Os poros abertos da América Latina
O coronavírus não escolhe classe social, religião, gênero ou etnia, mas sabemos que o impacto dele será maior sobre aquelas populações mais vulneráveis. Os povos indígenas são guardiões não só da nossa floresta, mas da nossa história e da nossa identidade cultural como povo brasileiro e latino americano
Quando Eduardo Galeano escreveu sua obra “As veias abertas da América Latina”, na década de 1970, fez uma crítica ao colonialismo e contestou uma visão eurocêntrica da história. No prefácio ele diz: “O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”. Diante da crise que assola a humanidade é trágico que milhares de pessoas estejam morrendo na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos. Porém, existem populações indígenas inteiras na América Latina que estão sob a ameaça de serem extintas, mas infelizmente, muitas vezes, estes povos são esquecidos ou só são lembrados depois de dizimados.
Um estudo genético identificou a “cocoliztli” como possível agente patogênico que matou mais de 50% dos povos indígenas mexicanos depois da chegada dos espanhóis, sendo considerada a primeira grande epidemia da América Latina por volta de 1545. Além do contágio acidental, inúmeras doenças, como a varíola por exemplo, foram utilizadas como armas biológicas para dizimar povos originários em todo o território latino americano, num verdadeiro genocídio indígena.
De acordo com a estimativa de historiadores e antropólogos, pode-se dizer que a população indígena no Brasil teria diminuído em mais de 80%, devido, principalmente, aos efeitos de doenças como a varíola, sarampo, tifo, caxumba, cólera e também a gripe. Em 1.500 estima-se que haviam mais de 5 milhões de indígenas vivendo em terras tupiniquins. Segundo o IBGE, atualmente restam cerca de 305 povos indígenas, somando 896 mil pessoas o equivalente a 0,47% da população total do país.
Isolados
Ainda hoje a gripe segue matando populações indígenas isoladas que nunca tiveram contato com o “homem branco”. O contágio ocorre de forma indireta através de outras etnias infectadas por seringueiros e madeireiros que atuam na região há mais de um século. A gripe é considerada por especialistas da Funai como sendo o primeiro sintoma do fim do isolamento de uma aldeia. O Brasil é o país com mais povos indígenas isolados, atualmente existem 28 comunidades confirmadas, podendo haver mais de 86 que ainda não foram encontradas.
Em todo o Brasil já foram contabilizadas, pela plataforma de monitoramento do Instituto Socioambiental, quatro mortes de indígenas decorrentes da Covid-19 de três etnias distintas (Kokama, Tikuna e Ianomâmi), três delas no Amazonas, estado que concentra quase a totalidade dos óbitos. Nos últimos dias, o número de casos de indígenas infectados com o novo coronavírus disparou e teve um aumento de 156%.
Em números relativos, se compararmos a quantidade de óbitos com os casos confirmados, os povos indígenas têm o mesmo índice de letalidade da Itália (13%), bem acima do Brasil e do resto do mundo (6%). O problema, todavia, pode ser ainda muito mais grave, uma vez que os dados disponíveis sobre os casos de indígenas infectados podem estar subnotificados, afinal não há monitoramento oficial dos casos de indígenas que vivem nas cidades e estão sendo atendidos fora do sistema de saúde indígena.
Há que se considerar também os impactos da Cvid-19 pós-crise, já que pelo fato de não possuírem memória imunológica contra outros diversos vírus da gripe, sem uma vacina, o tempo para desenvolverem resistência à doença é muito maior do que em áreas urbanas, pode levar anos, e o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas não está preparado e não dispõe de equipamentos para o tratamento desse tipo de síndrome respiratória aguda.
Embora a situação já seja preocupante, é preciso lembrar que a forma de disseminação e imunização do coronavírus será muito diferente entre os povos indígenas, principalmente na Amazônia Legal, onde se concentram 98.25% da extensão de todas as terras indígenas do país.
Pressões de grileiros, missionários, madeireiros e mineradores
Em aldeias isoladas, tudo demora a chegar: a informação, a imprensa, os remédios, os testes, os suprimentos, a comida e também os cuidados médicos; mas grileiros, missionários, mineradores e madeiros chegam rapidamente e são os principais vetores de transmissão do vírus. Quando tivermos controlado o coronavírus nas cidades, como faremos para impedir que ele chegue às aldeias? Para eles o problema está só começando e não tem prazo para acabar.
Outra grave ameaça é justamente o contato com povos indígenas de países que fazem fronteira com o Brasil, como o Peru, onde o coronavírus já infectou mais de 20 mil pessoas, sendo o segundo país do ranking de óbitos na América Latina. Cabe lembrar que nossa cartografia pouco significado tem para os povos originários que vivem nessas terras há séculos.
Há ainda o risco de contágio por meio do contato com cédulas de papel moeda e aglomerações em pequenas cidades do interior do Brasil, como é o caso de São Gabriel da Cachoeira, no alto Rio Negro, onde se costuma fazer o saque dos benefícios assistenciais para a compra de mantimentos. Muitos índios considerandos de recente contato pela Funai, como os das etnias Hupd’äh, Pirahã, Yuhupdeh, Deni, Kulina, Kanamari e Yuhupdeh, que viajam às vezes mais cinco dias de “rabeta” para chegar aos municípios onde existem agências bancárias e mercados.
A ausência de testes e de dados nas áreas indígenas mais afastadas e remotas nos deixa completamente às cegas quanto ao real tamanho do problema que estamos enfrentando. Temos que estar preparados para os desafios que teremos pela frente. Afinal, o fantasma do coronavírus ainda irá assombrar os povos indígenas isolados por bastante tempo, mesmo depois que tivermos achatado a curva nos grandes centros urbanos em todo mundo.
Preocupado com os impactos do coronavírus entre os povos indígenas do Alto Rio Negro, o Ministério Público Federal (MPF), propôs duas recomendações ao Ministério da Cidadania, ao Ministério da Defesa, ao INSS e aos Correios, visando conter a propagação do patógeno e garantir a segurança alimentar e nutricional dessas populações enquanto durarem as orientações do Ministério da Saúde de isolamento social. Já o Ministério Público Estadual conseguiu uma liminar para que os casos graves de Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira sejam removidos em UTIs móveis para Manaus no prazo máximo de 24h, todavia o sistema público de saúde em Manaus já está colapsado.
Todavia, em total descaso com os povos indígenas da região, muitas das medidas propostas ainda não foram acatadas pelos órgãos responsáveis, principalmente as apresentadas à Secretaria Executiva do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no sentido de minimizar aglomerações nas sedes dos municípios para busca de saque de benefícios do Bolsa Família e Auxílio Emergencial. Diante da inércia do governo a questão deverá ser judicializada, por meio de Ação Civil Pública nos próximos dias.
Desacordo
Cabe reforçar que os procedimentos adotados pelo governo federal, neste caso, estão em desacordo não somente com as orientações sanitárias e epidemiológicas da Organização Mundial da Saúde (OMS), como também violam o artigo 6º, da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga os países signatários à realizarem consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais quanto à medidas legislativas ou administrativas sempre que estas possam afetá-los diretamente.
Essas populações são consideradas vulneráveis ao coronavírus e estão ameaçadas de serem dizimadas, por não terem, na maioria das vezes, sequer antígenos contra um vírus da gripe comum. Um estudo recém-publicado pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) mostrou que mais de 200 terras indígenas na Amazônia têm alto risco para Covid-19. A Região Norte concentra 62% das terras indígenas em grau de vulnerabilidade epidemiológica crítica ou intensa, sendo as mais ameaçadas as Guajahã, Mapari, Sururuá, Jarawara, Jamamadi e Kanamati.
Em 2019 doenças respiratórias foram responsáveis por 22,6% das mortes de crianças indígenas com menos de um ano, um dos maiores índices de mortalidade infantil registrados no país. Outro fator de risco são os idosos, sendo que, segundo o IBGE, um quinto dos indígenas tem idade avançada acima de 50 anos de idade.
Na América Latina, segundo relatório da ONU, a mortalidade infantil é 70% superior em comunidades indígenas e a expectativa de vida desses povos é 10 anos menor do que a média mundial. Em 2010 o mesmo relatório já alertava para o risco de que 90% de todos os idiomas indígenas do mundo poderiam desaparecer nos próximos 100 anos. Um dos fatores que mais impacta esta estimativa é justamente a morte precoce dos índios mais velhos da aldeia, que são a memória das tradições e costumes da cultura indígena.
Na época não se pensava ainda nos efeitos nefastos da pandemia que estamos vivendo, que certamente irá agravar ainda mais esse quadro crônico de esquecimento e desaparecimento de etnias indígenas em todo o mundo. Quanto conhecimento morrerá junto com os povos indígenas se o coronavírus os afetar? Este risco é iminente! Onde iremos enterrar o nosso patrimônio cultural imaterial?
Como revela o etnobotânico Mark Plotckin: “Esses povos conhecem as florestas e seus tesouros medicinais melhor do que nós e melhor do que possamos vir a saber. Mas também, essas culturas, as culturas indígenas, estão desaparecendo mais rápido que as próprias florestas. E a maior espécie com maior risco de extinção da Floresta Amazônica não é a onça-pintada, não é a harpia, são as tribos isoladas e não contatadas”. Quem sabe a cura da Covid-19 não possa estar em alguma planta medicinal perdida na imensidão da floresta amazônica, cujos povos indígenas utilizam sua sabedoria ancestral para o tratamento de inúmeras doenças?
O coronavírus não escolhe classe social, religião, gênero ou etnia, mas sabemos que o impacto dele será maior sobre aquelas populações mais vulneráveis. Os povos indígenas são guardiões não só da nossa floresta, mas da nossa história e da nossa identidade cultural como povo brasileiro e latino americano. De agora em diante, mais do que nunca eles precisarão de cuidados para continuarem existindo. Diante dos desafios que temos pela frente enquanto humanidade, é importante aprendermos com o passado e pensarmos o futuro, cuidando uns dos outros como se fossemos uma única “tribo”.
Lucas Ribeiro Prado é bacharel em Direito, servidor público e escritor.