésticos.
Saturada de publicidade
Steve Case chama a essa estratégia de “AOL em toda a parte”. Sua empresa fez o seguinte acordo com o gigante norte-americano da área de distribuição Wal Mart: fornecerão acesso on line a seus quase 100 milhões de consumidores semanais; para isso, em cada um de seus pontos de venda será instalado um terminal eletrônico. Além disso, a AOL e outras empresas do ramo estão empenhadas num esforço ambicioso e complexo que consiste em oferecer serviços Internet de qualquer natureza (correio eletrônico, cotação da bolsa, noticiário, previsão meteorológica) através da telefonia celular, dos pagers e de caixas postais pessoais. O objetivo desse amplo empreendimento é o de aprofundar e expandir a principal função comercial dos meios de comunicação. Ou seja: vender.
Já há mais de uma geração que as agências de publicidade se preocupam em saber como enfrentar a fragmentação dos veículos de propaganda induzida pela proliferação de novos meios de comunicação. A explosão da rede Internet acentuou a fragmentação do mercado e ameaçou dar aos consumidores de renda alta — alvo privilegiado das agências de publicidade — os meios de escapar a suas mensagens, tanto de noite como de dia. Como iriam as grandes empresas de produtos de consumo, tais como a Procter & Gamble ou a Unilever, reagir a este desafio?
Resposta: desdobrando os recursos para publicidade em todos os tipos de veículo de informação (“marketing integrado”). Para chegar lá, torna-se necessária a cooperação entre os maiores conglomerados de meios de comunicação (criados, eles próprios, como forma de reagir à fragmentação do mercado). Dessa forma, empresas de atividade diversificada, como a News Corporation ou a CBS, podem atingir o seu público consumidor através da televisão, das emissoras a cabo, das revistas e do cinema. E assim oferecer às agências de publicidade mais importantes toda uma série de espaços para ter sucesso em seus esforços de venda.
A fusão AOL-Time Warner faz entrar o ciberespaço nestas estratégias. Michael Wolf, um técnico norte-americano dessa área, sugere que “toda empresa que procura promover os seus produtos deve elaborar um plano publicitário global compreendendo chamadas na TV a cabo, nas rádios locais, em sites da Internet, revistas especializadas etc. [6]”. Contando com o serviço comercial on line mais desenvolvido, a AOL constitui a melhor das portas de entrada.
Gary Chapman, jornalista do Los Angeles Times, ressalta que a AOL já está “saturada pela publicidade, pelas promoções e pela onipresença de marcas, assim como pelos serviços de lazer eletrônico oferecidos por grandes empresas conhecidas do público. Na realidade, a AOL é menos um instrumento de acesso à Rede e ao correio eletrônico do que um centro comercial virtual. E como tal, a AOL controla a apresentação dos produtos, o tipo de clientela, o alvo e o conteúdo da publicidade [7]”.
“Entregar o cliente” aos publicitários
A fusão com a Time Warner vai intensificar essas práticas. Os comentaristas econômicos já babam diante da capacidade que tem a nova empresa de “entregar o cliente diretamente” aos publicitários e aos estrategistas de marketing. A AOL-Time Warner irá dispor de um acesso inigualável em termos de dados pessoais: índice de utilização dos meios de comunicação, liquidez bancária e escolha de produtos de consumo de seus usuários. Como nenhuma empresa conseguiu até hoje armazenar tamanha quantidade de informações pessoais, essa capacidade de selecionar e segmentar o seu público-alvo coloca o problema do respeito pela vida privada. Nesse aspecto, o balanço passado da AOL não traz bons presságios, principalmente porque a nova empresa, como entidade globalizada, desejará transmitir dados pessoais para além das fronteiras nacionais.
A AOL — e a Time Warner mais ainda — já são pioneiras na transnacionalização da indústria cultural. A AOL já fechou acordos de parceria com numerosas empresas importantes da área de comunicação na Europa e na América Latina. Quanto à Time Warner, suas atividades transnacionais já são inúmeras: a CNN, acessível no mundo inteiro, conseguiu conservar a sua audiência regionalizando a programação. Uma parte importante da expressão cultural “local” — que experimenta atualmente um surto de crescimento — foi promovida pela Time Warner e por outras empresas transnacionais da área da comunicação. Em alguns países, os artistas locais representam 70% das vendas de discos.
Diz a revista Fortune: “Cinco empresas globais — a Sony, a Warner, a Universal, a Bertelsmann e a EMI — dominam o cenário local com a mesma eficiência com que divulgam a sua programação de televisão internacional. Artistas locais e internacionais proporcionam-lhes, dessa maneira, duas fontes de renda.” Para Richard Parsons, presidente da Time Warner, “dentro de vinte anos, este modelo [de produção local e exportação mundial] vai proliferar e abarcar a totalidade de nossas atividades [8]”.
O fim de um sonho de liberdade?
O Wall Street Journal reconhece, sem meias palavras, que o conglomerado AOL-Time Warner “faz surgir o espectro de um domínio de setores importantes da nova economia mundial pelas empresas norte-americanas simplesmente em função de sua envergadura, e isso antes mesmo que um número considerável de pessoas se interligue em plano mundial [9]”.
Mas o domínio das empresas Internet/mídia com base nos Estados Unidos não se dará apenas devido ao seu poderio financeiro. Ele se deverá em grande parte às políticas comerciais que transformam o ciberespaço numa zona unificada de livre comércio. Apenas alguns dias após o anúncio da fusão, as autoridades canadenses já deixaram entender que as restrições de ordem legal — que estipulam que 35% da música difundida e 60% da programação de televisão devem ser canadenses — poderiam ser amaciadas. A Comissão de Rádio-Televisão e de Telecomunicações do Canadá considerará o abrandamento das regras de exceção cultural se as emissoras canadenses se encontrarem em situação de desvantagem competitiva com relação à nova programação produzida nos Estados Unidos e divulgada pela Internet. Após uma tal abdicação, será que se pode realmente esperar por algum tipo de resistência contra os gigantes norte-americanos da comunicação?
Dan Schiller é professor de comunicação na Universidade Urbana-Champaign (Illinois), autor de How to think about information, University of Illinois Press, Chicago, 2006.