Enquanto o inimigo ainda oferecia perigo e havia trabalho a fazer, a mobilização americana e iraquiana obteve resultados que poucos teriam imaginado. [Aplausos] Quando nos encontramos no ano passado, muitos pensavam que seria impossível conter a violência. Um ano depois, os ataques terroristas de grande porte, as mortes civis e os massacres sectários diminuíram. (…) [Antes], a Al-Qaeda tinha conquistado santuários em várias regiões do Iraque e seus dirigentes propuseram uma saída segura para nossas tropas deixarem o país. Hoje, é a Al-Qaeda que busca uma saída segura”. Foi assim que o presidente George W. Bush discorreu sobre a guerra no Iraque em seu último discurso perante o Congresso americano, em 28 de janeiro de 2008.
Ignorar esse pronunciamento é algo tentador. Afinal, essa é a administração que tanto enganou a opinião pública, manipulou os fatos e truncou os dados. Um estudo recente confirmou que, no período entre 11 de setembro de 2001 e o início da guerra, em março de 2003, Bush e seis de seus colaboradores mais próximos haviam mentido 935 vezes sobre o perigo que o Iraque representava para os Estados Unidos!1
Desta vez, contudo, as declarações do hóspede da Casa Branca, retomadas e amplificadas pela mídia e por certos notáveis americanos, até mesmo democratas, parecem apoiar-se em resultados sólidos. De acordo com um relatório americano2, o número de civis iraquianos vítimas de morte violenta passou de três mil em novembro de 2006 para 700 em dezembro de 2007. No caso dos soldados da coalizão, caiu de uma média de cem óbitos por mês no fim de 2006 para cerca de vinte após um ano. O pico ocorreu em maio de 2007, quando 130 militares faleceram. Os ataques de grande porte, como carros-bomba e atentados suicidas, também diminuíram de 130 em junho para 40 em dezembro de 2007. Mas o número mais surpreendente está relacionado aos confrontos interétnicos, essencialmente entre sunitas e xiitas: em dezembro de 2006, 2200 pessoas foram assassinadas, e no ano seguinte, registrou-se apenas 200 mortes. O sucesso levou a atual administração a anunciar a retirada de cinco mil soldados americanos por mês. A volta gradual para casa já começou: até julho, as tropas devem reduzir seu efetivo de 170 mil para 130 mil.
De fato, o quadro é bem diferente do visto no final de 2006, quando a situação no Iraque parecia seriamente comprometida e a pressão da opinião pública para uma retirada rápida era grande, como confirmaria a vitória dos democratas nas eleições congressuais de novembro. Na época, uma comissão bipartidária dirigida pelo antigo secretário de Estado do governo Bush pai, James Baker, e por Lee Hamilton, ex-presidente da comissão de Assuntos Externos da Câmara dos Representantes e parlamentar democrata por 34 anos, julgou de forma severa a política de Bush filho. Eles propuseram uma mudança de rota, uma retirada progressiva do exército americano e a abertura de um diálogo com a Síria e o Irã, além de um posicionamento sobre a questão palestina.
Muros separando xiitas e sunitas
Porém, contra tudo e contra todos, o presidente recusou-se a ceder. Seguiu por outro caminho, preconizando o lançamento de um relatório da fundação de direita American Enterprise Institute. Preparado pelo neoconservador Frederick Kagan e pelo general da reserva Jack Keane, o texto intitulado “Choosing victory: a plan for success in Iraq” (“Escolhendo a vitória: um plano para o sucesso no Iraque”) recomendava o envio de tropas suplementares e sua concentração na região de Bagdá, a fim de restabelecer a ordem, o oposto da proposta da comissão Baker-Hamilton.
Terá sido a melhor escolha, como afirmou o presidente Bush em seu discurso? Sem dúvida, a chegada de 30 mil soldados aumentou a segurança na capital. Muros foram erguidos para separar bairros sunitas e xiitas e os atritos religiosos diminuíram proporcionalmente ao aumento dos pontos de controle. Cerca de cem mil blocos de concreto cravados nas vias de circulação de Bagdá e suas redondezas levaram à redução dos atentados.
Dois outros elementos também favoreceram a diminuição da violência no Iraque. O primeiro foi o cessar-fogo unilateral decretado por Moktada Al-Sadr em agosto de 20073. Seu Exército de Mahdi é a mais poderosa milícia do país e representa os xiitas mais pobres. Movido por um forte nacionalismo, uma desconfiança persistente em relação aos dirigentes iranianos e uma inabalável hostilidade à presença americana, esse cessar-fogo é extremamente instável, uma vez que os objetivos de Moktada Al-Sadr e os dos Estados Unidos são contraditórios. O outro fator determinante na redução dos ataques foi a aproximação entre a comunidade sunita e os Estados Unidos. Intensificada no primeiro semestre de 2007, essa aliança comporta duas faces: por um lado, os americanos deram apoio financeiro para a união das tribos; por outro, concluíram acordos com grupos de resistência a ocupação. O movimento, batizado por alguns de Al-Sahwa (Despertar) e que Washington chama de maneira esdrúxula de “concerned local citizens” (cidadãos locais preocupados), agrupa cerca de 60 mil homens armados. Diversas razões os unificam. A primeira e principal delas é a rejeição à Al-Qaeda, ao seu extremismo e sua vontade de impor um Estado islâmico de rigor exacerbado e pretensões mundiais.
A segunda é o contrapeso ao “perigo xiita” que a aliança tática com os Estados Unidos representa. Finalmente, o dinheiro é um poderoso estimulante para os chefes das tribos. Os resultados dessa “reviravolta” são visíveis, como relata o jornalista Patrick Cockburn: a cidade de Fallujah, “onde muitos edifícios estão em ruínas desde que foi tomada de assalto pelos marines, em novembro de 2004, está bem mais pacífica do que há seis meses. Os combatentes da Al-Qaeda que a dominaram foram embora ou procuram não chamar a atenção 4”.
A união insólita, porém, continua frágil: as organizações de resistência associadas aos Estados Unidos são profundamente hostis ao projeto americano e a qualquer presença permanente de suas tropas. Além disso, essas milícias sunitas opõem-se às forças de segurança e ao governo central, dominados por xiitas, como mostra a multiplicação de confrontos entre os grupos armados “aliados” e a polícia iraquiana5.
Outra conseqüência do pacto entre os Estados Unidos e os sunitas foi o esfacelamento da autoridade. Não há nenhum poder central para “aproveitar” os sucessos americanos. A “limpeza religiosa”, via construção de muros e combate a Al-Qaeda, foi acelerada em várias regiões, entre as quais a capital Bagdá. Isso contribuiu para a redução dos confrontos inter-religiosos, mas não trouxe uma estabilidade maior no plano regional ou local. Nenhuma das três grandes “comunidades”, xiita, sunita e curda, representa um conjunto homogêneo. O Curdistão mantém sua “autonomia”, mas fica profundamente dividido entre a zona controlada pelo Partido Democrático do Curdistão e a área sob hegemonia da União Patriótica do Curdistão, ambas contestadas pela ascensão de grupos islâmicos. No sul, é grande a rivalidade entre o Exército de Mahdi e o Conselho Supremo Islâmico do Iraque, de Abdel Aziz Al-Hakim. As milícias que mantêm a “ordem” nessa região funcionam de acordo com uma lógica predadora, em detrimento da população. A autoridade do governo central fica, portanto, reduzida à “zona verde” de Bagdá, imensa fortaleza protegida pelos marines.
Para favorecer a reintegração dos sunitas, os Estados Unidos pressionaram as autoridades iraquianas e, em fevereiro, o parlamento nacional promulgou três leis. A primeira se refere à “desbaasização” – termo usado para designar o afastamento do poder dos apoiadores de Saddam Hussein, que integravam o partido Baas –, imposta pelo pró-cônsul americano Paul Bremer logo após a “libertação” em 20036 e agora considerada nociva governo Bush. A segunda prevê uma anistia parcial para dezenas de milhares de prisioneiros, em sua grande maioria sunitas. A terceira lei fixa as prerrogativas dos poderes locais e da eleição que acontece em 1º de outubro desse ano. O pleito pode devolver aos sunitas um papel de destaque nas regiões onde são majoritários ou em zonas mistas. Claro, vale lembrar que em janeiro de 2005 eles boicotaram a apuração dos votos.
Mas, sem apelar para o resultado das urnas, quem está ganhando no Iraque? A população certamente não. Calcular o custo humano da guerra é impossível, mas é significativo que nenhum esforço sério tenha sido feito até agora para tentar contabilizar os mortos iraquianos. Enquanto isso, sabemos exatamente o número de soldados americanos que tombaram em combate. Estamos reduzidos às estimativas, que convergem para um único ponto: o tamanho do desastre.
Um relatório recente da empresa britânica Opinion Research Business (ORB) afirma, baseado em entrevistas com 2414 adultos, que 20% deles perderam pelo menos uma pessoa em seus lares e estima em 1 milhão as mortes provocadas pela guerra, direta ou indiretamente, entre 19 de março de 2003 e o verão de 2007. Um outro estudo, desenvolvido pela universidade Johns Hopkins e publicado na revista científica Lancet em outubro de 2007, concluiu que 650 mil pessoas morreram no conflito. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, em um comunicado de 9 de janeiro de 2008, o assassinato de 151 mil iraquianos entre o início da guerra e junho de 2006. Uma diferença considerável.
À deterioração da segurança soma-se a degeneração do cotidiano. Além da produção de petróleo não superar o nível anterior à guerra, há cortes de eletricidade várias horas por dia, 70% da população não têm acesso direto à água potável e os hospitais não têm remédios nem médicos, já que a maioria emigrou. O número de refugiados e deslocados chegou a quatro milhões. É o maior desastre regional desde a guerra do Afeganistão nos anos 1980.
Se a mídia não fala mais da guerra…
E quem estará disposto a escutar o sofrimento desses iraquianos? Como relata Michael Massing em New York Review of Books, o grupo de mídia americano McClatchy instalou uma agência em Bagdá e criou um blog, “Inside Iraq” (“Dentro do Iraque”), para dar voz aos cidadãos comuns. Ou seja, iraquianos pelos quais a imprensa americana não se interessa realmente7. Ainda mais porque a diminuição das mortes de soldados acarretou uma redução da cobertura da guerra pela mídia dos Estados Unidos, o que reforça a idéia da “vitória”: se a televisão não fala mais da guerra, parece que não ela não está acontecendo.
De acordo com a responsável pela agência McClatchy em Bagdá, Leila Fadel, “os americanos acreditam que seus soldados agem pelo bem e os iraquianos não enxergam dessa forma. Vêem que eles estão lá para defender seus próprios interesses, que é melhor não se aproximar para não ser abatido. São pessoas que dirigem do lado errado das ruas e param o trânsito quando bem entendem”. Um dos participantes do blog “Inside Iraq” relata a invasão de uma escola pelos soldados americanos, contando que uma criança atirou-lhes uma pedra e foi surrada. Por que a criança jogou a pedra? “Eram soldados estrangeiros. Vivemos sob ocupação”. Esse sentimento é amplamente compartilhado, confirma Leila Fadel: “todos com quem falei pensam assim. Não têm poder em seu próprio país”.
Alguns meses após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, Jean François Revel escreveu: “existe uma xenofobia generalizada nos iraquianos, como em qualquer país árabe. Visa todos os ocidentais. Estamos frente a um povo incapaz de governar a si próprio e que também não quer que os outros o façam8”. Este eminente representante da direita bem-pensante, já falecido, indignava-se que os iraquianos não tivessem recebido com flores seus libertadores. Os próprios dirigentes americanos foram os primeiros a ficar espantados. Eram incapazes de compreender os sentimentos nacionalistas e a recusa a qualquer nova forma de colonialismo, apesar do ódio a Saddam Hussein. Repulsa essa enraizada em uma dolorosa história e na memória da longa ocupação britânica. A Casa Branca não ouviu os iraquianos em 2003. Estará pronta a fazê-lo agora? Não há como saber.
Os sucessos obtidos pelos Estados Unidos no Iraque nesses últimos meses, por mais parciais que sejam, permitiram a diminuição da pressão da opinião americana para a retirada das tropas e enfraqueceram as críticas internacionais. Mas essa trégua não levou o presidente Bush a mudar sua estratégia, muito pelo contrário. O mandato que as Nações Unidas haviam finalmente concedido às forças da coalizão – americanas, na realidade9 – em 2004, um ano depois do início da guerra, encerra-se em dezembro. A Casa Branca não deseja renová-lo e procura substituí-lo por um acordo bilateral. Tanto que as negociações com Bagdá devem ser concluídas antes de julho. Reina certa confusão sobre a natureza desse entendimento: o Senado quer usar seu direito de ratificar tal texto, mas a Casa Branca retruca que o acordo não deve prever explicitamente uma participação americana na defesa do Iraque ou a construção de bases permanentes, o que tornaria desnecessária a participação dos senadores.
Mas as contradições continuam: ao assinar um orçamento recorde de defesa, com 515 bilhões de dólares previstos para o ano fiscal de 2008 e de 575 bilhões para 2009, a mesma administração Bush “esclareceu” que não se sentia obrigada pelas restrições previstas no tal texto a deixar de gastar dinheiro para estacionar permanentemente bases militares no Iraque!10 Além disso, com dificuldades em fazer com que o parlamento iraquiano vote uma lei para estabelecer a privatização do petróleo, os Estados Unidos incitam o governo de Bagdá a passar por cima da oposição dos deputados e implantá-la sem voto11. Porém, a nacionalização da Iraq Petroleum Company em 1972 era, e ainda é, um dos grandes motivos de orgulho dos iraquianos, qualquer que seja sua etnia ou religião.
O principal sucesso de George W. Bush será, enfim, o de ter transformado o debate dentro dos Estados Unidos: em 2006, o fracasso parecia inevitável e hoje alguns se comprazem em acreditar na vitória. O presidente espera assim atar as mãos de seu sucessor e levá-lo a seguir o mesmo caminho, que, no entanto, é sem saída. Os sucessos de Barack Obama, candidato hostil à manutenção da presença de tropas americanas no Iraque, mostram que, mesmo no plano interno, Bush não está certo de ser bem sucedido.
*Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).