Os motoboys no globo da morte
Guiada por lideranças sindicais emergentes, essa categoria atualiza sua força política no contexto da precarização no mundo do trabalho. É assim que os motoboys, usualmente donos dos corredores, tomam o asfalto e colocam a centralidade do emprego e do espaço como trunfo frente à ação das instâncias de poder
Como uma faísca no trânsito de São Paulo já em combustão, os motoboys aceleram forte. Entre insultos e gentilezas, agressões físicas e morais, um acidente e outro, um retrovisor que cai e uma porta que amassa, fazem a entrega chegar ao seu destino certo e no tempo previsto.
Sua atividade profissional é um fenômeno urbano bastante recente. Cada vez mais integrada à paisagem da cidade de São Paulo, ela tem suas origens em meados da década de 1980 e impulso definitivo no início da década de 1990. Devido ao seu rápido e exponencial crescimento, aliados à dinâmica e natureza de seu trabalho, os motoboys passam a ser alvos certos e constantes das mais diversas controvérsias e conflitos no trânsito paulistano.
E é nesta relação tênue com a cidade, entre as exigências do tempo e limites do espaço, a expectativa e a satisfação das entregas rápidas, o luxo e a precariedade, o imprescindível e o estigmatizado, a vida e o desalento da morte, que a atividade profissional dos motoboys, submetida às estratégias e às racionalidades do capitalismo contemporâneo, garante parte das exigências da circulação rápida e do consumo em larga escala na cidade de São Paulo.
É neste sentido que a problemática dessa atividade não começa nem se encerra em si mesma. Assim, a abordagem que se enseja não visa classificar os motoboys, na sua atividade profissional, nem como heróis nem como vilões do trânsito. Mas, antes, visa compreendê-los como produto e necessidade de um contexto histórico de fin de siècle – especificamente na transição do século XX para o XXI – revelando parte das transformações socioespaciais na capital paulista, embaladas por uma nova etapa do capitalismo, encarnando dois polos de um mesmo problema, a partir da nova condição da cidade e do mundo do trabalho.
Na garupa do trabalho precário
O mundo contemporâneo que desponta condicionado por uma nova etapa do capitalismo revela-se permeado por transformações que, à primeira vista, parecem vincular-se estritamente aos escopos da economia. Entretanto, essas se espraiam na emergência de novas práticas sociais e políticas, de novos padrões de consumo e de um crescente setor de serviços, ditando uma série de mudanças econômicas, políticas, culturais e espaciais1. E é sobre as transformações socioespaciais na cidade e no mundo do trabalho que a atividade profissional dos motoboys traduz-se como um ângulo privilegiado de análise.
É neste sentido que a metrópole de São Paulo, na visão de Milton Santos como uma modernidade incompleta2, revela-se lócus das estratégias globais na nova etapa do capitalismo, simultaneamente como centro dinâmico da valorização do capital e lugar da pobreza e dos problemas sociais, em especial das condições sempre cambiantes e instáveis de empregos, desempregos e outras tantas formas de inserção no mundo do trabalho.
Nessa nova fase famigerada do sistema, o desemprego, mais do que uma questão cíclica, aparece antes de tudo como estrutural3; ou, de outro modo, os empregos perdidos não seriam mais repostos nem com os ciclos de crescimento econômico4. Mais do que isso, como o caso brasileiro remete às contradições mais sobressalentes, a expansão do desemprego estrutural acabou produzindo uma estrutura social sui generis em que o precário, antes exceção, vira a regra.
E é no estabelecimento de territórios da precarização no coração da metrópole, entre os que vivem ou foram submetidos a essa estrutura sobrante na cidade, que perderam seu emprego ou não conseguiram entrar mais no mercado formal, onde se dá o start fundamental que põe à baila a atividade profissional dos motoboys como uma opção recorrente a milhares de trabalhadores e trabalhadoras. Dessa forma, parte considerável desses profissionais passa a ocupar os postos da subcontratação, do trabalho parcial, temporário ou terceirizado, especialmente aqueles que disparam na garupa da informalidade.
Isso não quer dizer que toda a categoria profissional dos motoboys esteja inserida na informalidade. Nem mesmo que os motoboys vinculados ao setor formal da economia não enfrentem sérias onseqüências relativas à natureza de sua profissão – já que estão submetidos, antes de tudo, à condição objetiva de exploração estabelecida na relação capital-trabalho. Mesmo porque essa categoria remete-se menos a uma relação dicotômica formal-informal e, sim, a um contínuo que transita nas fronteiras fluidas e cambiantes da nova economia urbana, tanto nas suas realidades e formas (ou sem formas) de trabalho, quanto nas suas condições de trabalho instáveis e sujeita às mais diversas mutações ao sabor do mercado.
Caracterização e condições
A atividade dos motoboys não é um fenômeno exclusivo de São Paulo. Ao contrário. É um fenômeno que se multiplica especialmente nas grandes cidades brasileiras – até mesmo internacionais. Na capital paulista, acredita-se que sejam até 250 mil profissionais.
Um estudo publicado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), em 2003, mostra que dos 1.141 motociclistas entrevistados, 62% eram motoboys. Entre eles, é patente o predomínio do sexo masculino: são 99% do total. Outro quesito que salta aos olhos relaciona-se à faixa etária dos motoboys, pois se observa que há um predomínio entre 20 e 24 anos, representando 32%. E se agruparmos aqueles de faixa etária entre 18 e 29 anos, chega-se a 77%.
Mas apesar de os números apontarem uma atenção especial aos jovens motoboys, o fato é que independentemente da idade e do gênero, o que prevalece é a lógica do acelerador, da pressa desmedida no espaço voltado às exigências da circulação. É neste cenário que se prolifera a ideia de circulação corrente e frenética, que mais do que mediar a vida moderna das pessoas, vem ritmando e impondo um corre-corre diário.
Mas essa racionalidade que enquadra os motoboys como parte dessa nova condição da cidade torna-se ainda mais aguda quando aqueles na informalidade, com suas decorrentes formas de remuneração (por hora, por quilômetro rodado e por entregas efetuadas), acabam sendo induzidos a um ritmo alucinante de entregas e, por conseguinte, expostos às mais diversas situações de riscos e acidentes de trânsito inerentes a sua atividade profissional.
Então, é justamente essa racionalidade que impõe aos motoboys acelerarem a mais de cem quilômetros por hora, a rodarem mais de 200 quilômetros por dia, muitas vezes, em dupla (ou tripla) jornada – chegando a cumprir até 16 horas de trabalho. E, mais do que isso, integrados precariamente às redes técnicas, eles apontam uma nova prática socioespacial, traduzida por uma nova forma de experimentar a relação tempo-espaço, a partir da realização rápida da circulação de uma infinidade de mercadorias e entregas de toda sorte em São Paulo.
Cidade em trânsito
O privilégio concedido aos automóveis nas grandes cidades brasileiras, produto do modelo rodoviário urbano, impulsionado em meados do século XX frente aos outros meios de transportes, acabou gerando, de um lado, um número excessivo de veículos nas ruas e uma necessidade cada vez mais premente de reproduzir e organizar o espaço urbano de modo a tentar impedir a obstrução de sua circulação mais fluida e, de outro, um sistema de transporte coletivo absolutamente precário relegado às classes mais pobres, traduzido pela morosidade, desconforto e altos preços.
A pesquisa Origem-Destino (OD) do Metrô, em 2002, vem confirmando uma tendência do aumento da participação de viagens motorizadas por modo individual em detrimento do transporte coletivo. Para se ter uma ideia, em 1967, o modo coletivo prevalecia sobre o individual, respectivamente, 68,1% contra 31,9%. Mais de 30 anos depois, em 2002, o modo individual representava 52,96% e o coletivo, 47,04% das viagens motorizadas.
Não por acaso, os automóveis correspondem a aproximadamente 70% da frota de veículos no município de São Paulo5, influenciando os altos índices de congestionamento6 e a grande quantidade de emissões de gases poluentes na atmosfera7. Portanto, é diante de um modelo rodoviário urbano que emperra e polui a cidade, ou mesmo de um transporte coletivo ineficiente, mal distribuído pelo espaço e marcado pela precariedade, riscos, desconfortos e alto preço que, à primeira vista, a motocicleta aparecia como uma alternativa motorizada e viável ao congestionamento do trânsito paulistano.
É assim que, em São Paulo, segundo o Detran (Departamento Estadual de Trânsito), em 2000 a frota de motocicletas era de 348.098 unidades e, em 2008, passou para 658.973, o que representa um acréscimo aproximado de 90% no período. Sem contar que a sua participação no trânsito subiu de 7%, em 2000, para 11%, em 20088.
O crescimento da frota acabou gerando uma série de choques de interesses, justamente no contexto onde a apropriação do espaço deixa de ser uma comunhão de uso para tornar-se competitivo, disputado. Todavia, essa briga aponta para uma espécie de guerra urbana deflagrada nas ruas e avenidas de São Paulo, principalmente entre os motoristas de automóveis, historicamente privilegiados, e motoboys, os “invasores” do trânsito9 – sendo que estes últimos são, de largada, as principais vítimas.
Para corroborar com esse exposto – mesmo não especificando se o motociclista era ou não motoboy –, conforme dados da CET, foram registrados, em 2007, 15.193 acidentes com vítimas envolvendo motocicletas (55% do total), aproximadamente 41 acidentes por dia. Já em relação aos acidentes fatais envolvendo as motocicletas, em 2007, ocorreram 466 óbitos, cerca de 1,3 por dia.
Espaço das normas e das resistências
Os motoboys que avançam em disparadas nas ruas e avenidas de São Paulo aparecem como multiplicidade confusa, se acidentando, se desestabilizando e, muitas vezes, pondo em xeque todo um diagrama de leis, normas e regras que visam gerir os problemas ligados à circulação no espaço urbano.
É assim que os investimentos de poder sobre a atividade dos motoboys, por meio do espaço, aparecem na forma de múltiplas estratégias, postas a intervir e disciplinar essa atividade profissional – além de classificar os motoboys como produtivos, rápidos e eficientes, essas estratégias objetivam colocá-los a circular de forma adestrada, útil e dócil no espaço urbano de São Paulo.
Assim, o poder público paulistano, ao justificar a necessidade de regulamentação dessa atividade profissional, ao intervir e criar toda uma gama de regularidade e normalidade, menos do que tirá-los de uma condição de marginalidade, os inserem em um circuito renovado e circulante das informalidades, irregularidades e ilegalidades10. Na ânsia de varrê-los das ruas e avenidas como seres indesejáveis, insiste em tratar esse assunto estritamente pelo viés jurídico, quando no fundo as questões que orbitam o universo motoboy são, antes de tudo, sociais.
Contudo, é neste choque com as instâncias de poder, que os motoboys mais do que suscitar novos pontos de resistência, revelam-se como focos incandescentes de contrarracionalidades na paisagem cinzenta da metrópole. É assim que a categoria dos motoboys, guiada por lideranças emergentes dentro de um espaço de rivalidade entre sindicatos e associações11 – em pleno contexto de crises sindicais e de identidade da classe trabalhadora12 –, aponta e atualiza sua força política no contexto da precarização no mundo do trabalho que se dá no espaço, contraditoriamente, como arma da fluidez e da interdição. É assim que os motoboys, usualmente donos dos corredores13, tomam o asfalto e colocam a centralidade do trabalho e do espaço como trunfo político frente à ação das instâncias de poder.
Por fim, o globo da morte tratado aqui não é a morte em si mesma, nem mesmo rua e a avenida em si, são suas esferas, mas antes, a forma como a sociedade concebe o espaço urbano voltado às exigências da circulação rápida de mercadorias, pessoas e informações. É neste sentido que se faz necessário uma reflexão num sentido amplo em relação ao uso da cidade, da apropriação coletiva e criativa de seus espaços e, quem sabe, incitar a discussão sobre o direito de as pessoas usarem o espaço de forma mais consciente, ou mesmo repensar novas relações sociais que coloquem em outro patamar a importância que o trabalho pode representar para além de uma atividade que exponha a vida de milhares de trabalhadores e trabalhadoras e, talvez assim as pessoas compreendam que são parte integrante dessa problemática e da sua superação.
*Ricardo Barbosa da Silva é geógrafo e Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.
1 David Harvey, Condição Pós-Moderna, p. 140.
2 Milton Santos, Metrópole Corporativa Fragmentada, p.13.
3 Eric Hobsbawn, Era dos Extremos, p. 403.
4 André Granou, Capitalismo e Modo de Vida, p.14.
5 http://www.detran.sp.gov.br/frota/frota.asp. Acessado em 06/08/2009.
6 Mais recentemente, em junho de 2009, o recorde de congestionamento chegou à marca dos 293 km de lentidão. http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u579653.shtml. Acessado em 11/08/2009.
7 Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). Relatório Qualidade do Ar no Estado de São Paulo, 2008. Disponível no http://www.cetesb.sp.gov.br. Acessado em 15/06/2009.
8 www.detran.sp.gov.br/frota/frota.asp. Acessado em 06/08/2009.
9 Conforme dados da CET, em 2006, os acidentes envolvendo automóveis e motocicletas na cidade de São Paulo corresponderam a cerca de 45% do total de acidentes envolvendo mais de um veículo.
10 Cf. Lei Nº 14.491, de 27 de julho de 2007, sancionada pelo prefeito Gilberto Kassab que visa regulamentar a atividade de motofrete.
11 A título de exemplo, em 11 de janeiro de 2008, ocorreu uma grande mobilização de motoboys organizada por Ernane Pastore, Presidente da AMM, que contou com a participação de 2.500 motoboys. “Motoboys fecham as ruas e prometem novos bloqueios-relâmpagos em SP”. Jornal O Estado de S. Paulo, 12 de janeiro de 2008. Em 18 de janeiro de 2008, outra manifestação realizada, organizada por Gilberto dos Santos, o Gil, presidente do SindimotoSP, reuniu em torno de 10 mil motoboys no centro histórico de São Paulo, contra o projeto da prefeitura de proibir o uso da garupa da motocicleta por outro ocupante e a circulação nas vias expressas das Marginais (Tietê e Pinheiros). “Sindimotosp comanda movimento histórico da categoria”, Jornal a Voz do Motoboy, janeiro de 2008.
12 Ricardo Antunes, Adeus ao Trabalho?, p. 70.
13 Espaço entre um veículo e outro nas ruas e avenidas da cidade de São Paulo.