Os piores cenários possíveis
Para enfrentar as disputas relativas aos problemas climáticos – e à crise ecológica em geral – é preciso uma mudança radical e estrutural, que atinja os fundamentos do sistema capitalista e altere nossos hábitos de consumo e nossa relação com a natureza
Qual é a situação do planeta em plena Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática? Primeiro balanço: tudo está bem mais acelerado do que se previa. A acumulação de gás carbônico, a elevação da temperatura, o derretimento das geleiras polares e das “neves eternas”, a desertificação dos terrenos, as secas, as inundações, tudo se precipita, e os balanços dos cientistas, mal secou a tinta dos documentos, revelam-se demasiadamente otimistas. Tende-se agora a variações cada vez maiores nas previsões para o futuro próximo. Não se fala mais sobre o que vai acontecer no final do século, ou daqui a meio século, mas nos próximos 20, 30 ou 40 anos. A questão não é mais simplesmente sobre o planeta que deixaremos para nossos filhos e netos, e sim sobre o futuro da atual geração.
Um exemplo muito inquietante: se o gelo da Groenlândia derreter, a elevação do nível do mar poderá ser de seis metros. Isso significa a inundação não só de Daka, capital de Bangladesh, e de outras cidades marítimas asiáticas, mas também de Nova York, Amsterdã e Londres. Ora, estudos recentes mostram que a superfície da calota glacial da Groenlândia que derreteu é 150% superior à média apontada entre 1988 e 20061, chegando a mais de dois mil metros. Segundo Richard Alley, glaciologista da Penn State University, a fusão da calota da Groenlândia, que costuma ser calculada para centenas de anos, poderia ocorrer em poucas décadas2.
Essa aceleração pode ser explicada, entre outras coisas, por efeitos de realimentação (feedback). Alguns exemplos: 1) o derretimento das geleiras do Ártico – já bem reduzidas – diminuindo o albedo, ou seja, o grau de reflexão da irradiação solar (ele atinge seu máximo nas superfícies brancas), só pode aumentar a quantidade de calor absorvida pelo solo; cientistas calcularam que a redução de 10% do albedo do planeta levaria a aumentar cinco vezes o volume de CO2 na atmosfera3; 2) a elevação da temperatura do mar transforma superfícies imensas dos oceanos em desertos sem plâncton nem peixes, o que reduz sua capacidade de absorver o CO2. Esse fenômeno acelerou-se, de acordo com um estudo recente, 15 vezes mais rápido do que se previa nos modelos existentes4!
Outras possibilidades de retroalimentação existentes são ainda mais perigosas. Até agora pouco estudadas, elas não foram incluídas nos modelos do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), mas correm o risco de provocar um salto qualitativo no efeito estufa: 1) no momento, existem 400 bilhões de toneladas de carbono encerradas no permafrost – tundra congelada que se estende do Canadá até a Sibéria. Se as geleiras começaram a derreter, por que o permafrost também não derreteria? E ao se decompor, esse carbono se transforma em metano, que provoca um efeito estufa bem mais forte que aquele oriundo do CO2. 2) Quantidades astronômicas de metano encontram-se também nas profundezas dos oceanos: no mínimo um trilhão de toneladas estão sob a forma de clatratos de metano. Se os oceanos se aquecerem, há possibilidade desse gás ser liberado na atmosfera, provocando uma rápida mudança climática. Além disso, esse gás é inflamável: pesquisadores russos observaram, no Mar Cáspio, emissões de metano sob a forma de tochas que chegam a centenas de metros de altura5. Segundo o engenheiro químico, Gregory Ryskin, uma erupção maior do metano oceânico poderia gerar uma força explosiva equivalente a dez mil vezes o estoque de armas nucleares do mundo6. Mark Lynas cita essa fonte e chega à conclusão que um planeta com seis graus a mais seria bem pior que o Inferno descrito por Dante em A divina comédia…
Além disso, de acordo com o relatório do IPCC, a elevação da temperatura pode ultrapassar esse parâmetro, que é até agora o máximo previsto.
Todos esses processos começam de maneira gradual, mas a partir de um determinado momento podem se desenvolver por meio de saltos qualitativos. A ameaça mais inquietante, considerada cada vez mais pelos pesquisadores, é a de uma runaway climate change [mudança climática descontrolada], a de uma grande variação rápida e incontrolável do aquecimento. Existem uns poucos cenários do pior possível, ou seja, de a temperatura ultrapassar os dois ou três graus. Os cientistas evitam traçar quadros catastróficos, mas os riscos já são conhecidos. A partir de um certo nível da temperatura, a Terra ainda será habitável por nossa espécie? Infelizmente, não dispomos no momento de um planeta de reserva no universo conhecido pelos astrônomos…
A discussão desses “piores cenários possíveis” não é um exercício apocalíptico em vão: trata-se dos perigos reais, contra os quais é preciso tomar todas as medidas possíveis. Tampouco é fatalismo. Ainda não está tudo decidido, é tempo de agir para inverter o curso dos acontecimentos. Mas é preciso o pessimismo da razão em vez de deixar todo o seu lugar para o otimismo da vontade…
As soluções das elites dirigentes
Quem é responsável por essa situação inédita na história da humanidade? É o homem, colocam os cientistas. A resposta é certa, mas insatisfatória: o homem habita a terra há milênios, porém a concentração de CO2 somente começou a se tornar um perigo há poucas décadas. Como marxistas, apontamos: a culpa é do sistema capitalista, com sua lógica absurda e míope de expansão e acumulação infinita, com seu produtivismo irracional, obcecado pela busca do lucro.
Dezembro de 2009 marca a Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, realizada em Copenhague, na Dinamarca. É possível esperar um despertar tardio por parte das oligarquias dominantes? Nada deve ser excluído, mas todas as propostas oficiais até o momento – o relatório Stern é um exemplo esclarecedor disso – são totalmente incapazes de inverter o curso das coisas, porque estão obstinadamente fechadas na lógica da economia de mercado capitalista. Como constata Hervé Kampf, jornalista do Le Monde, em sua interessante obra Comment les riches détruisent la planète: “sistema social que rege atualmente a sociedade humana, o capitalismo opõe resistência de maneira cega às mudanças indispensáveis a serem feitas se se quiser conservar a dignidade e a promessa da existência humana7”.
Para enfrentar as disputas relativas à mudança climática – e à crise ecológica em geral, das quais essas s&atil
de;o a expressão mais ameaçadora – é preciso uma mudança radical e estrutural, que atinja os fundamentos do sistema capitalista: uma transformação não só das relações de produção (a propriedade privada dos meios), mas também das forças produtivas. Isso envolve, antes de mais nada, uma verdadeira revolução do sistema energético e de transportes e dos modos de consumo atuais, baseados na dilapidação e no consumo ostentatório, induzidos pela publicidade. Em suma, trata-se de uma mudança do paradigma da civilização, e da transformação rumo a uma nova sociedade, em que a produção será democraticamente planejada pela população; ou seja, em que as grandes decisões sobre as prioridades da produção e do consumo não serão mais decididas por um punhado de exploradores, ou pelas forças cegas do mercado, nem pela oligarquia de burocratas e especialistas, mas pelos trabalhadores e consumidores. Em síntese, pela população, após um debate democrático e contraditório entre diferentes propostas. É o que designamos pelo termo ecossocialismo.
A alternativa ecossocialista
O que é o ecossocialismo? Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que toma para si as conquistas fundamentais do socialismo – ao mesmo tempo livrando-se de suas escórias produtivistas. Para os ecossocialistas, as lógicas do mercado e do lucro assim como a do autoritarismo burocrático inflamado, o “socialismo real”, são incompatíveis com as exigências de salvaguarda do ambiente natural. Ao mesmo tempo em que criticam a ideologia das correntes dominantes do movimento operário, sabem que os trabalhadores e suas organizações constituem uma força fundamental para qualquer transformação radical do sistema e para a constituição de uma nova sociedade, socialista e ecológica.
James O’Connor define como ecossocialistas as teorias e os movimentos que aspiram subordinar o valor de troca ao valor de uso, organizando a produção em função das necessidades sociais e das exigências de proteção do meio ambiente. Seu objetivo, um socialismo ecológico, seria uma sociedade ecologicamente racional, baseada no controle democrático, na igualdade social e na predominância do valor de uso8. Eu acrescentaria que uma sociedade como essa supõe a propriedade coletiva dos meios de produção, um planejamento democrático que permita a todos definir os objetivos da produção e os investimentos, e uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas; o ecossocialismo seria um sistema baseado não só na satisfação das necessidades humanas, democraticamente determinadas, mas também na gestão racional coletiva das trocas de matérias com o meio ambiente, respeitando os ecossistemas.
O ecossocialismo desenvolve, então, uma crítica da tese da “neutralidade” das forças produtivas que predominava na esquerda no século XX, em suas duas vertentes, socialdemocrata e comunista soviética. Essa crítica poderia se inspirar, a meu ver, em observações de Karl Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem se apropriar do aparelho do Estado capitalista e colocá-lo para funcionar a seu serviço. Eles devem “rompê-lo” e substituí-lo por um outro de natureza totalmente distinta, uma forma não estatal e democrática de poder político.
O mesmo vale, mutatis mutandis, para o aparelho produtivo: por sua natureza e sua estrutura, ele não é neutro, mas está a serviço da acumulação do capital e da expansão ilimitada do mercado. Ele está em contradição com os imperativos de salvaguarda do meio ambiente e de saúde da força de trabalho. É preciso, então, “revolucioná-lo”, transformando-o radicalmente. Isso pode significar, para alguns ramos de produção – as centrais nucleares, por exemplo – “rompê-los”. Em todo caso, as próprias forças produtivas devem ser profundamente modificadas. Com certeza, inúmeras conquistas científicas e tecnológicas do passado são preciosas, mas o conjunto do sistema produtivo deve ser colocado em questão do ponto de vista de sua compatibilidade com as exigências vitais de preservação do equilíbrio ecológico. Isso significa, a princípio, uma revolução energética: a substituição das energias não renováveis e responsáveis pela poluição, pelo envenenamento do meio ambiente e pelo aquecimento do planeta – carvão, petróleo e nuclear – por energias “naturais” “limpas” e renováveis, como água, vento, sol, além da redução drástica do consumo de energia (e, portanto, das emissões de CO2).
Mas é o conjunto do modo de produção e de consumo – baseado, por exemplo, no veículo individual e em outros produtos desse tipo – que deve ser transformado, simultaneamente à supressão das relações de produção capitalistas e ao início de uma transição ao socialismo.
Entendo por socialismo a ideia originária, comum a Marx e aos socialistas libertários, que não tem muito a ver com os pretensos regimes “socialistas” que ruíram a partir de 1989: trata-se de uma “utopia concreta” – para utilizar o conceito de Ernst Bloch – de uma sociedade sem classes e sem dominação, em que os principais meios de produção pertencem à coletividade, e as grandes decisões sobre os investimentos, a produção e a distribuição não são abandonadas às leis cegas do mercado, a uma elite de proprietários, ou a um bando burocrático, mas tomadas, depois de um amplo debate democrático e pluralista por toda a população. O que está em jogo mundialmente nesse processo de transformação radical das relações dos seres humanos entre si e com a natureza é uma mudança de paradigma civilizacional, concernente não só ao aparelho produtivo e aos hábitos de consumo, mas também ao habitat, à cultura, aos valores, ao estilo de vida.
Sim, nos responderão, essa utopia inspira simpatia, mas enquanto a esperamos, convém manter os braços cruzados? Certamente não! É preciso travar uma batalha para cada avanço, cada medida de regulamentação das emissões de gases de efeito estufa, cada ação de defesa do meio ambiente.
O combate por reformas ecossocialistas pode ser portador de uma dinâmica de mudança, desde que se recusem os argumentos e as pressões dos interesses dominantes em nome das “regras do mercado”, da “competitividade” ou da “modernização”.
Algumas demandas imediatas já são ou podem rapidamente se tornar o ponto de convergência entre movimentos sociais e ecológicos, sindica
tos e defensores do meio ambiente, “vermelhos” e “verdes”. São demandas que muitas vezes “prefiguram” o que poderia ser uma sociedade ecossocialista:
• a substituição progressiva da energia fóssil por fontes de energia “limpa”, principalmente a solar;
• a promoção de transportes públicos – trens, metrôs, ônibus, bondes – baratos ou gratuitos como alternativa ao abafamento e à poluição das cidades e do campo provocados pelo veículo individual e pelo sistema de transportes rodoviários;
• a luta contra o sistema da dívida e os “ajustes” ultraliberais impostos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial aos países do Sul e com consequências dramáticas: desemprego maciço, destruição de proteções sociais e de culturas alimentícias, destruição de recursos naturais para exportação;
• defesa da saúde pública contra a poluição do ar, da água (lençóis freáticos) ou dos alimentos causada pela avidez das grandes empresas capitalistas;
• desenvolvimento subvencionado da agricultura orgânica em lugar da agroindústria;
• redução do tempo de trabalho como resposta ao desemprego e como visão da sociedade que privilegia o tempo livre em relação à acumulação de bens9.
A lista das medidas necessárias existe, mas dificilmente é compatível com o neoliberalismo e com a submissão aos interesses do capital… Cada vitória parcial é importante, sob condição de não se limitar às conquistas, mas de se mobilizar imediatamente para um objetivo superior, numa dinâmica de radicalização crescente. Os triunfos nessa batalha são preciosos, não só porque desaceleram a corrida em direção ao abismo, mas porque permitem que as pessoas, os trabalhadores, os indivíduos, as mulheres, as comunidades locais, principalmente camponesas e indígenas, se organizem, lutem e tomem consciência dos terrenos da disputa, compreendam, por meio de sua experiência coletiva, a falência do sistema capitalista e a necessidade de uma mudança da civilização.
*Michael Löwy é sociólogo e diretor de pesquisa em sociologia do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) de Paris. Autor do La Pensée de Che Guevara (Paris, Syllepse, 1997) e co-autor, com Olivier Besancenot, de Che Guevara: une braise qui brùle encore (Paris, Mille et une nuits, 2007).