Os obstáculos no caminho de Copenhague
Neste momento, a noção de “America first” propagada pelo governo dos EUA constitui um fator impeditivo ainda mais efetivo do que a de “market first”. Em função disso, são poucos os países dispostos a situar as negociações fora do quadro exclusivamente mercantil e dos interesses estritamente nacionais
O Tratado de Copenhague, que ampliaria o alcance do Protocolo de Kyoto, o mais importante dos instrumentos destinados a lutar contra a mudança climática1, não verá a luz do dia. Todos se conscientizaram disso em decorrência das mais recentes reuniões-chave2 que pavimentaram a estrada rumo a essa cúpula, a ser realizada de 7 a 18 de dezembro deste ano. A não aprovação em tempo hábil, pelo Senado americano, da lei sobre o clima; os resultados ambíguos do Conselho Europeu especial sobre esta questão, nos dias 30 e 31 de outubro; e as declarações no final do G2, entre China e Estados Unidos, em 16 e 17 de novembro, deram o golpe de misericórdia. Vale reconhecer que os chefes dos dois Estados que mais poluem o planeta se entenderam para atuar em prol do sucesso da conferência, e manifestaram o desejo de que ela resulte num acordo com “efeito imediato”; mas, eles não ofereceram esclarecimento algum a respeito dos meios para alcançá-lo.3
Um eventual “tratado”, apto a obrigar esses Estados a tomarem medidas efetivamente restritivas, voltará provavelmente a ser negociado… em 2012.Essa situação é tão absurda, que a consciência de uma “crise global” do meio ambiente já começou a aflorar até mesmo entre o senso comum. É que nunca se viu tanta gente exigindo a limitação, e até mesmo o fim, de dois obstáculos evidentes: a mercantilização do planeta e a indisponibilidade “histórica” dos Estados Unidos para assinar todo tratado internacional que viesse a restringir sua liberdade e seus interesses.
As classes dirigentes reduziram a questão do futuro da humanidade a um problema de gestão “economicamente eficiente” dos recursos naturais, em particular os energéticos. Elas entregaram aos mecanismos de mercado a tarefa de programar e avaliar essa gestão – a de um mundo baseado na confrontação de interesses “mercantis”, no qual os mais fortes levam a melhor. Em decorrência disso, é impossível alcançar um verdadeiro acordo político mundial em torno do devir da humanidade e da vida no planeta.
A energia e os mercados estão no cerne das negociações atuais – a tal ponto, que podemos considerar as outras metas em jogo como secundárias ou acessórias. O Protocolo de Kyoto (1997) representou o ponto de partida da “vampirização” das negociações sobre o clima pela energia e a mercantilização do ar. Tudo se baseia na subdivisão do mundo em “direitos de quotas de emissões de gases de efeitos estufa (GEE)” atribuídos a cada país, e consequentemente, na formação dos “mercados de emissões”4. Ora, até hoje, nunca foi comprovado, de maneira efetiva, que esse tipo de mecanismo resulta numa redução global dessas emissões.
Os custos x a política
As coisas estão encaminhadas de tal forma que o devir da humanidade e a sua libertação da dependência das energias fósseis estão sujeitos às decisões dos “negociantes de GEE” (principalmente de CO²). Assim, as discussões – e, sobretudo, as divergências – dizem respeito ao volume das reduções das emissões de cada país, ao cálculo de seu valor mercantil e de seu custo para a economia “nacional”, ou seja, para os diferentes setores e os grandes “campeões nacionais” expostos à concorrência internacional. A estimativa em números prevalece sobre as considerações políticas. Mais importante ainda: estas últimas, que teoricamente deveriam ser tomadas pelos poderes públicos, decorrem na realidade da avaliação “mercantil” elaborada pelos grandes grupos financeiros, comerciais e industriais.
Essa mercantilização do ar e do clima deu à luz inumeráveis instrumentos financeiros agrupados em duas grandes categorias: a primeira sendo vinculada à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas (CQNUMC) e ao Protocolo de Kyoto; a segunda sendo regida pelo Banco Mundial.
Os Estados se limitam a facilitar a promoção e o bom funcionamento desses instrumentos, sustentando-os com dinheiro público, o qual se mistura aos fundos provenientes das empresas privadas, conforme a lógica da parceria estabelecida entre eles. Uma transferência tão importante de decisão política levanta graves problemas de eficiência em matéria de gestão dos recursos – além de outras questões sérias nos planos da ética, da justiça social e da democracia.
De fato, tudo indica – começando pelo recente desmoronamento do mundo das finanças – que a estratégia do “market first” (o mercado em primeiro lugar) fracassou. Para substituir esta palavra de ordem por aquela de “life first” (a vida em primeiro lugar) e seguir alimentando esperanças de que Copenhague seja concluída com um pacto mundial acompanhado de um programa de ação, duas medidas prévias se revelam prioritárias. A primeira consiste em remodelar as regras do direito de propriedade intelectual, entre outros, sobre os viventes. Enquanto esse direito – no qual incluímos, para facilitar a análise, as energias renováveis – puder ser objeto de apropriação privada, não haverá nenhum acordo de fato em torno da mudança climática.
Por que a China, a Índia, o Brasil, os países africanos, na medida em que quiserem modificar seus processos de produção e seus produtos com o objetivo de reduzir as emissões de GEE, deveriam pagar royalties aos países do Norte, que possuem a quase totalidade dos direitos de propriedade intelectual nesses campos? Por que eles teriam que aceitar financiar o novo “crescimento verde” de Estados Unidos e da Europa? Não se trata de transferir “gratuitamente” conhecimentos e tecnologias no mundo inteiro, mas sim de reformar as regras existentes que impedem toda e qualquer cooperação internacional real. Este é o preço a pagar para alcançar os objetivos conhecidos como o da “atenuação” (do aumento da temperatura média da atmosfera) e o da “adaptação” (ao aquecimento climático).
A segunda medida diz respeito à substituição da máquina financeira que foi implantada em torno dos “mercados de carbono” por um “plano financeiro público mundial”. Enquanto essa transferência do poder de decisão política para os mercados não for detida, a luta contra a mudança climática será parcial e inoperante. Se eles quisessem, os dirigentes do mundo ocidental poderiam reorientar os enormes recursos – R$ 20 trilhões – que foram disponibilizados para as empresas privadas, de modo a “salvar o capitalismo” do desastre no qual ele afundou o mundo. Segundo as estimativas mais recentes, um montante anual de R$ 173 bilhões, durante dez anos (ou seja, R$ 1.737 trilh&atild
e;o no total), seria suficiente para concretizar os objetivos de médio prazo da luta contra o aquecimento da atmosfera. Isso é 12 vezes menos que as quantias mobilizadas para o salvamento dos bancos e do valor financeiro dos capitais privados; equivale a dois terços das despesas militares mundiais anuais (R$ 2,6 trilhões em 2008), e apenas ao dobro das despesas mundiais para publicidade (R$ 945,4 bilhões em 2007)! Bastaria querer…
Mas esse “bastaria querer” esbarra no muro que foi construído, principalmente em decorrência da atitude de Washington: até hoje, os Estados Unidos não ratificaram o Protocolo de Kyoto, enquanto 184 países o fizeram. Este ponto nos conduz ao segundo bloqueio mais importante. Mesmo se dispondo a isso – o que ainda não aconteceu –, o governo americano não teria condições de defender em Copenhague posições ponderadas e equitativas, que encorajem os outros grandes países – a União Europeia (UE), os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e o Japão – a negociar os compromissos necessários para, pelo menos, prorrogar aqueles firmados em Kyoto.
Não é a primeira vez que em nome da suposta “superioridade” do seu modelo de sociedade e da “segurança” de seu país – não raro identificada com a “segurança mundial”, os Estados Unidos praticam a política do unilateralismo imperial, aplicando o princípio de não negociar suas opções políticas e seu modo de vida. Com isso, eles favoreceram o enfraquecimento, e até mesmo o desaparecimento, das instituições e dos meios alocados para uma regulação fundamentada no multilateralismo intergovernamental. Eles preferem, de longe, a soft law, branda e maleável, e em particular, a autorregulação e a autorresponsabilidade de cada Estado. A esse respeito, a famosa frase do presidente George Bush, pai – “O modo de vida americano não é negociável” –, pronunciada para justificar sua recusa em participar da ECO-92, a primeira cúpula mundial sobre desenvolvimento e meio ambiente, realizada no Rio de Janeiro, é bastante reveladora.
Mesmo sem os Estados Unidos?
O entrave de Copenhague se inscreve dentro dessa lógica. Neste momento, a noção de “America first” constitui um fator impeditivo ainda mais efetivo do que a de “market first”. Em função disso, os Estados dispostos a situar as negociações fora do quadro exclusivamente mercantil e dos interesses estritamente nacionais são pouco numerosos.
Entretanto, existem condições que permitiriam superar esse impasse. Certos países da Europa Ocidental e da América Latina5, e até mesmo da África, estão começando a manifestar sua irritação com a situação. E as suas fileiras, por enquanto pouco guarnecidas, poderiam engordar no decorrer das próximas semanas. Alguns setores políticos progressistas e a sociedade civil desses países planejam pressionar certos Estados para incitá-los a prosseguir as negociações, no sentido de prorrogar e/ou substituir o Protocolo de Kyoto pelo Tratado de Copenhague, mesmo sem os Estados Unidos. É verdade que a atual convergência de interesses entre Washington e Pequim complica bastante tal iniciativa. Mas não se deve, necessariamente, parar um trem que está andando por causa de passageiros que nem desejam subir nele.
Quando os Estados Unidos estiverem em condições de fazê-lo, serão bem-vindos.
A história mostra que toda vez que um grupo de nações tomou a decisão de prosseguir no caminho reconhecido como justo e oportuno para o interesse geral, os outros países se juntaram a ele – inclusive os Estados Unidos. Na qualidade de representantes eleitos de 27 povos da UE, os membros do Parlamento Europeu dariam mostras de responsabilidade histórica e de inovação política se incentivassem seus Estados a trabalhar na assinatura de um Tratado de Copenhague, mesmo sem a presença dos americanos.
*Riccardo Petrella é professor de ecologia humana da Academia de Arquitetura, USI, em Mendrisio (Suíça), e professor emérito da cadeira de globalização da Universidade Católica de Louvain (Bélgica).