Os militares e a destruição nacional
Estarão as forças armadas dispostas a abrir mão do seu monopólio constitucional do uso da força? Qual é a relação entre as forças armadas e o processo em curso de constituição de um poder paramilitar bolsonarista?
A combinação da tragédia humanitária da Covid-19 com a escalada autoritária do presidente Bolsonaro, no seu intento de alcançar o poder absoluto, coloca na ordem do dia o debate sobre o papel dos militares e aponta para a necessidade de a sociedade civil organizada enfrentar publicamente o debate acerca do papel constitucional das forças armadas, no atual contexto de pandemia, crise econômica e iminente crise institucional.
O fato de o governo Bolsonaro não apresentar nenhum projeto de país, a não ser o seu projeto de destruição1 pode alimentar as expectativas de que as forças armadas – em nome de um projeto próprio de nação – possam barrar a destruição em marcha da soberania nacional – com a subordinação total da política externa brasileira aos interesses exclusivos dos EUA – e o projeto neoliberal radical de recondução do país à condição semicolonial de país primário-exportador, desindustrializado, e dominado pelo capital financeiro, cujo corolário é o aprofundamento das desigualdades e a destruição dos direitos da grande maioria da população brasileira.
O problema é que, ao que tudo indica, os militares brasileiros não têm hoje nenhum projeto de nação, estando unidos apenas por seus interesses corporativos. Mas se quisermos abordar o drama dos militares brasileiros numa chave de interpretação mais elevada – digamos assim, à luz do drama histórico universal no qual se insere o nosso triste país – teremos de concordar com José Luiz Fiori, quando ele diz que “talvez, exatamente, seja este o verdadeiro ponto cego dos militares brasileiros: sua impotência frente aos Estados Unidos” 2 . Portanto, o debate a ser feito requer um enfrentamento de questões de fundo acerca do papel das forças armadas neste período trágico da vida brasileira.
Uma pergunta de difícil resposta diz respeito à relação entre os generais que embarcaram na aventura bolsonarista e dão sustentação ao seu governo – verdade seja dita, com relativa moderação se os compararmos com o alucinado presidente – com os altos escalões das forças armadas, em particular com os comandos da Marinha e da Aeronáutica que têm primado por um distanciamento do debate político e por uma postura profissional que muito contribuem para a preservação da confiança no compromisso constitucional das duas forças. No entanto, há antecedentes bastante preocupantes como a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal exercida pelo general Eduardo Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula e o recente artigo do general e vice-presidente Hamilton Mourão publicado em O Estado de São Paulo, em que ele pressiona a imprensa e as instituições sem mencionar a responsabilidade de Bolsonaro na manutenção de um clima permanente de radicalização e crise.
Outra questão relevante neste debate é a seguinte: estarão as forças armadas dispostas a abrir mão do seu monopólio constitucional do uso da força? Qual é a relação entre as forças armadas e o processo em curso de constituição de um poder paramilitar bolsonarista? Recentemente o general Eugênio Pacelli Vieira Mota foi demitido do Comando Logístico do Exército após ter assinado três portarias para facilitar o rastreamento de armas e munições. Bolsonaro revogou as normas e demitiu o general. Esse poder miliciano está sendo exibido descaradamente no acampamento dos 300, na Esplanada dos Ministérios em Brasília, cujo desmantelamento é exigido pelo Ministério Público do Distrito Federal que identifica a existência de um grupo armado por trás desse acampamento. Estarão as forças armadas indiferentes ou coniventes com essa ofensiva miliciana, tão compatível com os vínculos do bolsonarismo com as milícias do Rio de Janeiro (Onde está o Queiroz? Por que Bolsonaro quer interferir na Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro?), cuja virulência não exclui sequer relações com o chamado “escritório do crime”? Pena que o ministro chefe da Casa Civil, general Braga Neto, ex-interventor na segurança do Rio de Janeiro, pareça tão desinformado a respeito.
Infelizmente, a história do século passado nos traz terríveis exemplos de como as forças armadas de uma grande nação – refiro-me à Alemanha, já então uma nação civilizada, culta e tecnologicamente avançada – puderam assistir à chegada ao poder, por vias eleitorais, de um partido totalitário, e se curvaram à destruição das instituições democráticas pelo governo democraticamente eleito. Nesse processo, o exército alemão (a poderosa Wermacht, orgulhosa de suas raízes aristocráticas prussianas), rearmado e ampliado por Hitler, resistiu num primeiro momento ao crescente poder das odiosas milícias, as SA (Sturmabteilung) – bando de marginais comandados por Ernest Röhm que constituíam o exército partidário de Adolf Hitler, uma escória semelhante à que compõe o núcleo duro do bolsonarismo. Hitler não teve nenhum escrúpulo em massacrar as SA, em 1934, para acalmar o exército, para depois se apoiar, cada vez mais, em seu novo exército particular, as SS (Esquadrão de Proteção). Os altos escalões da Wermacht capitularam diante do poder de Hitler – submeteram-se à suas decisões estratégicas desastrosas que resultaram na morte de centenas de milhares de militares alemães na guerra contra a União Soviética – e assistiram impotentes à derrocada do exército alemão e depois à completa destruição do país, até a rendição incondicional em 1945.
Muitos considerarão um exagero comparar Bolsonaro com Hitler e talvez possamos encontrar nessa diferença uma razão de esperança!
Hitler não tinha a mesma deficiência intelectual de Bolsonaro. Sua megalomania e sua capacidade de desencadear catástrofes como a guerra mundial e o holocausto resultaram em muitos milhões de mortes, enquanto Bolsonaro ainda não teve a oportunidade de concretizar a sua ideia de que para mudar o Brasil seria preciso matar 30 mil pessoas3. No entanto ambos se igualam em perversidade e desprezo pela vida humana como comprova a falta de empatia do presidente pelos milhares de vítimas da pandemia. A história registra a fidelidade a Hitler dos generais e marechais da Alemanha nazista mesmo quando a insanidade das estratégias do ”fuhrer“ já estava patente. Portanto o paralelo não deixa de ser assustador. Se generais alemães obedeceram cegamente ao cabo austríaco, será possível que generais brasileiros se submetam à liderança liberticida do ex-tenente insubordinado que o general Geisel qualificou como ”um mau militar“?
1 “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas. Nós temos é que desconstruir muita coisa” (fala de Bolsonaro em jantar em Washington no dia 17/03/2019).
2 “Por isso, concluindo, é possível afirmar, neste momento, que os militares brasileiros caíram ou se meteram numa armadilha, e estão colocados numa verdadeira “sinuca de bico”: ou se destroem como instituição e como poder, como já aconteceu no final do século XIX, só que, agora, por conta do fanatismo ideológico de seus economistas ultraliberais e do delírio belicista da ultradireita norte-americana; ou então procuram reencontrar o caminho do crescimento econômico acelerado e soberano, para poder cumprir suas funções institucionais e seus objetivos estratégicos. Mas para seguir esta segunda alternativa, teriam que fazer escolhas “heroicas”, a começar pela redefinição dos termos de sua aliança tradicional com os Estados Unidos, o verdadeiro “dono” do Hemisfério Ocidental” (O Ponto Cego dos Militares brasileiros, por José Luís Fiori).
3 “O erro da ditadura foi torturar e não matar” (entrevista de Bolsonaro à rádio Jovem Pan, junho de 2016).