Os limites da responsabilidade empresarial
A Oxfam visita, na Índia, as empresas que produzem para a Ikea, corporação sueca que se orgulha de seu Código de Conduta. Conclusão: mesmo cheias de boas intenções, as iniciativas de compromisso social das empresas caem no vazio, se não se age contra a desigualdade internacionalOlivier Bailly, Jean-Marc Caudron, Denis Lambert
Quatrocentos e dez clientes ao redor do mundo, 160 milhões de catálogos distribuídos (ultrapassando a difusão da Bíblia): IKEA, a multinacional da mobília instantânea, vai bem. E seu faturamento se mantém numa impressionante espiral positiva: 3,3 bilhões de euros em 1994, 14,8 bilhões de euros em 2005. Ou seja, uma progressão de mais de 400%. Difícil fazer melhor. Agora, a empresa pretende conquistar dois territórios que ainda lhe oferecem resistência: a Rússia e a China [1]. Como se lê em sua revista de circulação interna Read Me, “o objetivo é melhorar o cotidiano do maior número possível de pessoas. Para consegui-lo, as revistas devem vender a cada vez mais clientes [2]”? Para a Ikea, a felicidade do povo passa pela compra.
Fenômeno excepcional para uma multinacional que simboliza ao máximo a uniformização planetária e o mercantilismo, a Ikea consegue se esquivar dos ataques das associações de consumidores, de altermundialistas e outros ambientalistas. A exploração não é modesta. É fato que a marca conseguiu estabelecer laços particulares com seus clientes graças aos preços imbatíveis, à implantação de espaços para crianças nas lojas, a um perfeito conceito, segundo o qual pode-se encontrar imediatamente tudo em suas lojas (e de preferência aquilo do que não se tem necessidade).
Para ilustrar a união sagrada entre cliente e empresa, não faltam histórias. Ouvia-se em 2004 um conselheiro municipal de Stockport (Reino Unido) exclamar: “Uma IKEA no território da nossa comuna é uma glória!” [3]. Como um eco desse entusiasmo, uma petição foi lançada pelos habitantes de Mougins: “se você também está farto de andar duas horas de carro, por mais de 200 quilômetros (ida e volta) apenas para fazer suas compras numa loja Ikea, então agarre a chance (talvez a última) de ver a abertura de uma loja Ikea nos Alpes Marítimos!”. Não é algo de se admirar? Pessoas que lançam um abaixo-assinado (mais de duas mil assinaturas em agosto de 2006), que afirmam seus valores, que se mobilizam apenas porque não há uma sucursal da multinacional do móvel num raio de cem quilômetros.
Tamanho sucesso pode ter conseqüências mais dramáticas. Na ocasião da abertura, dia 1º de setembro de 2004, de uma loja na Arábia Saudita, a multinacional ofereceu um cheque de 150 dólares às 50 primeiras pessoas que chegassem. Durou pouco: dois mortos, 16 feridos, 20 desmaios…. O preço de uma vida naquele episódio: 150 dólares em mercadorias, com entrega e montagem não incluídas.
O enorme custo social dos preços baixos
Como explicar a paixão mundial pela Ikea ? Além dos baixos preços praticados, uma das chaves do sucesso está ligada à imagem ambiental e social que se criou da multinacional. Uma imagem, no entanto, construída por escândalos.
Desde seu primeiro fornecedor estrangeiro (a Polônia em 1961), a Ikeas desloca uma parte de suas produções, à procura de uma mão-de-obra barata. A parcela da produção proveniente da Ásia não para de aumentar. Atualmente, a China (conhecida por seu respeito pelos direitos dos trabalhadores…) ultrapassa a Polônia como maior fornecedor da empresa, com 18% dos produtos do grupo. No total, 30% do made in quality of Sweden, é oriundo do continente asiático [4]. Segundo o The Observer, a parcela dos países em desenvolvimento na produção da Ikea saltou de 32% para 48%, entre 1997 e 2001 [5].
Desde suas origens, as exigências do grupo sueco foram de propor produtos a “preços extremamente baixos”. Em 1976, em seu Testamento de um Negociante de Imóveis, o fundador, Ingvar Kamprad declarava: “Nenhum esforço deve ser poupado a fim de manter estas cotações nos níveis mais baixos (?) estes preços baixos sempre justificados impõem enormes exigências a todos nossos colaboradores (?) Sem uma limitação expressa de nossos valores, jamais poderemos cumprir nossa missão [6]”.
Mas, ao contrário do que afirma a Ikea, os preços baixos tiveram e continuam tendo um custo social considerável. Entre 1994 e 1997, três reportagens de televisões alemãs [7] e suecas acusaram a empresa de empregar, em condições degradantes, crianças no Paquistão, Índia, Vietnã e Filipinas.
A Ásia não tem o monopólio da exploração ikeana: em 1998, após a descoberta de condições de trabalho deploráveis na Romênia, o sindicato dos trabalhadores de madeira e construção, a International Federation of Building and Wood Workers (IFBWW), ameaçou a multinacional com um boicote, que resultou num acordo entre sindicato e multinacional (ler, nesta edição, “Entre o Silêncio e o mito” ).
“Um rosto humanizado para evitar as críticas”
O IWAY – nome do código de conduta da Ikea nos terrenos do ambiente e das condições de trabalho – exige como ponto de partida social de qualquer colaboração a ausência de trabalho forçado e de trabalho infantil. Seu ponto sete (saúde e segurança dos operários) detalha as condições de trabalho dos assalariados, que deverão portar as proteções necessárias para a produção. Ele pretende também proteger a capacidade dos empregados para associar-se em sindicatos ou em qualquer união, não devendo o empregador de nenhuma forma impedi-lo. Outro ponto: nenhuma discriminação é tolerada, seja em relação ao sexo, origens, estado civil, etc. No âmbito salarial, por fim, ninguém deve receber pagamento abaixo do mínimo legal do país. O trabalho semanal não pode ultrapassar os limites de horas legais.
Redigir um código de conduta que simplesmente diz que se vai cumprir a lei pode parecer estranho… Um pouco como se o indivíduo declarasse solenemente estar pronto para dirigir veículos pelo lado esquerdo das ruas, no Reino Unido. O IWAY teve, no entanto, um impacto positivo sobre as condições de trabalho dos contratados?
No que diz respeito ao trabalho das crianças (assunto muito sensível para as consciências ocidentais), a Ikea seguramente erradicou esta prática em “suas” fábricas, embora o IWAY prefira se basear em legislações locais e defina que “as legislações nacionais podem permitir o trabalho de pessoas de 13 a 15 anos ou de 12 a 14 anos para serviços leves [8]”.
Para a organização dos operários em coletividades ou sindicatos, o pagamento das horas extras é um outro negócio. Assim, no decurso de uma viagem, em maio de 2006, na vila próxima a Karur, uma cidade têxtil indiana, tentamos encontrar assalariados de uma fábrica. Telle Shiva [9] queria responder a algumas questões do visitante ocidental, mas sua mãe, uma senhora indiana de cabelos brancos, estava inquieta. E se Shiva perdesse seu ganha-pão? Seu salário representa a única fonte de renda da família, composta, além das duas mulheres, do filho da operária, um adolescente de 15 anos.
Não há, porém, o que temer. A jovem não critica de fato seu empregador. Ela fala de pausas para o chá, de proteções para os olhos e mãos. Ela menciona um ambiente sadio. E tudo isso é verdade. “A Ikea oferece as melhores condições, ela não tem dúvida disso”, diz Maniemegalai Vijayabaskar, professor assistente no Instituto de Estudos do Desenvolvimento de Madras. No entanto, este acadêmico, co-autor de um estudo [10]] sobre os fornecedores da multinacional do móvel, encomendado pelas Oxfam, acrescenta: “eles mostram um rosto humanizado para evitar as críticas e controvérisias. Mas eles não fazem muito esforço para melhorar as condições de trabalho”.
Uma estratégia para esvaziar os sindicatos
Condições de trabalho? À primeira vista, elas são boas. Os locais são limpos e arejados. Há pausas e um material de qualidade. Afinal, o IWAY está afixado nas paredes da empresa. Mas… Em 2003, o sindicato holandês FNV encomendou à organização não-governamental holandesa Somo, especialista em auditoria social de multinacionais, uma pesquisa sobre os fornecedores da Ikea em três países : Índia, Bulgária e Vietnã. Os pesquisadores encontraram a cada vez os operários de três ou quatro empresas e realizaram entrevistas fora do local de trabalho. Eles visitaram as usinas e conversaram com os gerentes.
As conclusões se referiam a dez fornecedores, que reúnem cerca de dois mil empregados. A Somo constatou: “Há ainda evidências de inúmeras violações do código de conduta Ikea nos três países e em todas as empresas estudadas”. As transgressões mais freqüentes diziam respeito à liberdade de associação, ao direito de negociar coletivamente os salários e as horas-extras. Na pior das situações: ausência de sindicato, trabalho sete dias por semana, salário mínimo não pago. E, claro, ninguém conhecia seus direitos nem os compromissos da multinacional do móvel.
História antiga? Segundo o que pudemos constatar na Índia em 2006, nenhum sindicato existe entre as empresas contratadas da Ikea. Oficialmente, sua presença é, no entanto, tolerada. Mas, de acordo com Shiva, eles não seriam de fato necessários: “Quando há um problema, nós nos reunimos e discutimos. De hábito, para receber instruções sobre a limpeza dos banheiros, por exemplo. E se eu tenho uma exigência, posso dizê-lo ao gerente.”
A situação não é excepcional nesta região. Cada iniciativa sindical é sufocada ao nascer. Como qualquer multinacional que se instala na Índia, a Ikea reproduz este tipo de situação. Ela garante salários particularmente baixos. Shiva nos diz receber 2.300 rúpias por mês (40,3 euros). Ela paga 500 rúpias (8,7 euros) por mês para chegar ao trabalho de ônibus. No final, a renda é suficiente para viver? Shiva sorri pudicamente. Quando sua mãe cozinha diante da casa, a receita é sempre a mesma: “Comemos com simplicidade, sopa ou, principalmente, molho com arroz”. E a carne? “Sim, uma vez por semana, no domingo. Mas neste domingo não, porque é fim de mês”. O encontro aconteceu no dia 20 de maio de 2006.
Tirando proveito das desigualdades internacionais
O código de conduta da Ikea não alimenta seu empregado. Também não lhe fornece mobília. Nada de prateleiras Billy ou camas Malm em vista… A casa de Shiva é rudimentar: quarto e sala, alguns calendários na parede, fotos em preto e branco, dois estrados, duas pequenas caixas como guarda-roupa. Um relógio de parede, divindades.
Quando lhe perguntamos o que ela faria com mil rúpias a mais, Shiva nos descreveu seu modesto sonho de conforto: “Nós compraríamos um fogão a gás com um botijão. Cozinhar a lenha é penoso, com toda esta fumaça nos olhos. Na estação das chuvas, é difícil encontrar lenha seca. E coletar os gravetos é um grande trabalho”. A pobreza de Shiva não é uma exceção no universo dos fornecedores da Ikea. É, na verdade, a regra.
Outra operária, Manjula, recém-casada, disse ganhar 2360 rúpias (41,4 euros). Mas quando ela mostra os holerites de outubro de 2005, como exemplo, verifica-se que a soma representa um montante bruto (nos dois sentidos do termo, aliás), do qual é preciso subtrair o dinheiro de dois seguros sociais e um seguro de vida. Alguns cálculos depois, as 2360 rúpias iniciais se foram. Manjula trabalhou 24 horas em outubro e recebeu 1818 rúpias (31,8 euros). Trabalhando seis dias por semana, ela entra na definição de extrema pobreza. E com tudo respeitando o código de conduta “ikeano”…
Para ganhar o suficiente para sobreviver, os operários multiplicam as horas-extras. “Eles trabalham 12 horas por dia. Sem contar o tempo de ida e volta”, observa Vijayabaskar. “Durante os picos de produção, eles podem trabalhar até 15 horas diárias”. A Ikea bem que tenta reduzir estas horas-extras, mas a pressão imposta tanto pelos prazos impostos aos fornecerdores quanto pela necessidade de dinheiro, por parte dos operários, torna inevitável este trabalho a mais. As oito horas diárias estendem-se de 9h30 a 13h30 e de 14h30 a 18h30. Mas, no coração de um bairro popular de Karur, Kalaya deve observar: “Se você faz hora-extra da 19 às 20 ou 21 horas, eles não pagam você. Se trabalhamos até 22h30, eles dão 50 rúpias extras (0,87 euro)”. O trabalho suplementar acontece geralmente duas vezes por semana.
Trabalhando no mesmo local, Assam garante que não há horas-extras em sua empresa. Na mesma noite, as máquinas estão funcionando e, postados na entrada, vemos equipes entrando na fábrica até as 20 horas. Prova de que os discursos podem ser controlados pelos contratantes e pelo medo de se perder os empregos. Deenosha deve ter uma renda suplementar. Ela mal falou conosco na saída da indústria e já pede licença para ir embora. Ela tem um outro trabalho das 20 horas até a 1 hora da manhã. Ganha 80 rúpias (1,4 euro), mais a comida.
A fragilidade extrema das “auditorias sociais”
Para a Ikea, Shiva, Kalaya, Deenosha são “custos a serem limitados”, o que explica a presença da multinacional na Índia. Para prepararem as encomendas a tempo, os terceirizados também contratam. Se o IWAY já não é aplicado entre os fornecedores diretos da Ikea, aqui ele se torna uma abstração completa. Nenhum controle, nenhum limite, nenhuma exigência, além do prazo de entrega.
Mas mesmo entre os fornecedores oficiais, o controle do código de conduta permanece extremamente frouxo. Quem realiza as auditorias? Os 46 escritórios de compras da Ikea, espalhados em 32 países, realizam o essencial (93%). Estes escritórios são formados pelo Compliance and Monitoring Group [Grupo de Controle e Conformidade], uma estrutura do grupo sueco dedicada à verificação da aplicação do código de conduta. Composto de cinco pessoas (três em 2004), o Compliance and Monitoring Group, que auxilia os controladores dos escritórios de compra da Ikea, realiza também as auditorias. Foram 53 em 2005 [11]. Auditores externos, como a KPMG, a PricewaterhouseCoopers e o Intertek Testing Services, realizaram apenas sete auditorias em 2004. A multinacional do móvel reconhece que este número era fraco, mas garantia que “em 2005 haverá um contraste, com um número elevado de auditorias realizadas por terceiros [12]”. O número “elevado” é agora conhecido: são 26 auditorias, entre as 1.012 realizadas…
Além disso, estas poucas auditorias externas relevam em parte o sistema de controle interno construído pela Ikea. Os auditores não podem publicar seus estudos, prestando contas direta e exclusivamente à direção do grupo. Cada controle, que se desenrola a cada dois anos (a cada seis meses ou a cada ano, na Ásia), leva entre um e dois dias. Os 90 critérios do IWAY são passados em revista. Numa razão de oito horas por dia, isto representa um ponto a cada dez minutos e quarenta segundos. Como se verifica em dez minutos se não há pressão contra a formação de um sindicato? E se há horas-extra ? E como são os pagamentos de salários? E se há respeito às pausas? E se há trabalho forçado? Trabalho infantil? Simples. Pergunta-se ao patrão. Consultam-se os registros da empresa. Ou, pior, pergunta-se ao operário em sua fábrica.
As pessoas que realizam estas auditorias são provavelmente sinceras e dedicadas, mas as condições nas quais são colocadas não permitem uma fiscalização séria. O método é, portanto, no mínimo “ligeiro”, além de pouco propício à sinceridade dos operários sobre suas condições de trabalho. Principalmente à medida que esta “fiscalização” se dá simultâneamente ao controle de qualidade dos produtos. Toneesh, um fiscal de qualidade, viu duas vezes no ano passado, os fiscais da Ikea: “Eles fazem algumas perguntas, principalmente sobre a qualidade dos produtos, para verificar a produção. São indianos de Délhi ou de Chenai. Mas também europeus. Estes só fazem perguntas aos top level management. Por causa da língua, os trabalhadores não podem falar diretamente com eles”.
Quando a realidade social derrota o Código de Conduta
A operário Kalaya confirma : “Ontem, um homem da Ikea veio aqui. Ele nos mostrou um vídeo a respeito da preparação do produto de qualidade. E fez perguntas, mas somente sobre o produto”. Não é provavelmente este tipo de perguntas que irá evitar que Kalaya faça horas-extras sem receber…
A política da Ikea se reduz a introduzir alguma civilidade na exploração humana. Certamente, os assalariados têm água filtrada à disposição, luvas, banheiros separados e às vezes mesmo pausas para o chá. Mas tomar chá não ajuda o trabalhador a se sustentar no fim do mês e, assim que se fala de fato de temas sociais como salários, presença de sindicatos ou horas-extras, o tom muda rapidamente.
Com responsabilidade social encarnada pelo código de conduta, o grande vencedor não seria finalmente a própria empresa? Por um lado, como menciona Vijayabaskar, “A Ikea repassou os custos de sua política social a seus fornecedores”. Por outro, ela pode valorizar sua imagem com este compromisso gratuito mantendo-se ferrenhamente apegada ao selo de tolerância para o Ocidente: o trabalho infantil.
Estes progressos são alcançados de maneira tão fácil e barata que os compromissos do IWAY nem parecem impositivos. A pretensa responsabilidade social da Ikea não chega nem mesmo a resgatar da miséria total alguns de seus empregados. Para realmente se auto-proclamar “ética”, a firma deveria permitir uma vida decente aos seus trabalhadores. Isso não é referência a luxo, televisão ou telefone celular — e sim a comer carne com mais freqüência, constatar que seu filho repetiu um ano,