Os ideólogos de Jair Bolsonaro
Tanto Paulo Guedes como Olavo de Carvalho são representativos de uma amálgama ultraliberal conservadora defendida por um corpo amplo de ideólogos que passaram a assumir postos-chave na atual administração e atuam com base em um grau razoável de coesão em torno de duas ideias principais: “privatizar tudo” e “combater a hegemonia cultural esquerdista”
Quando Jair Bolsonaro se apresentou como pré-candidato às eleições presidenciais de 2018, a maior parte dos analistas políticos não tinha dúvidas de que ele jamais seria eleito. Seriam determinantes para seu fracasso a falta de tempo na televisão, a ausência de estrutura partidária, os escassos recursos materiais para levar a cabo sua campanha e o fato de que suas propostas para o país seriam muito frágeis, de modo que o candidato poderia ser facilmente desconstruído por seus oponentes e por uma maior exposição na mídia durante a corrida eleitoral. De fato, para além da retórica antissistema, do antipetismo radical e do discurso contra a corrupção, as poucas políticas públicas que Bolsonaro defendia enfaticamente se limitavam ao combate da adoção de materiais didáticos considerados impróprios, ao anúncio de que facilitaria a posse de armas para o cidadão comum e à possibilidade de o Brasil se beneficiar da exploração de nióbio. A despeito disso, sua candidatura era uma das únicas que realmente estavam assentadas em um projeto ambicioso e radical para o país e que pouco foi discutido durante seu curto período de campanha: a reestruturação da economia de acordo com um cânone ultraliberal e a eliminação de todo e qualquer traço de uma suposta “hegemonia cultural esquerdista”, que teria atingido seu auge durante os governos do PT.
Logo após a vitória do militar, as atenções dos desnorteados observadores da política nacional se voltaram para duas das figuras mais representativas de tal agenda: Paulo Guedes e Olavo de Carvalho. Tanto o primeiro como o segundo são, como o próprio presidente recém-empossado, personagens tidos como polêmicos e pouco flexíveis, o que começou a alimentar em alguns meios uma percepção de que o programa que defendem jamais será colocado em prática de fato (do mesmo modo como a eleição de Bolsonaro jamais ocorreria…). Contudo, assim como Bolsonaro se tornou líder de um movimento político mais amplo que abrange partidos, movimentos sociais e lideranças políticas diversas, Guedes e Carvalho não atuam de modo isolado. Ambos são representativos de uma amálgama ultraliberal conservadora que é defendida por um corpo mais amplo de ideólogos que passaram a assumir postos-chave na atual administração e/ou atuam na sociedade civil, com base em um grau razoável de coesão em torno de duas ideias principais: “privatizar tudo” e “combater a hegemonia cultural esquerdista”.
A ideia de “privatizar tudo” passou a fazer parte do discurso de Jair Bolsonaro, ainda que de forma tímida, logo após seu ingresso no Partido Social Cristão (PSC), no início de 2016. Em março de 2015, a Campanha Pró-Impeachment de Dilma Rousseff havia experimentado um pico em termos de mobilização popular e, em abril do mesmo ano, o então deputado federal, atento à dinâmica política e social que lhe parecia ser cada vez mais favorável, resolveu anunciar sua desfiliação do Partido Progressista com a intenção de alçar voos mais altos em direção ao Senado ou à Presidência em 2018, e logo encontrou guarida no partido liderado pelo pastor Everaldo.
Everaldo havia concorrido à Presidência em 2014 com o bordão “Privatiza tudo!”, elaborado por Bernardo Santoro, jovem advogado e então diretor do Instituto Liberal do Rio de Janeiro. O Instituto Liberal foi fundado por um rico empresário de origem canadense em 1983; porém, na época da campanha de Everaldo, experimentava uma decadência acentuada e se apoiava mais no entusiasmo militante de seu reduzido staff do que em seus parcos recursos materiais. Santoro, assim como o presidente do instituto, o economista Rodrigo Constantino, militava havia anos na internet e fora dela em prol de uma defesa radical do capitalismo de livre-mercado: o ultraliberalismo, corrente de pensamento econômico associada à chamada Escola Austríaca de Economia.
Passada a campanha de Everaldo, Santoro concentrou seus esforços em influenciar ativamente Jair Bolsonaro e seus filhos para que aderissem ao radicalismo de mercado quando estes passaram a fazer parte do PSC, no início de 2016. Na época, o capitão da reserva era visto pelos defensores do livre-mercado como um adepto inflexível do desenvolvimentismo nacionalista vigente na ditadura militar; porém, o jovem advogado não desistiu.
Em março daquele mesmo ano, Eduardo Bolsonaro anunciou sua matrícula na primeira turma de pós-graduação em Economia Austríaca oferecida pelo Instituto Mises Brasil (IMB), fundado em 2006 e logo alçado à principal referência institucional da militância ultraliberal brasileira. Além disso, Flávio Bolsonaro, que atuava como deputado estadual no Rio de Janeiro, resolveu se lançar à prefeitura da cidade nas eleições daquele ano com um discurso estritamente alinhado às pautas defendidas por Santoro, que passou a acompanhar o candidato em praticamente todos os eventos de campanha.
Em comparação com seus filhos, Jair Bolsonaro parecia ser mais refratário ao radicalismo de mercado, mas passou a participar como pré-candidato à Presidência de alguns eventos promovidos pelo circuito brasileiro de organizações pró-mercado e, em 2017, foi apresentado pelo empresário Winston Ling, fundador do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), ao economista Paulo Guedes. Guedes, assim como Ling, também foi fundador de uma organização pró-mercado, o Instituto Millenium, criado entre 2005 e 2006 na cidade do Rio de Janeiro com a ajuda de Rodrigo Constantino e de Hélio Beltrão Jr., presidente do IMB, onde Eduardo Bolsonaro cursava a pós-graduação.
Ao mesmo tempo que o capitão-candidato procurava contornar as desconfianças que continuava a suscitar entre os defensores do livre-mercado, cresciam as tensões com as lideranças de seu novo partido, que vinham sacrificando as pautas defendidas publicamente por Bolsonaro em nome do pragmatismo político. Sem maiores delongas, em agosto de 2017 foi anunciada oficialmente a migração da família para o Partido Ecológico Nacional, que mudou seu nome para Partido Patriota. Na condição de secretário-geral do Patriota, Bernardo Santoro apresentou a Bolsonaro um economista conhecido no circuito pró-mercado, Adolfo Sachsida, doutor pela Universidade de Brasília e funcionário de carreira do Ipea, que, a pedido de Santoro, montou um grupo de onze economistas que semanalmente passaram a trocar ideias com o político.
As resistências dos defensores do livre-mercado em relação a Jair Bolsonaro pareciam começar a ceder aos poucos e, em dezembro de 2017, o nome de Paulo Guedes foi sugerido publicamente por Constantino para ocupar o Ministério da Fazenda em um possível governo do militar. Contudo, no início de 2018, o pré-candidato resolveu romper com o Patriota e se filiar ao Partido Social Liberal (PSL) sem nem mesmo comunicar Santoro, que ficou sabendo do ocorrido pelos jornais. A filiação-relâmpago ao novo partido logo causou imenso desconforto entre os militantes antibolsonaristas do PSL, reunidos na tendência LIVRES desde 2016 e que deixaram o partido logo após seu ingresso. O pré-candidato ainda causaria mais um choque no circuito pró-mercado ao recusar a participação no debate presidencial promovido naquele ano pelo Fórum da Liberdade, evento anual organizado pelo IEE.
Com a intenção de afastar as desconfianças suscitadas por tais movimentações bruscas, Bolsonaro resolveu de uma vez por todas selar sua aliança com os defensores do livre-mercado ao apontar Paulo Guedes como seu futuro ministro da Fazenda, ainda no primeiro semestre de 2018. Assim, a despeito de toda sorte de suspeitas, tensões e ressentimentos, praticamente toda a militância pró-mercado brasileira apoiou de forma ativa sua campanha presidencial, incluindo Bernardo Santoro, que atuou como coordenador do plano de governo do candidato do PSC, Wilson Witzel, e recentemente se tornou assessor especial da Casa Civil do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Assim, ainda que Santoro não tenha acompanhado Bolsonaro até sua chegada ao Executivo, seus esforços não foram em vão, já que a equipe liderada por Paulo Guedes, da qual fazem parte Sachsida e vários nomes ligados ao circuito pró-mercado, como Sallim Mattar, Paulo Uebel, Rubem Novaes, entre outros, está completamente unificada em torno do mote elaborado há mais de quatro anos pelo jovem advogado: “Privatiza tudo!”.
Já o combate à suposta hegemonia cultural esquerdista encontra seu principal estrategista em Olavo de Carvalho, escritor que tem sido apontado como um dos mais influentes personagens do governo, apesar de ter recusado indicações para ministérios. Às alusões de que seria o principal “ideólogo” de Bolsonaro, Carvalho alega ter tido poucos contatos com o presidente, que seria apenas mais um entre os milhares de admiradores de sua obra.
A aura de guia da nova direita brasileira atribuída a Carvalho pode ser considerada um dos resultados de seu inegável pioneirismo, na medida em que foi dos primeiros conservadores brasileiros a perceber que o centro da disputa política havia se deslocado para temas morais. Ainda em 1994, em seu livro A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci1 (IAL & Stella Caymmi, Rio de Janeiro, 1993), o autodenominado filósofo chamava a atenção para um suposto predomínio da esquerda na vida cultural do país. Segundo a historiografia proposta no livro, os comunistas brasileiros teriam desistido da via armada fracassada e passado a concentrar seus esforços em disputar a hegemonia cultural no âmbito da sociedade civil, seguindo à risca a formulação do marxista Antonio Gramsci.
Focados na luta armada, os militares teriam sido coniventes com a ocupação por parte da esquerda de universidades, jornais, editoras e outras associações civis como forma de construir um consenso social em torno de suas propostas. Com o passar dos anos, os esquerdistas teriam obtido sucesso em assumir a direção intelectual da maior parte dos espaços de disputa da sociedade civil, com destaque para as universidades e a mídia tradicional, particularmente decisivas no sorrateiro processo de contaminação da vida social destinado a implementar uma ditadura comunista no país, ao mesmo tempo que teriam silenciado vozes divergentes, justificando assim a narrativa de resistência adotada pela direita brasileira contemporânea.
Carvalho provou ser um comunicador extremamente hábil ao dominar a utilização de novas linguagens e plataformas digitais para apresentar aos seus seguidores suas ideias e apontar um inimigo comum que pudesse dar sentido à luta que anunciava. E foi assim que, nos últimos quinze anos, se difundiu entre a nova direita em formação uma leitura das ideias de Gramsci maleável o suficiente para viabilizar a interpretação de qualquer acontecimento social dentro de um enquadramento binário em que a esquerda seria um mal a ser combatido. Essa atualização do anticomunismo não apenas tornava a complexidade da vida social compreensível para um número maior de pessoas, como também fornecia uma justificativa para o engajamento de conservadores na luta pela preservação de conquistas civilizacionais ameaçadas.
Olavo de Carvalho, porém, não foi apenas pioneiro na difusão teórica de seus argumentos, mas também se dedicou a combater a esquerda com as mesmas armas adotadas por Gramsci, adaptadas para a era digital. Assim, quando a popularidade de Dilma Rousseff passou a ruir a partir das Jornadas de Junho de 2013, o escritor já havia criado uma rede de comunicação alternativa na internet suficientemente ampla para acolher uma geração de jovens unidos pelo repúdio a formas tradicionais de representação e por um sentimento comum de silenciamento diante do “politicamente correto”. Ao romper com a mídia tradicional, ainda no fim dos anos 1990, Carvalho enxergou na internet a arena fundamental de disputa de hegemonia na sociedade contemporânea e passou a difundir suas ideias e a articular militantes por meio de sites, redes sociais e de seu Curso Online de Filosofia, pelo qual teriam passado mais 20 mil alunos.
Atualmente, o escritor conta com mais de meio milhão de seguidores no Twitter, Facebook e YouTube, entre os quais estão a família Bolsonaro e discípulos fieis às suas ideias que acabaram sendo indicados para postos-chave no novo governo – fato que parece ter pegado a mídia de surpresa, apesar de Jair Bolsonaro ter dado pistas ao deixar sobre a mesa um dos best-sellers do escritor em seu primeiro pronunciamento após a vitória nas urnas. O termo “discípulo”, comumente utilizado como desqualificação, não soa exagerado quando Ernesto Araújo é o personagem em questão. Em artigo recém-publicado, o novo ministro das Relações Exteriores afirmou, por exemplo, que a “Divina Providência” havia guiado o Brasil ao reunir “as ideias de Olavo de Carvalho com a determinação e o patriotismo de Bolsonaro”.1
De acordo com Araújo, Carvalho teria sido um dos primeiros a compreender a gravidade do “globalismo”, que implicaria a retirada do poder do povo para entregá-lo nas mãos de uma elite cosmopolita. Tal elite seria reduzida em termos numéricos, mas heterogênea o suficiente para comportar tanto comunistas quanto megainvestidores como George Soros, daí a necessidade de alinhar o Brasil a outras forças conservadoras emergentes, como a Hungria de Viktor Orbán, num esforço de combater a lógica globalista, como propõe o atual ministro.
No entanto, é na área da educação que o escritor deve deixar sua principal marca, tendo indicado não somente o secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, como também o ministro Ricardo Vélez Rodriguez, discípulo de antigos intelectuais conservadores brasileiros, como o filósofo Antonio Paim e o já falecido jurista Miguel Reale. Tanto Nadalim como Rodriguez já se mostraram bastante comprometidos com o combate à “doutrinação marxista” e à difusão da “ideologia de gênero”, tidas como duas ameaças graves à sociedade brasileira e mencionadas pelo presidente em seu discurso de posse.
Evitando se comprometer diretamente com a política institucional, Carvalho tem, por meio dessas indicações, a chance de influenciar a implementação de políticas públicas por ele defendidas, que visam à construção de um novo consenso social no que tange à educação no país: a eliminação da pedagogia emancipatória de Paulo Freire; o questionamento do papel educador do Estado estabelecido pela Constituição de 1988; e o financiamento do sistema de ensino por instituições privadas. É nesse último ponto crítico que a reforma cultural conservadora proposta por Carvalho e o “Privatiza tudo!” de Paulo Guedes se fundem de forma mais coesa, lançando dúvidas sobre a esperança da esquerda de que um possível fracasso do novo governo seja suficiente para retirar a agenda ultraliberal conservadora do horizonte de disputas nacionais.
*Camila Rocha é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo; Leo Puglia é doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.