Os paradoxos da COP30 em Belém
Belém apresenta resultados preocupantes nas dimensões social e econômica, apesar de boa pontuação no aspecto ambiental e nutricional
Em Belém, quase metade da população vive em insegurança alimentar – uma contradição marcante para a cidade que, em novembro, será sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30). Cerca de 40 mil pessoas devem passar pela capital paraense durante os dez dias do evento, que reunirá líderes globais, cientistas e representantes da sociedade civil em busca de soluções para um futuro mais sustentável. O dado, levantado por pesquisas do núcleo Sustentarea, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), escancara o desafio de garantir alimentação saudável e sustentável em um dos centros urbanos mais desiguais do país, e reforça a urgência de que os impactos da conferência se estendam muito além dos seus dias de duração.
“Consigo olhar para um prato e dizer se ele é saudável, pelos nutrientes: se tem cálcio, ferro… Mas não se é sustentável, porque isso envolve muitos outros fatores”, diz Aline de Carvalho, professora da USP e coordenadora do Sustentarea. Para avaliar se uma alimentação é sustentável, é preciso olhar para os Sistemas Alimentares, explica a professora. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), esse conceito abrange toda a cadeia que vai do plantio ao consumo: inclui produção, transporte, armazenamento, distribuição, comercialização e preparo dos alimentos.
O tema vem sendo discutido pelo Sustentarea e por outras instituições desde a 27ª edição da COP, mas ganhou destaque na edição brasileira. Para a COP30, foi lançada a iniciativa “Na mesa da COP30”, que reúne mais de quarenta organizações e possui três grupos de trabalho voltados à articulação para que a alimentação oficial do evento contemple a agricultura familiar, a produção agroecológica e da sociobiodiversidade amazônica; o mapeamento de produtores capazes de atender à demanda do evento e a comunicação para garantir que esses produtores, seus alimentos e seus benefícios sociais, ambientais e para a saúde sejam reconhecidos como efetiva ação climática. “No contexto brasileiro, cerca de 70% das emissões de gases de efeito estufa estão relacionadas aos sistemas alimentares, então é uma discussão essencial se estamos tratando da sustentabilidade”, destaca Carvalho.

Desde 2021, o Sustentarea desenvolve ferramentas para compreender e classificar os Sistemas Alimentares no Brasil – uma tarefa complexa, dada a diversidade entre estados e regiões do país. Com base em uma revisão da literatura científica, os pesquisadores elaboraram um modelo de classificação que utiliza 46 indicadores, organizados em quatro dimensões principais: ambiental, social, econômica e nutricional. O resultado é o Índice Multidimensional de Sistemas Alimentares Sustentáveis Revisado para o Brasil (MISFS-R), publicado no formato de painel interativo no dia 3 de junho. O painel permite navegar pelos estados brasileiros e suas capitais, e revela as diferenças regionais que deixam evidente o papel de aspectos econômicos e sociais nos Sistemas Alimentares.
É com base nesse Índice que Belém apresenta resultados preocupantes nas dimensões social e econômica, apesar de boa pontuação no aspecto ambiental e nutricional. Segundo o estudo, a cidade enfrenta alta concentração de terras, baixa geração de emprego e renda pela agricultura e, o dado mais alarmante, quase metade da população (47%) vive em situação de insegurança alimentar. Os pesquisadores destacam ainda que, embora o percentual de área desmatada em Belém seja menor do que em outras capitais brasileiras, isso se deve principalmente à sua localização em meio à floresta Amazônica. Em termos absolutos, porém, o desmatamento entre 2015 e 2020 somou 1.165 hectares, um número expressivo, considerando o contexto ambiental da região.
“Quando se observa os sistemas alimentares locais, é fundamental considerar os aspectos culturais”, afirma a geógrafa Letícia Machado, que pesquisou os sistemas alimentares urbanos em seu mestrado na USP. Segundo as pesquisadoras, apesar da grande biodiversidade brasileira, os centros urbanos – estejam próximos ou distantes de florestas e áreas agrícolas – enfrentam uma alimentação marcada pela monotonia e pelo difícil acesso a alimentos saudáveis e sustentáveis. “Se você olhar para a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, hortaliças são a primeira coisa que as pessoas deixam de consumir, muitas vezes substituídas por ultraprocessados, em diferentes escalas”, completa Machado.
“Em um país tão grande e que produz tantos alimentos, é um contrassenso haver fome e insegurança alimentar”, destaca Aline de Carvalho. Para a professora, o grande desafio da COP30 é fazer com que os esforços mobilizados para a conferência deixem um legado duradouro em Belém. No caso do Brasil, o desafio é ainda mais amplo: construir Sistemas Alimentares que conciliem o peso da agricultura na economia com a preservação do meio ambiente e o direito da população a uma alimentação saudável e acessível.
Mariana Ceci é jornalista científica e mestranda em Divulgação Científica (Labjor/Unicamp).