Os freios da autodeterminação dos povos
Os direitos humanos são regras de observância obrigatória por todos os Estados. Em sendo o tratamento dispensado pelo Talibã às minorias de seu país avesso aos direitos mais elementares, sua existência como política de Estado não encontra guarida no princípio de autogoverno
A autodeterminação dos povos compõe o extenso rol de princípios gerais que, alçados à condição de norma vinculante pelo artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, constituem premissa básica de regência das relações políticas, sociais, culturais e jurídicas estabelecidas entre os diferentes atores da cena política internacional.
Ao tempo da ratificação do Estatuto, que coincide com a fundação da ONU, urgia entre seus Estados signatários a necessidade de finalmente pôr em prática a almejada política da boa vizinhança, cuja falência, bem se descobriu, dragou a comunidade internacional para dois conflitos bélicos de proporções mundiais.
Incumbidos da promessa de substituir o uso da força pela autocomposição, coube aos Estados estabelecerem a autodeterminação dos povos como princípio fundante das relações internacionais. Uma vez normatizado o princípio de autogestão na legislação internacional (mais precisamente, a partir do advento da Carta das Nações Unidas), ratificou-se o mútuo compromisso de assegurar e fazer respeitar a capacidade dos povos de governarem a si mesmos, condenando, com isso, ingerências externas descabidas que pudessem escalar para os injustos e odiosos conflitos armados. Isso quer dizer, em outras palavras, que Estados se comprometiam a respeitar a forma de organização política e cultural de cada povo, abstendo-se de impor-lhes desvios autoritários que, subjugando sua capacidade de autogoverno, manejassem seus próprios valores e tradições ao sabor de aspirações políticas e econômicas particulares.
Engana-se, todavia, quem pensa ser a autodeterminação meio de ação absoluto e irrefreável, posta a serviço de dogmas políticos totalitários que não escondem a sanha de minar direitos em favor de valores alheios às inafastáveis liberdades fundamentais e regras de boa conduta que devem pautar as relações entre países e indivíduos. O direito de autogoverno de um povo não representa salvo conduto aos que transitoriamente personificam seu poder, justamente porque justapõe os princípios gerais de respeito à dignidade humana e solução pacífica de controvérsias, edificando no centro das atenções a promoção do ser humano como senhor de si e sujeito político por excelência.
Assim como a Física estipula o princípio segundo o qual a toda reação corresponde uma ação prévia, para o Direito é igualmente certo que a toda e qualquer liberdade corresponde um outro direito que lhe serve de limite e contrapeso, interação esta da qual exsurgem conflitos de interesses que somente se contornam com a conjunção e adaptação instituída pela composição – seja ela diplomática ou judicante. Em sua obra Era dos Direitos, Bobbio registra que o exercício de cada liberdade encontra um limite insuperável na tutela de outro direito que lhe seja concorrente. Transportado tal mandamento ao igualmente fundamental direito de governo próprio e independente, sua aplicação encontra limite no respeito aos demais direitos humanos, cuja fruição, cumpre salientar, constitui o próprio fim e fundamento de sua autodeterminação política. É razoável supor que assim seja, haja vista ser inconcebível supor que determinado sistema de autogoverno, inerente à constituição de cada país, pregue a dilapidação dos direitos de sua própria sociedade como expressão de escolhas políticas de governo que deveriam espelhar seus interesses.
Como projeção de sua soberania, pode o Estado, constituído de acordo com os interesses de seu povo, eleger a forma de organização política que lhe aprouver, bem como definir as prioridades culturais, educacionais, econômicas e sociais que julgar conveniente, desde que, nesse processo, não solape direitos fundamentais. Nisso se inclui, por exemplo, preservar a liberdade que cada indíviduo possui de professar sua própria crença religiosa, promover a igualdade formal das pessoas perante a lei, bem como sua igualdade material de acesso a bens e direitos públicos, garantir a liberdade de expressão e reunião e, finalmente, punir quem disseminar discursos de ódio contra pessoas por sua raça, religião, orientação sexual e condição econômica.
A liberdade de um governo opera em função da liberdade de seu povo. Se a autodeterminação não se coadunar com a ótica dos governados (incluído também o direito de sua minoria), o princípio que lhe reveste perde sua coesão, dispersando a função precípua que possui de embasar a governança interna de um país. Segundo Thomas Paine, o pacto firmado entre indivíduos, por força de seu direito pessoal e soberano, é o único modo de fazer surgir um governo legítimo. Tal direito não se suprime do indíviduo, posto que tudo o que pertence à natureza humana não pode ser aniquilado pelo homem. Sua colocação, colhida no século XVIII, conserva a força de sua verdade, embora pareça descolada da realidade de muitos países da atualidade.
A partir do objeto da reflexão que aqui se propõe, registram-se exemplos mais práticos. Após duas décadas de ocupação norte-americana no território, o Afeganistão volta a ser controlado pelo Talibã, grupo paramilitar que se autodeclara titular do direito de governar o país em conformidade com valores religiosos tanto mais severos quanto intransigentes. Partindo-se da premissa de que a comunidade internacional é composta de Estados soberanos em sua escolha de organização política, não há o que se opor ao discurso ideológico que, atribuindo ao jugo imperialista americano e colonialista europeu as mazelas do povo afegão, é utilizado para justificar a tomada do poder.

É no processo de tomada e estabelecimento de tal poder político que reside o conflito de direitos acima introduzido. Ao remodelar a forma de governo do país, o Talibã restituiu a lei islâmica, cuja aplicação, durante a primeira passagem do grupo ao poder (1996-2001), confrontou ferrenhamente premissas básicas de respeito a liberdades e poderes fundamentais, sobretudo de grupos vulneráveis como meninas e mulheres. A governança instituída pela comunidade internacional a partir da criação da ONU propugna o direito de pessoas oprimidas se insurgirem contra seus opressores, rompendo a ordem constituída injustamente em um processo de resistência e contestação. A história revela, porém, ser tal prática incompatível com o inflexível modus operandi dos antigos gestores (e hoje novamente comandantes) da política interna do Afeganistão. Além da repressão política que lhe é inerente, aos relatos de opressão praticada contra mulheres unicamente por sua condição de mulher se seguem repetidas notícias de ataques sistemáticos a liberdades de crianças e membros da comunidade LGBTQIA+. A lista é longa, porém não exaustiva: mulheres são proibidas de trabalhar e estudar, circular em espaços públicos sem a presença de acompanhante do sexo masculino, assim como impedidas de viajar para o exterior sem a autorização do chefe (sempre homem) da família; estas mesmas mulheres também são punidas com castigos físicos, ou mesmo pena capital, se recusarem o uso da burca ou forem acusadas de adultério; por sua vez, meninas são impedidas de frequentar escolas ao mesmo tempo em que são utilizadas como armas de guerra, sendo retiradas de suas famílias para servirem de escravas sexuais aos soldados talibãs; por fim, homens pertencentes à comunidade LGBTQIA+ são perseguidos, torturados e executados unicamente por sua orientação sexual.
Caso o Estado sofra intervenções descabidas por parte de países terceiros, é dado ao seu governo reagir em condições proporcionais ao agravo sofrido. Isto não se discute, sobretudo pela força do princípio que projeta a autonomia do povo na Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais, de 1960 (lembrando-se que o Afeganistão foi colônia inglesa até 1919): “a sujeição dos povos ao domínio estrangeiro é uma negação dos direitos fundamentais do homem”. Contudo, se a intervenção da comunidade internacional se fundar em reivindicações justas que partam de populações oprimidas, tal ingerência se torna justa porque sua assistência passa a ser necessária. Na situação afegã, em que a parte vítima não detém condições de se insurgir para fazer valer seus interesses, a opção por aplicar ou não as tais políticas fundamentalistas fundadas na sistemática violação de direitos jamais poderá ficar a cargo do domínio reservado do Estado transgressor.
A título de comparação, os países americanos e europeus que cedem espaço à jurisdição de suas respectivas Cortes Regionais de Direitos Humanos assim o fazem justamente nas hipóteses em que seus próprios órgãos judicantes falham em colocar indivíduos a salvo de violações a direitos humanos em seu território. Nem por isso se cogita que a instituição de tais Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos violaria o princípio da não-intervenção e da autodeterminação dos povos. No caso em questão, a insurgência da comunidade internacional às atrocidades estruturais propugnadas pelo Talibã também não deveria causar espécie aos defensores do princípio da não-intervenção. A violação sistemática a direitos de que se tem notícia no Afeganistão não se sujeita ao crivo da jurisdição interna do país, justamente porque deriva seu fundamento da própria lei que o grupo optou por aplicar ao ascender ao poder. Por essa razão, compete aos órgãos internacionais habilitados em matéria de proteção dos direitos humanos fazer uso de sua atividade de controle para obter garantias palpáveis de que a nova governança do Talibã será subserviente aos poderes e liberdades de seu povo, que têm o direito de reivindicar seu exercício por serem a única fonte da qual emana a constituição política de seu Estado.
Não cabe à “boa vontade” do Talibã a escolha sobre respeitar ou não liberdades fundamentais, porque tal seara não recai sobre o domínio que é conferido ao Estado de decidir livremente, mas antes compõe a ideia contemporânea de tutela global dos direitos humanos. Em outras palavras, o respeito genuíno aos direitos humanos concretiza os valores universais compartilhados pela comunidade internacional, sendo defeso a qualquer Estado refutá-lo sistematicamente, seja por qual motivo for. Nos casos de violação a direitos no Afeganistão, a linha entre o lícito e o intolerável nitidamente se rompeu e os valores de respeito aos direitos humanos devem ser recuperados com urgência. Para se alcançar o desenvolvimento econômico e o progresso social, é preciso zelar pela paz mundial, a qual somente se alcança com um sistema de garantias a partir do qual emane o verdadeiro autogoverno de cada povo. Embora premissa fundamental da ordem internacional que incorpora na política externa o princípio da boa vizinhança, a autodeterminação não se exerce de maneira desimpedida, sob pena de forjar sistemas políticos e culturais hostis aos direitos das minorias.
Levadas às últimas consequências, direitos humanos são regras de observância obrigatória por todos os Estados, independentemente de seu reconhecimento formal pelo processo de assinatura e ratificação. Em sendo o tratamento dispensado pelo Talibã às minorias de seu país avesso aos direitos mais elementares, sua existência como política de Estado não encontra guarida no princípio de autogoverno, forjando-se à revelia de qualquer fundamento de amparo na ordem internacional. Segundo Comparato, “a proteção aos direitos fundamentais do homem é considerada assunto de legítimo interesse internacional, pelo fato de dizer respeito a toda humanidade”. Mazzuoli arremata: “Não existem direitos humanos globais, internacionais e universais, sem uma soberania flexibilizada, [sem a qual não haveria] projeção desses direitos na agenda internacional”. Resta saber se a ordem reinante no Afeganistão será flexível e moderada pela ótica da supremacia dos direitos humanos ou se estes ficarão novamente na gaveta da história desse povo que há muito desconhece o verdadeiro significado da palavra autodeterminação.
Bruno Andreoli Vargas de Almeida Braga é advogado especialista em Direito da Criança e do Adolescente, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Universidade Jean Moulin –Lyon III (França), mestrando em Direitos Humanos pela Queen Mary University of London, Inglaterra.