Os EUA desenvolvem a guerra do futuro
Sob críticas das outras potências nucleares, estrategistas norte-americanos esperam retomar, após as eleições, o projeto do National Missile Defense. Ao tentar estabelecer a supremacia absoluta dos EUA, ele pode desencadear uma nova corrida nuclearPaul-Marie de La Gorce
“A questão não é mais a de saber se um programa antimísseis será lançado: ele o será, com toda a certeza.” Assim se expressa Ivo Daaler [1], um dos mais importantes especialistas dos programas antimísseis, assessor da Casa Branca até 1996 e atualmente pesquisador do Brooklings Institute, em Washington. Os debates sobre o projeto National Missile Defense (NMD), no entanto, não cessaram, desde o fracasso da terceira tentativa de interceptar um míssil, em 7 de julho de 2000. Porém, as últimas decisões, ainda que só venham a ser tomadas pelo próximo presidente dos Estados Unidos, se inscreverão no âmbito da estratégia militar norte-americana que acaba de ser definida.
O debate estratégico nos Estados Unidos, iniciado com o fim da guerra fria e inscrito no item da “revolução nos assuntos militares”, assinala uma grande virada nas teorias norte-americanas sobre os conflitos futuros. [2] Essa evolução tem origem na pesquisa de conceitos operacionais derivados das novas tecnologias, que se referem, especialmente, à “aquisição” dos objetivos, à precisão à longuíssima distância, à informação permanente sobre as forças presentes e a eventuais alvos. O conceito central que terminou por prevalecer é o do “controle estratégico”.
Uma nova linguagem
Trata-se de criar as condições necessárias não para ocupar um território, mas para observar a situação do adversário, reduzir sua potência pela destruição programada de suas capacidades militares, industriais e políticas, ou seja, aniquilá-lo — conseguindo assim seu recuo ou sua capitulação. A partir daí, a ação terrestre limita-se aos objetivos escolhidos pelo governo norte-americano, ou àqueles invocados pela regulamentação política buscada por Washington, ou ainda aos exigidos pelo contexto internacional.
O “controle estratégico” se aplica, em princípio, a todos os tipos de conflito. Só deve considerar as situações locais e regionais e a natureza do adversário — ou seja, a superfície do país, sua população, seus recursos e, mais ainda, a natureza de seu regime e os meios necessários para derrubá-lo, neutralizá-lo ou isolá-lo. Este foi o contexto colocado em prática durante as guerras do Golfo, da Bósnia e de Kosovo, com os resultados esperados.
O poderio aeroespacial
Especialistas admitem, no entanto, os erros de pontaria e as imprecisões durante as operações contra o Iraque; o fracasso das baterias dirigidas em Kosovo contra o exército de Belgrado; e as dúvidas sobre os objetivos escolhidos na Sérvia e em Montenegro. Mas salientam que os progressos na eficácia dos tiros parecem indiscutíveis, se compararmos a guerra de Kosovo à guerra do Golfo, e não têm dúvidas de que maiores progressos possam ser alcançados num futuro conflito. Para eles, o mundo entrou numa nova fase da história das guerras. Parece natural, portanto, que o conceito essencial de “controle estratégico” se aplique progressiva e empiricamente, porém já com bastante eficácia para que os Estados Unidos atinjam, no essencial, seus objetivos políticos, ao preço de perdas quase insignificantes.
O instrumento básico do “controle estratégico” é o poderio aeroespacial. Este permite ao mesmo tempo ter sob os olhos, constantemente, a situação do adversário — seus meios econômicos e suas capacidades militares; vigiar seu comportamento e suas atividades; analisar continuamente as informações obtidas; delas deduzir os objetivos a serem destruídos, segundo prioridades fixadas antecipadamente; definir as missões daí resultantes; e executá-las.
Garantir a supremacia
No Iraque, os Estados Unidos conduziram uma ofensiva aérea de quarenta dias, seguida de apenas quatro dias de operações terrestres. Na Bósnia, fixaram cerca de 300 alvos, que atingiram perdendo apenas dois aviões e dois soldados; com os aliados se encarregando das operações terrestres. No Kosovo, foram necessários 78 dias de campanha aérea, que só foram plenamente eficazes contra objetivos civis situados na Sérvia, em Montenegro e no interior mesmo de Kosovo; mas os Estados Unidos não registraram qualquer baixa e suas perdas materiais se limitaram a um avião F 117 e a quinze aviões não-pilotados — pelo menos se nos fiarmos nos números do Pentágono.
Esse é o contexto do debate sobre o National Missile Defense. O projeto sucede a vários outros. Desde os projetos Bambi, Sentinel e Safeguard até a Iniciativa de Defesa Estratégica, do presidente Ronald Reagan — que previa o desenvolvimento, no espaço, de um sistema antimísseis eficaz contra mísseis adversários na parte mais alta de sua trajetória —, os Estados Unidos procuraram defender seu território contra os ataques eventuais de um adversário, enquanto mantinham a capacidade de atacar o seu território. Dessa forma, poderiam assegurar uma supremacia militar absoluta e sair da “paridade nuclear” que até então garantira a paz entre as duas superpotências.
As potências nucleares se inquietam
Não é de admirar, portanto, que os outros países dotados de armas atômicas estejam preocupados. Face ao NMD, como aos projetos precedentes, eles invocam o risco de uma retomada geral da corrida para aumentar o número de mísseis, pois os arsenais de armas nucleares estratégicas teriam perdido sua credibilidade diante de qualquer potência que se tivesse dotado, como os Estados Unidos, de um sistema antimísseis.
Por isso, desde que foi lançado o projeto espacial de sistema antimísseis do presidente Reagan, todas as potências nucleares tentaram questioná-lo. Do lado francês, os esforços se concentraram sobre a pesquisa da imprevisibilidade das trajetórias dos mísseis e sobre a furtividade que lhes daria uma trajetória de baixa altitude. Os soviéticos, à frente de um arsenal considerável, sonhavam com a solução mais simples: a saturação do sistema norte-americano pelo número de mísseis lançados simultaneamente.
Hoje, a questão envolve principalmente a China, que até agora se contenta com uma força nuclear estratégica mínima, avaliada em cerca de 60 mísseis de ogiva nuclear de longo alcance. Após o acordo Star II, que acaba de ratificar, a Rússia conservará ainda três mil armas nucleares estratégicas: continuará tendo, portanto, meios de saturar um futuro sistema antimísseis americano. Em contrapartida, para manter a credibilidade de seu arsenal militar, Pequim precisará aumentá-lo consideravelmente. Daí uma nova competição quantitativa e qualitativa que implicará, por um encadeamento previsível, a Índia, o Paquistão e o conjunto de potências nucleares do continente euro-asiático.
Além disso, os adversários do projeto NMD têm um argumento convincente: já não se pode mais atacar uma potência nuclear sem ter certeza de que sua resposta não será da mesma natureza. Essa lógica, que regia as relações entre potências nucleares na época do conflito Leste-Oeste, seria ainda mais válida para os “Estados-bandidos”, [3] cuja ameaça Washington ainda recentemente evocava. Admitindo que os “Estados-bandidos” possam efetivamente desenvolver mísseis de longo alcance e dotá-los, por exemplo, de cargas químicas, a certeza de uma resposta nuclear iria dissuadi-los radicalmente. O mecanismo de dissuasão conserva sua formidável eficácia, verificada ao longo de décadas de paz entre os rivais da guerra fria.
Uma parceria com a Rússia?
De agora em diante, nos Estados Unidos, a essa concepção clássica de dissuasão vêm se opor uma visão diferente. Elaborada inicialmente dentro de Estados-maiores e de alguns think-tanks, ela recebeu em seguida a caução do general Colin Powell, presidente da comissão de chefes de Estados-maiores por ocasião da guerra do Golfo. O candidato republicano, George W. Bush, a retomou, por sua vez, numa intervenção no National Press Club, em Washington, no dia 23 de maio de 2000, tendo a seu lado o general Powell…
Essa estratégia se fundamenta sobre a superioridade absoluta adquirida pelos Estados Unidos em todos os domínios da defesa. Seus partidários deduzem daí que o interesse norte-americano consiste em se desviar das idéias de dissuasão mútua e de paridade nuclear próprias ao período da guerra fria. Para eles, é preciso ir tão longe quanto possível na redução dos arsenais militares, e até oferecer à Rússia a possibilidade de compartilhar as capacidades de defesa anti-mísseis com que os Estados Unidos querem se dotar. Porque a Rússia, dizem eles, não poderia atacar os Estados Unidos, por temer uma resposta da mesma natureza. Mas os Estados Unidos não têm mais interesse em atacá-la com seus meios nucleares que, acrescentam, poderiam ser restringidos; ainda que apenas em razão da menor superfície da Rússia e do desaparecimento de alvos visados, até pouco tempo atrás, nas zonas industriais da Bielorússia e da Ucrânia e nas regiões petrolíferas do Cáucaso.
Uma centena de mísseis antimísseis
As principais orientações do esforço militar norte-americano poderiam ser assim revistas, para que a prioridade se concentrasse sobre o poder aeroespacial — que, como vimos, é o instrumento essencial do “controle estratégico”. Ao mesmo tempo, os partidários do NMD vêem um argumento suplementar e capital para defender o solo norte-americano através de um sistema antimísseis que garanta sua invulnerabilidade. É lógico que os mísseis poderiam ser lançados do mar, a bordo de navios de superfície ou de submarinos lança-mísseis, ou ainda de bases aéreas em outras partes do mundo, mas esses nada mais seriam do que pontos de apoio: a profundidade estratégica necessária para tal poder aeroespacial só existe, dizem eles, no próprio território dos Estados Unidos.
Daí o projeto atual, que se apóia numa centena de mísseis antimísseis cujas bases de lançamento estariam no Estados do Alaska e Dakota do Norte. Da mesma forma, um sistema antimísseis “fictício” [4] poderia defender as zonas vitais dos aliados dos Estados Unidos, as regiões vulneráveis em caso de conflito e, naturalmente, as posições aéreas e navais norte-americanas no exterior.
Os “Estados bandidos”
Essa concepção se apóia também na nova visão do contexto estratégico internacional segundo a qual a Ásia constitui o centro das preocupações estratégicas norte-americanas. Não faltam razões para essa mudança de objetivos: o crescimento do poder da China; a vontade da Índia de contar também como grande potência; a rivalidade tradicional desta contra o Paquistão; a necessidade do Japão de assegurar sua segurança numa parte do mundo onde a relação de forças está mudando; a instabilidade da Ásia russa; a fragilidade relativa de diversos regimes do Sudeste asiático; a imprevisibilidade das relações entre as duas Coréias…
É ali, portanto, que os sistemas antimísseis devem assegurar prioritariamente a proteção das zonas que os Estados Unidos julgam importantes, diante de adversários atualmente imprevisíveis.
O projeto NMD não foi recolocado em questão pela evolução dos Estados considerados por longo tempo como “Estados bandidos”. No entanto, a Coréia do Norte abriu caminho para sua reaproximação com a Coréia do Sul e, por intermédio do presidente russo Vladimir Putin, propôs uma negociação a respeito do futuro de seu próprio programa de mísseis balísticos. Quanto à Líbia, retornou ao primeiro plano da cena africana e, em certa medida, à cena internacional, com seu projeto de reforma da Organização da Unidade Africana (OUA) e da união do continente africano. A comissão das Nações Unidas para o desarmamento do Iraque (Unscom) reconheceu a destruição da quase totalidade dos mísseis de longo alcance. O Irã, por sua vez, mantém relações normais com o Japão e os Estados da Europa, e as forças políticas moderadas se esforçam para consolidar seu poder. O projeto NMD se inscreve, portanto, numa perspectiva bem mais ampla do que o combate aos “Estados bandidos”.
Roteiros de conflitos
Vários documentos, facilmente decifráveis, o demonstram. O mais importante deles teve publicada uma versão, no começo de junho de 2000, sob o título Joint Vision 2020. Proveniente diretamente do Pentágono — mais precisamente, da Comissão de Chefes de Estados-maiores — o documento designa a China como futuro adversário, embora no texto público ela seja qualificada apenas como “peer competitor” (rival do mesmo nível).
Quase todos os roteiros de conflitos estudados no Pentágono e nos Estados-maiores se concentram na cena asiática. O Irã se tornará uma potência agressiva, com capacidade nuclear e um arsenal de mísseis? A Índia e o Paquistão iniciarão uma guerra nuclear? O Paquistão e suas armas nucleares cairão nas mãos dos taliban afegãos? Mas o mais significativo parece ser a posição tomada — em favor de priorizar os riscos asiáticos — pelo general Anthony Zinni, considerado um dos mais importantes chefes militares norte-americanos, numa intervenção diante do Army Science Board. [5]
Para os adeptos do NMD, as hesitações do governo Clinton, sejam quais forem, não fazem diferença: a escolha pertencerá, de qualquer forma, à próxima administração e é com ela que eles contam. É evidente que o projeto do escudo antimísseis suscita críticas. Inúmeros relatórios ressaltam, principalmente, sua imprevisibilidade técnica, demonstrada pelo fracasso da experiência de julho: tais como o remetido ao Pentágono por um grupo de especialistas, dirigido por um ex-chefe de Estado-maior da Aeronáutica, o general Larry Welch; ou ainda o do General Accounting Office, um órgão dependente do Congresso norte-americano, publicado em 19 de junho. Todos insistem na permeabilidade de qualquer sistema antimísseis, nas possibilidades práticas de contorná-lo — especialmente a baixa altitude — e de confundir seus radares. [6] Alguns denunciam o caráter aleatório e duvidoso dos programas de mísseis norte-coreanos e mesmo iranianos. [7] Mas os partidários do sistema a