Os medos dos brancos nos Estados Unidos
A chegada de famílias asiáticas aos bairros abastados está provocando uma fuga dos brancos nos Estados Unidos. Fenômeno semelhante ao ocorrido após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando afro-americanos migraram dos estados do sul rumo ao norte. Abandonar bairros cobiçados por sua segurança, prestígio e escolas de alto nível não é a estratégia mais inteligente a seguir, mas os brancos querem preservar o lugar de seus filhos no topo da hierarquia meritocrática
A partir da Segunda Guerra Mundial, a “grande migração” de afro-americanos do sul dos Estados Unidos para as cidades industriais do norte e do meio-oeste do país causou uma “fuga” dos brancos. Estes preferiram ceder às pressas seu patrimônio imobiliário, preocupados em ficar entre aqueles que estavam chegando e com medo de que uma vizinhança negra tornasse seu bairro menos seguro, ou menos atraente, ou ainda que o padrão das escolas caísse.1 Hoje, uma nova “fuga branca” pode ser observada entre as classes média e alta, agora em reação às famílias de ascendência asiática que se instalam em suas abastadas áreas residenciais. De um ponto de vista puramente financeiro, abandonar bairros cobiçados por sua segurança, seu prestígio e suas escolas de alto nível não é a estratégia mais inteligente a seguir, mas os brancos querem preservar o lugar de seus filhos no topo da hierarquia meritocrática.
O fenômeno foi identificado pela primeira vez em 2005 em um artigo do Wall Street Journal sobre a cidade de Cupertino, sede da Apple e de várias outras empresas do Vale do Silício. Dinâmicas semelhantes foram observadas em outros subúrbios que abrigam uma proporção substancial de famílias asiático-americanas, na Califórnia, em Maryland, Nova Jersey e Nova York. Todos esses bairros têm em comum o fato de serem povoados por classes médias ou altas brancas, com alto valor imobiliário e escolas de renome. Neles, os residentes asiático-americanos de segunda geração (essencialmente de origem chinesa e indiana) dobraram em dez anos, representando de 15% a 40% da população. Em 1984, os alunos brancos representavam 84% do total de alunos da Mission High School do Vale do Silício, classificada como a melhor escola de ensino médio da Califórnia; em 2010, sua participação havia despencado para 10%, enquanto a dos asiático-americanos havia saltado para 83%.2 Os brancos fugiram de seus santuários, normalmente para bairros próximos com menos alunos de origem asiática nas escolas públicas.
Muitos deles expressam um sentimento paradoxal: ao mesmo tempo em que afirmam estar preocupados com o futuro dos filhos, reclamam que as escolas primárias que deveriam servir de trampolim para as escolas secundárias mais visadas tornaram-se muito competitivas, sob a influência dos recém-chegados asiático-americanos e sua obsessão com desempenho. Eles tiraram seus filhos das principais escolas de ensino médio da Califórnia, acusadas de dar importância excessiva às avaliações dos alunos e às taxas de admissão nas faculdades de elite – critérios nos quais os filhos das famílias asiático-americanas se destacam.
Aqueles que se consideravam a elite do país agora se sentem discriminados, pois, enquanto seus filhos jogam futebol ou vão à praia, seus colegas asiático-americanos sacrificam seu tempo livre em programas de preparação para exames. Em 2013, dois professores de escolas do norte da Califórnia concluíram: “A ‘asiaticidade’ está intimamente ligada aos valores de perfeccionismo, trabalho árduo e sucesso escolar e universitário. Em contraste, a ‘branquicidade’ remete às noções de imperfeição, preguiça e mediocridade acadêmica”.3 Prova disso é o aumento da tendência dos pais brancos a matricular seus filhos em escolas públicas menos competitivas.
Essa reorientação estratégica das classes médias e altas brancas é uma reação à sua precariedade identitária. Ela responde ao medo de que estejam em risco seus privilégios de nascimento, que há séculos estão associados à cor de sua pele. Na Mission High School, a maioria dos alunos de ensino médio matriculados nos cursos de “Advanced Placement” – programa de introdução à educação universitária – pertence à minoria asiático-americana, enquanto os que não o frequentam são predominantemente brancos. Ocorre que esse programa altamente seletivo constitui uma via de acesso garantido às melhores universidades do país.
É indiscutível que os brancos, especialmente os homens, continuam dominando o topo do capitalismo norte-americano. Na Google, por exemplo, eles ainda ocupam dois de cada três cargos de direção. No entanto, em 2019, a gigante da tecnologia recrutou mais mulheres asiático-americanas do que brancas, e este ano o mesmo se deu em relação aos homens.4 A estrada para o sucesso já não é mais pavimentada somente de branco: há uma recomposição da hierarquia dos diplomas.
Rebaixadas, as famílias brancas tentam reconquistar terreno apresentando suas fraquezas como pontos fortes. Sua definição de excelência não se limita mais aos resultados, passando a valorizar a diversidade de interesses, o espírito aberto e a busca por certa “normalidade”, em oposição ao excesso de ambição e carreirismo.
Historicamente, a branquicidade masculina sempre foi definida como norma. A cada vez que um grupo dominado desafiou seu poder, ele foi empurrado para o limbo da anormalidade. Quando as mulheres reivindicaram direitos iguais, foram chamadas de irracionais ou emocionalmente instáveis. Da mesma forma, a luta por igualdade racial e pelos direitos dos imigrantes choca-se constantemente com uma retórica de inferiorização intelectual (“são menos inteligentes”) ou psicologizante (“são inaptos para a democracia”).
É, portanto, bastante lógico que o excepcional sucesso dos alunos de origem asiática seja visto não como um coroamento do “sonho americano”, mas como o produto de uma educação rígida que impede suas vítimas de ter uma vida normal, com lazer, esportes e milkshake com os amigos. A admitir a derrota, os pais brancos preferem queimar seus ídolos e buscar refúgio em instituições onde o mérito é medido em termos de desempenho escolar e de crescimento pessoal.
Essa mudança não deixa de ser irônica, se lembrarmos que durante a segunda metade do século XX os asiático-americanos eram celebrados como uma “minoria modelo”, em oposição aos negros e aos latinos. Fingindo cantar os méritos de uma minoria, o que se fazia era culpar as outras pela discriminação estrutural que sofriam. Se tudo parecia dar certo para os asiático-americanos, isso não era prova de que os outros não brancos, ao contrário do que afirmavam e por menos motivados que fossem, tinham plena igualdade de oportunidades? A América racista podia, assim, disfarçar-se de “terra das oportunidades” e culpar os negros e os latinos por sua falta de engajamento para subir na escala social. Mas, agora, as características antes admiradas – culto ao trabalho, senso de disciplina, valores familiares – subitamente perderam o valor. O aluno brilhante que ganhava os louros tornou-se um antissocial de quem é melhor se afastar.
Essa tática de preservação da supremacia branca na ordem social e econômica não é nova: ela se localiza na continuidade do tratamento administrado aos judeus pela elite Wasp (sigla para White Anglo-Saxon Protestant, protestante anglo-saxão branco), como mostrou o sociólogo Jerome Karabel. Suas pesquisas baseadas em documentos de admissão em Harvard, Yale e Princeton revelaram a existência de um plano organizado para limitar estritamente a matrícula de estudantes judeus, por meio de critérios nebulosos como “masculinidade”, “personalidade” ou “liderança”. Uma política que mesclasse ao mérito acadêmico julgamentos morais fundados em entrevistas “inevitavelmente reduziria o número de judeus dotados de uma personalidade ou de modos questionáveis”,5 destaca um desses documentos. Segundo o Comitê de Admissão de Harvard na década de 1950, a lista de indesejáveis incluía “neuróticos desalinhados com a comunidade”, “instáveis” e suspeitos de “tendências homossexuais ou problemas psiquiátricos graves”. Sem falar, é claro, da exigência de “lealdade” patriótica, que, durante o período do macarthismo, permitia afastar elementos suspeitos de simpatia pelo Partido Comunista (então proibido). Como destaca Karabel, “a definição de mérito é fluida e tende a refletir os valores e interesses daqueles que têm o poder de impor suas visões culturais particulares”. A atual “fuga branca” das escolas frequentadas por asiático-americanos faz parte dessa redefinição de mérito que visa preservar o poder daqueles que o exercem.
Richard Keiser é professor de Estudos Americanos e Ciência Política do Carleton College (Northfield, Estados Unidos).
1 Ler Serge Halimi, “L’Université de Chicago, un petit coin de paradis bien protégé” [Universidade de Chicago, um pedacinho do paraíso muito bem protegido], Le Monde Diplomatique, abr. 1994.
2 Willow Lung-Amam, Trespassers? Asian Americans and the battle for suburbia [Invasores? Os norte-americanos de origem asiática e a batalha pelos subúrbios], University of California Press, Berkeley, 2017.
3 Tomas R. Jimenez e Adam L. Horowitz, “When white is just alright: how immigrants redefine achievement and reconfigure the ethnoracial hierarchy” [Quando branco é apenas razoável: como os imigrantes redefinem as conquistas e reconfiguram a hierarquia etnorracial], American Sociological Review, Washington, DC, 30 ago. 2013.
4 Cf. Allison Levitsky, “For the first time, White men weren’t the largest group of U.S. hires at Google this year” [Pela primeira vez, os homens brancos não foram os mais contratados do ano no Google dos Estados Unidos], Silicon Valley Business Journal, San Jose, 5 maio 2020.
5 Esta citação e as seguintes foram extraídas de Jerome Karabel, The chosen [Os escolhidos], Houghton Mifflin Harcourt, Boston, 2005.