Os imigrantes da “geração Windrush” e o surgimento da música negra no coração do Império Britânico
Reanimado pela força atual do “Black Lives Matter” e dos problemas vividos pela população negra nos EUA, é importante dizer, porém, que o racismo nasceu na Europa. Das exortações de Lutero nos “Judeus e Suas Mentiras” às leis contra a vagabundagem, numa Inglaterra que se preparava para a Revolução Industrial, o racismo cozinhou em fogo baixo por séculos
Em junho de 2020, em meio à maior crise sanitária em escala global dos últimos cem anos, alastrou-se por todo o mundo, de forma virulenta, uma onda de protestos antirracistas. O motivo disparador foi o assassinato cruel de George Floyd, cometido pela polícia estadunidense na cidade de Mineápolis, no dia 25 de maio. As imagens amplamente divulgadas do joelho branco do policial sobre o pescoço negro de Floyd fizeram o mundo relembrar que a falta de ar não é sintoma exclusivo da Covid-19.
Apesar dos mecanismos atualizados da supremacia branca – materializados, entre outros, no desenvolvimento de algoritmos policiais, vigilância preditiva e na arquitetura de um sistema de endividamento predatório, que sufoca os mais pobres –, o encarceramento e a violência gratuita sobre o negro, promovida, principalmente, pelas forças de Estado, como afirma a autora Jackie Wang em seu mais recente livro, Capitalismo Carcerário[1], representam um continuum em toda a história do capitalismo. A asfixia sentida pela população negra tem séculos de história e é resultado das necessidades econômicas presentes já na formação do sistema colonial. Desde a fase inicial do capitalismo, o negro virou refém dos demonstrativos financeiros que provaram que o tráfico negreiro no Atlântico era bastante lucrativo às metrópoles europeias.[2] O traficante, por sua vez, se transformou no que hoje convencionamos chamar de “homem bem sucedido” e, por séculos, habitou nomes de ruas e avenidas, forneceu o rosto aos retratos de salões imperiais e corporificou bustos e estátuas espalhados em museus e praças das principais cidades do mundo. No entanto, no dia 7 de junho de 2020, a estátua do bem sucedido traficante de escravos do século XVII, Edward Colston, foi arremessada por manifestantes no rio que corta a cidade de Bristol, na Inglaterra, dando início a uma extensa discussão sobre a presença pública desses monumentos históricos.
Reanimado pela força atual do “Black Lives Matter” e dos problemas vividos pela população negra nos Estados Unidos, é importante dizer, porém, que o racismo nasceu na Europa. Das exortações de Lutero nos “Judeus e Suas Mentiras” às leis contra a vagabundagem, numa Inglaterra que se preparava para a Revolução Industrial, o racismo cozinhou em fogo baixo por séculos. Até que um dia, há 73 anos, nas docas de Tilbury, no Rio Tâmisa, norte de Londres, pela primeira vez uma tripulação inteiramente negra aportava para residir na Inglaterra. Dali em diante, a confrontação com as questões raciais deixou de ser mero assunto do além-mar ou dos livros de contabilidade das companhias das Índias Ocidentais e, junto com a música do Caribe, passou a fazer parte do cotidiano da sociedade britânica.
Em junho de 1948, desembarcava na Inglaterra um dos maiores representantes de todos os tempos do estilo musical do calypso. Ele ficou conhecido como Lord Kitchener e sua misteriosa chegada a bordo do navio Empire Windrush representa um marco para toda a influência negra na música produzida na Inglaterra. Podemos dizer, inclusive, que as cenas musicais do ska 2-tone e do reggae-punk, populares no fim dos anos 1970/início dos 1980, são filhas legítimas dos imigrantes desse navio.[3] Não só na música, entretanto, a chegada do navio – e do que ficou conhecido como Windrush Generation[4] – tornou-se um divisor de águas para a sociedade britânica, elevando o tom dos embates raciais que ganharam força dali em diante.
A vinda do navio já é consequência de uma alteração nas leis que regiam a questão da imigração em solo inglês. O Ato de Nacionalidade Britânico de 1948 foi uma tentativa de definir o que é “ser britânico”, através da lei. Esse ato reafirmou direitos que as “Common Law” inglesas já tinham definido há séculos, mas que então permitiram que os indivíduos da recém formada “Commonwealth” (a Comunidade Britânica das Nações, que segue subordinada à Coroa inglesa) circulassem livremente entre os países do Império Britânico. Na letra da lei, o ato de 1948 dava direitos iguais a todos os povos da “Commonwealth”, incluindo países de população negra, branca ou amarela. Nas entrelinhas, porém, o que de fato se buscava era um fortalecimento dos laços comerciais e populacionais das antigas colônias predominantemente brancas, como Canadá, Austrália e Nova Zelândia. O que a burocracia inglesa daquele momento não imaginava é que as populações “black and brown” provenientes da África, Ásia e das Índias Ocidentais usariam desse mesmo direito incluído no “Ato de 1948” para migrar para a “Mother Country”. Os primeiros a fazerem isso foram os ex-soldados negros das West Indies, que estiveram na Inglaterra lutando para garantir a sobrevivência da Coroa contra os nazistas. Eles voltariam – como força de trabalho barata – para somar forças no processo de reconstrução do país após a Segunda Guerra.
O Empire Windrush, antes de ser propriedade da Coroa britânica, havia sido um navio de guerra nazista. Originalmente chamado MV Monte Rosa, foi construído entre 1924 e 1931 para servir à companhia Hamburg Süd em suas rotas comerciais com a América do Sul, inclusive levando imigrantes alemães para a Argentina. Mas com o estabelecimento do regime nazista e a deflagração da guerra, foi usado para o transporte de tropas do Terceiro Reich, assim como para a deportação de judeus em rota nórdica, tendo como destino Auschwitz. Já no fim da guerra, em 1945, a Marinha britânica tomou o navio de assalto no porto de Kiel, e se apossou dele como prêmio de guerra. Assim, rebatizou-o como Empire Windrush, quer dizer: “Ventania do Império”. “Windrush”, contudo, também poderia ser interpretado como “a corrida dos West Indies”, como as abreviações indicam e como os ventos que sopraram nessa época nos fazem entender.
Ao final de 1947, o Empire Windrush encostou nos portos ingleses com o intuito de levar de volta, aos países de origem, os soldados negros sobreviventes da Guerra, já desmobilizados pelo fim dos combates. Contudo, depois de fazer a viagem – e para não voltar vazio após o serviço de “delivery” em terras tropicais daqueles que o Reino Unido já não precisava mais –, o staff do mesmo navio fez um anúncio no jornal de Kingston (capital da Jamaica), oferecendo passagens para a Inglaterra por 28 libras esterlinas. Os quatro meses que o navio ficou aportado no Caribe foram suficientes para que os antigos soldados percebessem que não haveria oportunidade de emprego na Jamaica. Outros conterrâneos também embarcaram na ideia. Era preciso tentar a sorte!
Ainda em águas caribenhas, o Empire Windrush já amedrontava a Coroa pela promessa do refluxo negro para a capital do Império. Um telegrama do dia 11 de maio de 1948, enviado em caráter de urgência, desde a Administração do Governo Colonial na Jamaica para o Escritório Colonial na Inglaterra, alertava a metrópole sobre as más notícias. Ele dizia:
“Eu sinto muito em informá-los que mais de 350 passagens da terceira classe do Windrush foram reservadas por homens que sonham em encontrar emprego no Reino Unido, e que, provavelmente, esse número crescerá pelo menos em mais 100 até o dia do embarque. A maior parte deles não tem habilidade específica alguma e pouquíssimos terão pouco mais de algumas libras nos bolsos quando desembarcarem na Inglaterra.”
Como uma maldição nazista incorporada pelo navio de guerra alemão, a Inglaterra teria de lidar com o racismo inerente à sua própria formação histórica. Exposta pelo caso Windrush, a Inglaterra deixou claro que sempre desejou seu território tão “puro” quanto Hitler para a Alemanha. O racismo provava-se não um “desvio” de governos declaradamente autoritários, mas a estrutura social sobre a qual as grandes potências mundiais desenharam suas políticas de inserção na economia global. Logo que desembarcou em terras britânicas, o governo inglês apontou para o Windrush como uma “invasão hostil”. Assim, solicitou que os passageiros que haviam chegado do Caribe reembarcassem no navio, que seria enviado para as colônias da costa leste africana, onde os imigrantes poderiam encontrar trabalho nas plantações de amendoim existentes. Fato esse que, felizmente, nunca aconteceu.
Ao contrário do que dizia o telegrama do governo, em evidente desespero com o desembarque dos negros caribenhos na “Mother Country”, documentos posteriores mostraram que os passageiros do Windrush eram, em sua maioria, qualificados para os mais diversos tipos de trabalho: enfermeiros, carpinteiros, encanadores, engenheiros, eletricistas, construtores, operadores de máquinas etc. Além disso, tinham o inglês como primeiro ou segundo idioma, uma vez que vinham todos das então colônias do Império Britânico. Mesmo assim, dispositivos legais de 1947 foram acionados para que se priorizasse a imigração de populações deslocadas dos Balcãs, Itália, Iugoslávia e comunidades alemãs presentes em outras partes da Europa Central antes da Guerra.
E não para por aí. Entre as centenas de milhares de brancos convocados para incorporar a sociedade inglesa no esforço de reconstrução do país, estavam também ex-prisioneiros de guerra alemães e ucranianos. E entre esses, milhares de antigos membros da “SS” alemã,[5] acusados por crimes no “front” leste da guerra e pertencentes ao regime que três anos antes lutara contra a própria Inglaterra. Portanto, foi parte da política oficial do governo britânico dar preferência às populações que lutaram contra o Reino Unido (mesmo com histórico nazista, sem domínio da língua e sem habilidades específicas), em vez de privilegiar os antigos veteranos de guerra que provinham dos países do Caribe pelo simples fato de serem negros. A estes foi dada uma condição de permanência precária no país, permitindo a reivindicação traiçoeira feita em 2014 por Theresa May[6] – engrossando o caldo do que ficou conhecido como “hostile environment” [ambiente hostil] aos imigrantes – para que deixassem o país, pois haviam chegado há mais de sessenta anos e ainda não tinham os papéis que só então exigiam.
Em vez de “cidadãos britânicos”, os caribenhos ficaram estigmatizados desde o começo como “a ameaça negra” (“the black threat”). Aos demais, membros da “SS” e outros rostos brancos vindos de toda a Europa, foi incentivado o afluxo através do programa EVW (European Volunteer Workers), recebendo, já na chegada, acolhida calorosa dos citadinos e todos os documentos para se tornarem membros definitivos e legítimos da sociedade inglesa, sendo “completamente absorvidos dentro da população trabalhadora local”, como afirmam os registros oficiais.
Parte, portanto, de Kingston para o Reino Unido, na terça-feira, dia 27 de maio de 1948, o navio que mudaria para sempre a sociedade inglesa. Ele marca o início de uma gigantesca onda imigratória que durou mais de vinte anos, e que expôs internamente à população todas as contradições do sistema colonial do além-mar, construído durante os quatrocentos anos anteriores.
No dia 22 de junho de 1948, os passageiros a bordo do Empire Windrush começam o desembarque em Londres. Entre eles, a motivação inicial para esse ensaio: Lord Kitchener. Nascido em Trinidad e Tobago, estava a bordo do navio que vinha de Kingston. Ele foi entrevistado e já apresentado, ainda no convés, como o “Rei do Calypso”. Bonito, estiloso e perspicaz, ele cantou ao repórter que entrevistava os imigrantes a música London is the place for me [Londres é o lugar para mim]. Ali mesmo, ainda dentro do navio, sem nunca ter pisado nas terras da Coroa, ele cantou essa que parecia ser, à primeira vista, a melhor companhia melódica para a chegada na cidade. Esse encontro da Inglaterra com o calypso ficou registrado numa reportagem de época. Nesse mesmo dia, no aeroporto de Heathrow, chegavam Alfred Hitchcock e Ingrid Bergman para filmar um longa-metragem em Londres. Essa coincidência da História está contida num pequeno filme da agência de notícias audiovisuais British Pathé.[7]
Nascido como Aldwin Roberts, o músico incorporaria para si o nome de um famoso general inglês da Primeira Guerra Mundial, conhecido por fazer o recrutamento de soldados para a morte. Os “sacrificáveis”,[8] em sua maioria vindos das colônias das Índias Ocidentais [West Indies], eram enviados para as linhas de frente das batalhas. Além disso, Lord Kitchener – o general – foi também o responsável pelas instalações dos campos de concentração na Guerra dos Boer, na África do Sul. Ironicamente, sob o batismo musical do general, o músico dava as boas vindas e tornava mais calorosa a chegada dos caribenhos na Inglaterra. Lord Kitchener – o músico – “recrutava” a população negra das West Indies para a linha de frente da reconstrução nacional, o moedor de carne dos empregos que os brancos não queriam pegar.
O disco que leva o nome da música que Lord Kitchener anuncia ainda do navio (London is the place for me) é uma incrível mistura do calypso, chegado do Caribe, com um filtro de jazz impresso pelos estúdios londrinos, que o gravaram, provavelmente com o intuito de torná-lo mais audível para o público das rádios locais, já acostumados com a música estadunidense. Quase todas as músicas flertam, em alguma medida, com a questão racial ou com sátiras à vida inglesa da época. A segunda música da coletânea, por exemplo, descreve a coroação da Rainha. Ela fala das milhões de pessoas que acamparam em lugares estratégicos por onde passaria a procissão da Coroa e é recheada de símbolos militares das colônias inglesas. Na terceira música, ele exalta o fato de o casamento entre as diferentes raças ter se tornado um pouco mais comum. Na quinta música, “Kitch” cita vários nomes do bebop dos EUA e menciona o Afrobeat. A sexta faixa comemora a primeira vitória do time de cricket das West Indies sobre a Inglaterra. A faixa sete é uma ode ao dia 6 de março de 1957, dia que Gana se tornou independente da Inglaterra. E assim vai, em mais outras tantas faixas gravadas por “Kitch” e por outros parceiros do calypso (como Lord Beginner, por exemplo), com nomes como “No carnival in Britain”, “The Underground Train”, “Bulldog don’t bite me”, “Jamaica Hurricane” e a sensacional (!) “If You’re Not White, You’re Black”.
Lord Kitchener vem compor uma tradição cultural que descreve o cotidiano e a pobreza na Inglaterra, feita por intelectuais que já vinham observando de perto os efeitos urbanos daquilo que era ainda o centro do capitalismo mundial. Esses relatos vão caminhando, lado a lado, com o contexto no qual estão inseridos, incorporando sedimentos da cultura de momento às bases já acumuladas da história do capitalismo inglês. No livro “O povo do abismo”,[9] Jack London revela, a partir de um trabalho de campo intenso, os resultados urbanos catastróficos de aproximadamente 150 anos de Revolução Industrial. Imerso como “encortiçado”[10] no bairro mais precário de Londres, o East End, o repórter e escritor expõe ao cidadão inglês – inebriado pela ideia de civilização e progresso que o Império Britânico havia proposto como possível – quartos de apartamentos compartilhados por diversas famílias, falta total de saneamento básico, defuntos “fermentando” por semanas em habitações apertadas e superlotadas, alimentação insuficiente etc. Embora estivessem em situações e habitações precárias, a pobreza era medida sob o telhado que habitavam.
Trinta anos depois desse livro, em 1932, George Orwell mimetiza a mesma experiência de Jack London em seu livro “Na pior em Paris e Londres”[11]. Contudo, assolada pela crise de 1929 e com a sombra dos regimes totalitários que rondava a Europa, a experiência de Orwell avançou mais um grau na escalada da pobreza, vivenciada pela sociedade inglesa. O autor frequentou o East End não mais como “encortiçado”, senão como morador de rua, perambulando entre os vários albergues da cidade, no esforço pela sobrevivência diária.[12] Se a sociedade inglesa vinha expondo as contradições presentes no próprio território, fruto do desenvolvimento “normal” do capitalismo interno, a chegada de Lord Kitchener e do calypso nas docas de Tilbury serviu para expor, a partir da música, os ruídos do Império Britânico do além-mar. É Kitchener que agrega à descrição da sociedade inglesa a questão da raça. A Windrush Generation trouxe para a sede do Império os problemas da colônia, e fez aflorar o racismo e xenofobia que hibernavam em solo metropolitano.
Cumpre agora retornar à conversa sobre a primeira canção do álbum: London is the place for me. Na Inglaterra, são famosas as duas primeiras estrofes dessa música. E em muitas gravações, ou apresentações musicais onde o governo britânico esteve presente, omitiu-se a última estrofe, responsável pelo salto que o eu lírico faz na história. A última parte permite que a interpretação da letra deixe de ser uma ode de um imigrante vislumbrado e satisfeito com a vida no Império, e passe a ser uma crítica à impossibilidade da vida na cidade de Londres. Melhor dizendo, nas palavras de Lord Kitchener: Sim, eu não posso reclamar do tempo que gastei / quer dizer, minha vida em Londres é realmente magnífica / eu tenho todo o conforto e toda a diversão / e a minha residência é a Corte de Hampton / portanto, Londres é o lugar para mim. Ou seja, Londres é um bom lugar para se viver, desde que se viva nas acomodações da Corte Real. Segue a letra original:
London is the place for me
London this lovely city
You can go to France or America
India, Asia or Australia
But you must come back to London city.
Well believe me I am speaking broadmindedly
I am glad to know my Mother Country
I have been travelling to countries years ago
But this is the place I wanted to know
London that is the place for me.
To live in London you are really comfortable
Because the English people are very much sociable
They take you here and they take you there
And they make you feel like a millionaire
London that’s the place for me.
At night when you have nothing to do
You can take a walk down Shaftesbury Avenue
There you will laugh and talk and enjoy the breeze
And admire the beautiful scenery
Of London that’s the place for me.
Yes, I cannot complain of the time I have spent
I mean my life in London is really magnificent
I have every comfort and every sport
And my residence is Hampton Court
So London, that’s the place for me
Kitch escreveu a música sem nunca ter pisado em solo britânico e a cantou, pela primeira vez, ainda dentro do navio. Dez anos depois da chegada do Windrush, iniciaram-se os levantes populares de base racial, sendo o mais conhecido deles a revolta de Brixton, ocorrida em 1981. O processo de reconstrução do país no pós-guerra, no período econômico que ficou conhecido como fordismo, levou à ilha um contingente gigantesco de povos das ex-colônias. Estes formariam a base da força de trabalho mais precarizada dentro de um período de forte crescimento econômico. Os filhos desses primeiros imigrantes, entretanto, nasceram numa Inglaterra já austera, baixo o pulso firme de Margareth Thatcher, e no bojo de um processo de reformulação da indústria, bem marcante para o capitalismo global. A segurança dos empregos estáveis não estava mais no horizonte. Nem mesmo as ocupações precárias que seus pais tiveram na década de 1950 seguiam disponíveis no mercado oficial de trabalho. As funções que sobraram apresentavam flexibilidade (instabilidade) e concorrência em níveis que inviabilizaram a vida nas cidades por dentro do trabalho formal. O não lugar desses jovens na sociedade inglesa formou esse caldo socioeconômico e cultural que deu base aos diversos levantes.
No final dos anos 1950, o dilema daqueles que desenhavam as políticas públicas, e que tinham que responder aos embates raciais já evidentes, continuava exatamente o mesmo à época do desembarque do primeiro navio, em 1948: como diminuir a imigração negra sem impedir a entrada de imigrantes brancos, e sem parecer que nisso resida um movimento discriminatório contra os caribenhos? Durante a segunda administração de Churchill como primeiro ministro (1951-55), ele surpreendeu colegas congressistas ao sugerir usarem como slogan das eleições que viriam uma expressão que rogava pelo embranquecimento da população: Keep Britain White [Mantenha a Inglaterra Branca]. Tornado mais explícito do que nunca, o desejo fascista de uma Inglaterra “pura” saltou dos porões do governo – e das entrelinhas disfarçadas das políticas públicas – direto para a boca da população branca e para os muros da cidade, onde se via, com frequência, as iniciais “KBW” pintadas por toda a parte. A primeira revolta, em 1958, abre a caixa de pandora da sociedade inglesa e expõe os problemas coloniais que agora brotavam por dentro do Império.[13]
Mesmo com toda a atmosfera de hostilidade colocada pelos governos da década de 1950, rumores de que haveria um “cut off date”, ou seja, um dia limite a partir do qual nenhum imigrante mais poderia entrar no país, fizeram com que a Inglaterra visse as taxas de imigração crescerem como nunca. Em 1958, aproximadamente 15 mil imigrantes das colônias do Caribe chegaram ao país; em 1959, 21 mil; em 1960, 27 mil. Durante todos esses anos, tanto os governos de direita como os ditos mais progressistas (do Partido Trabalhista) tiveram uma mesma meta, colocada como meta de Estado: era necessário resolver “o problema da raça”. Mas foi só em 1962 que o governo dos conservadores encontrou uma solução para o “problema”, a partir de um método de controle da imigração possível de ser executado sem discriminar os imigrantes ostensivamente. Eles criaram três categorias de enquadramento para imigrantes que viriam de todos os lugares do mundo: 1) trabalhadores altamente qualificados; 2) trabalhadores qualificados ou não, mas com emprego garantido antecipadamente e 3) trabalhadores sem qualificação e/ou sem garantia de emprego. Os trabalhadores da categoria “3” teriam imensas dificuldades em conseguir a emissão dos papéis. Aqui, planejava o governo, estaria a maior parte dos “coloured workers”.
O caldo cultural decorrente da aceitação contraditória dos West Indies pela população branca no cotidiano de Londres é um dos fatores responsáveis pelo surgimento e desenvolvimento do calypso inglês, que vimos com o Lord Kitchener, do ska, do punk etc. Mas nem tudo gerou deleite sonoro na indústria cultural inglesa. Se num primeiro momento o desembarque jamaicano na ilha trouxera estilo, música e um olhar diferente sobre a vida na Europa, depois, a presença desses mesmos imigrantes serviu de combustível para a aparição de movimentos racistas e xenófobos, que perduram até hoje.
A chegada do ska/reggae e o surgimento dos Skinheads expõem esse movimento de maneira mais evidente. Quando o ska 2-tone[14] apareceu na década de 1960, os shows e encontros musicais eram formados por jovens brancos e negros – filhos de operários de diversas origens. O uso de suspensórios, casacos de tecidos grossos e botas pesadas, não era outra coisa senão a tentativa desses jovens em parecerem mais adultos, mirando o visual de seus pais, tios e vizinhos mais velhos, que usavam todos esses apetrechos como roupas de trabalho. E o desejo de parecer um trabalhador nada mais era do que a percepção da necessidade futura de inserção no mundo do trabalho, enquanto condição essencial para a sobrevivência. A vestimenta, como retrato do desejo futuro, junto à cabeça raspada, que demonstrava igualdade entre todos, deu aos skinheads um sentimento de pertencimento de classe que gerou uma união entre brancos e negros que não foi vista em nenhuma outra expressão cultural inglesa. Quando ocorre a virada para os anos 1970, porém, a Inglaterra entra num processo de desindustrialização e crise econômica. Os jovens que antes se vestiam como trabalhadores já não encontram emprego, e a estética operária dos skinheads é cooptada por jovens brancos que dão a ela um “quê” militarizado e violento. Embora bastante similar ao anterior, essa estética já não serviria como símbolo de igualdade e união, senão como diferenciação dos descendentes da primeira geração do Windrush.[15] Ressurge, assim, os movimentos de ultradireita e as demonstrações fascistas do National Front,[16] que tiveram sucesso em desviar essa versão dos skinheads[17] tradicionais para uma luta contra o negro, o estrangeiro e toda e qualquer esfera da sociedade que poderia ser confundida como ameaça ao “povo inglês”.
A crise econômica dos anos 1970-1980, que legitima o neoliberalismo a se impor sobre os direitos sociais, varrendo o Estado de bem-estar social para o porão da História, gerou o que o historiador Christopher Lasch chamou de “horizonte de expectativas decrescentes” – momento histórico cujos auxílios básicos à sobrevivência do sujeito social são retirados pelo Estado, mesmo que num contexto onde a promessa de emprego e a perspectiva de futuro são nulas.[18] Esse mergulho na desilusão, o fortalecimento da ultradireita e o acirramento das políticas econômicas e sociais austeras de Margareth Thatcher consagram o que hoje conhecemos por skinheads, metamorfoseados de um espírito de união para o que pode haver de pior: racistas, xenófobos, violentos e associados às ideias nazistas. Mas antes de serem culpados pela violência que promovem, são vítimas de um processo econômico que, a partir daquele momento, assolaria a todos. A esse processo imposto pelo neoliberalismo (e dali em diante), o filósofo camaronês Achille Mbembe chamou de “devir negro do mundo”. Não se trata mais do negro tentando ocupar o lugar no mundo que o branco alguma vez ocupou, mas do rebaixamento forçado do branco ao espaço precarizado em que o negro sempre esteve, no capitalismo.[19] Prova disso é a presença multirracial nos recentes protestos iniciados pela violência do branco sobre o negro em 2020, demonstrando que existe sobre todos uma violência comum – ainda que, claro, ela atinja a cada um de modo bastante particular.
Thatcher teria dito uma vez, com sua voz calma e plácida, que a população estava com medo e que o país estaria sendo inundado por pessoas de muitas culturas diferentes. Disse ainda que isso deveria ser evitado para se preservar a cultura britânica, uma vez que esta teria feito tanto para a história da civilização mundial. Precisamos apenas conhecer um pouco da história de Lord Kitchener ou dos detalhes da viagem do navio Empire Windrush[20] para que toda a narrativa do neoliberalismo de Thatcher, ou de uma civilização constituída dentro do sistema colonial de base escravista, caia por terra.
A foto de capa do álbum “London is the place for me” mostra, em primeiro plano, um homem branco, um provável funcionário de uma linha de trem ou de um porto. Ao fundo, está uma família negra, acuada pelas próprias bagagens contra um muro de construção sólida. Todos parecem estar numa plataforma de embarque/desembarque. Todos ali enfrentarão as misérias da reconstrução do pós-Guerra, no coração do Império Britânico.
Boa viagem.
Bruno Xavier Martins é mestre em Geografia Humana pela USP, graduou-se em Geografia pela USP e Economia pela PUC-SP. Uma primeira versão deste texto foi publicada em 22 de junho de 2020 no blog da editora “Igra Kniga”
[1] Cuja tradução sairá neste ano pela editora Igra Kniga (https://www.igrakniga.com/publicacoes).
[2] A ideia de que o tráfico negreiro não existe por causa da escravidão, mas, ao contrário, que a escravidão existe por causa da rentabilidade do tráfico negreiro é do historiador Fernando Novais, em “Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. 1777-1808”. São Paulo: Hucitec, 2010.
[3] Para saber mais sobre a influência intelectual em território britânico dos caribenhos que emigraram de suas ilhas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, veja: “West Indian Intellectuals in Britain”, Bill Schwarz, Editora Manchester University Press.
[4] A Windrush Generation é o nome dado à primeira geração de trabalhadores negros originários das colônias inglesas no Caribe que aportou em Londres, em 1948, a bordo do navio Empire Windrush. Para saber mais sobre o contexto de inserção social dessa população em solo britânico, veja: “The West Indian Generation: Remaking British Culture in London, 1945-1965 (Migrations and Identities)”, Amanda Bidnall, Editora Liverpool University Press.
[5] Força de polícia oficial do Terceiro Reich.
[6] Theresa May (Partido Conservador) foi secretária de Estado para os Assuntos Internos, justamente quando criou o chamado “ambiente hostil” aos imigrantes. Entre 2016 a 2019, foi primeira-ministra do Reino Unido.
[7] Para acessar a reportagem on-line, digite no YouTube: “Pathe Reporter Meets Ingrid Bergman Interviewed by Alfred Hitchcock at Heathrow”. Ao final do pequeno registro, é possível ver Lord Kitchener cantar ao mundo London is the place for me pela primeira vez.
[8] A ideia de chamar aos soldados do front de guerra de “sacrificáveis” vem, na verdade, de uma situação, em tese, bastante diferente dos campos de batalha. Os comentadores da atual pandemia de coronavírus têm nomeado os trabalhadores que não podem parar (para que a economia e as cidades não parem) de “trabalhadores essenciais”. A matéria que segue é o relato de um funcionário do metrô de Nova York no momento em que a cidade era o epicentro mundial da doença, mostrando que o sistema de transporte não tinha condições sanitárias razoáveis para proteção contra a Covid-19. Chamar a esses homens e mulheres, em sua maioria negros, de “essenciais”, é camuflar o processo econômico e social que os obriga a seguirem em suas funções a despeito de qualquer catástrofe. A esses que são lançados à morte – seres recicláveis para o sistema capitalista –, vindos dos porões dos navios negreiros, do front das guerras ou das funções básicas de uma economia “normal”, devemos, todos, chamá-los de “sacrificáveis”. Segue link para a matéria: “We are not essential. We are Sacrificial.”, New York Times, 05/05/2020.
[9] “O Povo do Abismo – fome e miséria no coração do Império Britânico”, Jack London, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
[10] O termo “cortiço” se encaixa mais adequadamente à realidade brasileira, descrita, por exemplo, por Aluísio de Azevedo em seu livro homônimo. Tomo de empréstimo da realidade brasileira a palavra “encortiçado” para descrever a situação inglesa. Apesar de realidades diferentes, chamá-lo assim aproxima o leitor brasileiro de uma Inglaterra desconhecida a partir daquilo que temos muito bem referenciado em nossa concepção.
[11] “Na pior em Paris e Londres — a vida de miséria e vagabundagem de um jovem escritor no fim dos anos 1920”, George Orwell, 2006.
[12] No ensaio “Dentro da Baleia”, Orwell, em crítica aos poetas bucólicos do começo do século XX, desenvolve a ideia da forma da literatura para os tempos do fascismo. Se na década de 1920, a cultura europeia havia ganhado fôlego e frescor com o fim da Primeira Guerra, depois da crise de 1929, e com a ascensão dos regimes totalitários na Europa, a escrita teria, antes de tudo, que expor e contrapor-se a um mundo que caminhava para a barbárie.
[13] O documentário “Black’s Brittanica” é um clássico que expõe os embates raciais na Inglaterra do ponto de vista das revoltas nos bairros periféricos de Londres. Não só como registro dos acontecimentos de época, o filme é importante também por servir como um compilado de reflexões dos intelectuais negros a respeito. O filme foi censurado no Reino Unido e só pôde passar na íntegra dez anos depois de finalizado, em 1989.
[14] “2-tone”, na tradução livre “dois tons”, refere-se ao movimento musical dentro do ska/reggae que juntava negros e brancos, tanto na estrutura das bandas como no público dos shows.
[15] O documentário da BBC “The Story of Skinheads – Don Letts” traça todo o contexto cultural do surgimento e desenvolvimento dos skinheads na Inglaterra, passando pela música, vestuário e política.
[16] National Front é um partido político britânico populista de ultradireita, cuja atividade política atingiu o pico durante as décadas de 1970 e 1980.
[17] O filme “This is England” retrata o drama do jovem Shaun que vive a transformação dos skinheads tradicionais para os “carecas” cooptados pelo National Front, expondo essa transição no contexto de uma Inglaterra que mergulha na desesperança econômica e social.
[18] A ideia de uma era do capitalismo em “expectativas decrescentes” é trabalhada por Christopher Lasch em ao menos dois de seus livros: “A Cultura do Narcisismo – a vida americana numa era de esperanças em declínio” e “O Mínimo Eu – sobrevivência psíquica em tempos difíceis”, Editora Brasiliense.
[19] A ideia do “devir negro do mundo” está presente no livro “Crítica da razão negra”, de Achille Mbembe, Editora Antígona.
[20] Em 28 de março de 1954, o navio Empire Windrush, retornando de uma viagem que havia passado por Hong Kong, Japão, Singapura e Suez, levando funcionários do Império Britânico de volta à Inglaterra, pegou fogo no mar Mediterrâneo, a 20 milhas de Argel, a caminho do estreito de Gibraltar. Havia mais de 1.200 passageiros a bordo, 4 engenheiros morreram na explosão. Esse episódio pode ser visto em um vídeo da agência de notícias British Pathé: “The ‘Windrush’: First Pictures” (1954).