Os sortilégios da cultura
Figura obrigatória dos programas eleitorais, os projetos relativos à cultura refletem as disposições ideológicas de cada partido. Alguns veem na matéria um campo identitário, outros a enxergam como uma bagagem educativa a ser distribuída para cada um. Seu papel-chave na transformação social parece, entretanto, esquecido
Nada mais escorregadio nem mais inequívoco que a definição da palavra “cultura”. Na fundação do ministério francês do mesmo nome, em 1959, ela remetia às obras, ao patrimônio, às criações da arte e da mente. Segundo o Larousse, ela designa “o enriquecimento da mente por exercícios intelectuais – conhecimentos num campo específico” e “o conjunto dos fenômenos materiais e ideológicos que caracterizam um grupo étnico ou uma nação, uma civilização”. Essa segunda acepção está próxima daquela da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco): “A cultura é um conjunto complexo que inclui saberes, crenças, artes, posturas morais, direitos, costumes e todas as outras capacidades e hábitos adquiridos por um ser humano como membro de uma sociedade”.1 Essas diferentes concepções se inscrevem numa tensão entre “um uso [da palavra] restrito às obras de arte reconhecidas como tal e uma abordagem antropológica mais ampla que engloba maneiras de pensar e fazer de diferentes grupos (nações, etnias, classes)”.2
Os principais candidatos da eleição presidencial estão – o que é ótimo – quase todos de acordo sobre dois pontos: a cultura é importante, se não central, e é preciso conservar suas especificidades, do status dos amadores aos artistas excepcionais, de seu papel na difusão do país à proteção da língua. Mas quase todos destacam os limites atuais de sua democratização, que exige o desenvolvimento da educação artística e cultural na escola – exceto Marine Le Pen, da Frente Nacional (FN), que se dedica em contrapartida a promover o ensino dos ofícios de arte, tão requintadamente patrimoniais. Mas a qual “cultura” eles estão se referindo? Àquela que é compreendida como a essência de um grupo, até mesmo do indivíduo que dela faz parte, ou àquilo que se pode chamar de “cultura geral”? Essas questões semânticas não são sem importância política: qual é a extensão do campo da cultura? Qual papel, qual função os poderes públicos devem fazê-la desempenhar? De qual esperança ela é portadora?
Dissolver as diferenças
À direita, a definição é simples, e pode-se perguntar em qual medida ela não estende a da Unesco até suas consequências potenciais: “A cultura é o fundamento de nossa identidade, de nosso modo de vida, de nossa história”, “última muralha contra a barbárie”, que permite “a integração de novos integrantes”; ela contribui para “a atratividade do território” e sua “irradiação”, segundo o programa de François Fillon (Les Républicains/Os Republicanos).3 Na FN, se a palavra não aparece, a ideia é a mesma, e a cultura seria antes de tudo um patrimônio que serve de base para uma identidade: os “valores” e “tradições da civilização francesa”. Como tal, “a defesa e a promoção de nosso patrimônio histórico e cultural” deverão estar inscritas na Constituição. A cultura é ao mesmo tempo depositária e símbolo do espírito nacional.4
Seguramente, colocar a cultura como a alma do país é algo carregado de coisas implícitas e exclusões. Mas não é totalmente certo que o “diagnóstico” de Emmanuel Macron, para retomar seu léxico, seja menos equivocado.5 Ele estima que a cultura é constituída por “nossos valores, nossa língua, nossas emoções partilhadas”. Ela “define aquilo que somos”, “constrói uma linguagem comum e nos permite sair das atribuições de residência que criam as origens sociais”. Mas como essa “linguagem comum”, que só pode remeter a conhecimentos, referências coletivas, evidenciar códigos, valores, seria por si mesma libertadora? Como articular esse “comum” com o desejo “que cada jovem possa ter acesso à cultura, qualquer que ela seja”, ou com esta afirmação durante um comício em Lyon, em 7 de fevereiro: “Não há cultura francesa. Há uma cultura na França. Ela é diversa”? O mistério permanecerá intacto.
Quando, em contrapartida, Macron afirma que seu projeto é totalmente cultural, “um projeto de emancipação, uma resposta às barreiras individuais que a sociedade cria”, colorindo de rosa essa dimensão de seu programa, fica claro que essa “emancipação” se refere, na realidade, ao controle da cultura dominante e tem a ver mais com o plano de carreira que com a aquisição de uma reflexão crítica e de um saber que abra horizontes: a cultura permitirá saltar as barreiras para subir na escala social, se ousarmos assim misturar as metáforas. Em outras palavras, a famosa democratização cultural, enfim acelerada por diversas medidas, cuja educação artística na escola, um “passe cultural” para os jovens etc., dará a cada um os meios de ser bem-sucedido. Encontram-se aqui elementos dos programas de Fillon ou de Marine Le Pen: desenvolver as práticas coletivas musicais, estender os horários de abertura dos equipamentos, sustentar o mecenato etc. “Pilar de nossa identidade” (Fillon) ou “pilar de nossa fraternidade” (Macron), em qualquer caso se espera que a cultura dissolva as diferenças em uma ótima união.
Para Benoît Hamon, a cultura, “emancipadora e criadora de conexão social”, é “essencial à República”.6 Ela seria ainda por cima intensa e intrinsecamente virtuosa, pois constitui “uma arma contra o fascismo em todas as suas formas”, o que não deixa de fazer sonhar se nos lembrarmos dos muitos nazistas e colaboradores impecavelmente “cultos”. Quando o candidato socialista associa estreitamente cultura e República, devemos entender aí uma variação sobre o pensamento de Jean Zay, indicado ministro da Educação Nacional e das Belas-Artes em junho de 1936 e iniciador de uma grande política cultural e educativa, para quem “a República se apoia antes de tudo no civismo e na inteligência dos cidadãos, ou seja, em sua educação intelectual e moral”?7 Não exatamente.
Entre os “objetivos” de Hamon, o de “fazer dos direitos culturais uma realidade, quer se trate do acesso às obras ou do reconhecimento de todas as culturas”, sinaliza sua singularidade.8 A Declaração de Fribourg sobre os direitos culturais postula que qualquer pessoa tem o direito de escolher e de ter respeitada sua “identidade cultural, compreendida como o conjunto das referências culturais pelo qual uma pessoa, sozinha ou em comum, se define, se constitui, se comunica e pretende ser reconhecida em sua dignidade”; além disso, ninguém pode ver imposta a si mesmo a menção de uma referência ou ser assimilado a uma comunidade cultural contra sua vontade. Esses direitos, inscritos na lei “Nova organização territorial da República” (Notre), de 2015, implicam uma política à la carte, o que ecoa Hamon. Assim, cada “lugar de arte” deveria, segundo ele, considerar “as identidades culturais de seus públicos existentes ou potenciais”. Mas quem define essas identidades? Será que se trata, aliás, de identificar práticas como características de uma comunidade, de suscitar obras que convenham àquilo que poderia então se assemelhar a uma clientela? Que sentido dar à “ligação social” que a cultura deveria tornar mais firme? E é certo que encerrar cada um no que se imagina ser sua comunidade cultural faz parte da emancipação?
Chegamos a nos perguntar se o uso da palavra “cultura” não representa uma passagem obrigatória para que alguém possa se declarar um fervoroso partidário da democracia, da luta contra as desigualdades e da inescapável emancipação. De maneira surpreendente, a “fratura cultural” é ritualmente denunciada, inclusive por Fillon, mas sem que ela seja minimamente vinculada a uma injustiça social qualquer. Parece claro, de resto, que os “excluídos” da cultura teriam vocação para reconhecer a si mesmos, porque praticamente não são identificados como operários, desempregados, pobres…
A impossível visão contábil da existência
O programa de Jean-Luc Mélenchon (La France Insoumise/A França Rebelde)9 parece também não fugir do clichê, postulando já de início que a cultura é “o motor e o reflexo da libertação individual e coletiva”, porque ela “nos permite ultrapassar nossas origens, nossos limites, os conformismos, o lugar que nos é atribuído”. Que bela confiança em poderes desveladores outrora atribuídos à instrução e ao desenvolvimento de um saber crítico… Em certos aspectos, esse programa se aproxima do impulso fundador do ministério de André Malraux. Porque a cultura remete aqui “aos bens da humanidade, entre os quais estão as construções humanas, as artes e o patrimônio natural”. Isso significa que eles são comuns a todos os cidadãos e que cada um deve estar em condições de se apropriar deles graças à ação pública. Da mesma forma, estende-se aí um interesse muito concreto concedido às questões de dinheiro – decisivas –, do poder das multinacionais à austeridade europeia, passando pelo mecenato, para denunciar sobretudo sua dimensão ideológica. É igualmente aí que se trata, enfim, afetuosamente dos artistas, que podem contribuir “para tornar impossível uma visão contábil da existência”. Essa convicção, expressa de maneira bastante fugaz, não impede de “encorajar a coconstrução da programação cultural com os públicos”, o que lembra um pouco a preconização de Hamon, e de “associar representantes dos públicos até na indicação da direção e nas orientações estratégicas” dos estabelecimentos. Democracia, quando você nos apoia… Pode-se, no entanto, temer que dessa maneira se abra a porta ao clientelismo e aos índices de aceitação.
De maneira surpreendente, esses programas interessam sobretudo ao audiovisual, à imprensa e ao esporte, mas nenhum integra a cultura científica, muito menos uma reflexão sobre a educação popular, que não se saberia reduzir à animação sociocultural defendida sobretudo por Mélenchon. Apesar dessas proposições precisas e por vezes pertinentes, a ambição dos candidatos permanece bem medida no sentido de que nunca vislumbra com vigor que a cultura possa contribuir para suscitar o desejo ativo de mudar o mundo.
*Evelyne Pieiller é jornalista do Le Monde Diplomatique.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}