Os zoos são lógicos?
Qual a finalidade de reproduzirem esses seres vivos para mantê-los trancados? Qual o real interesse em “preservar a espécie” sem que se tenham políticas de preservação ambiental e soltura/reintrodução delas? A resposta se encontra nas cifras
“Instituições que desempenham importante papel na conservação e preservação das espécies”. “Centros que permitem a educação e lazer ambiental”. Em qualquer zoológico que se visita, essas são frases são reproduzidas e repetidas como um mantra. No entanto, você já se perguntou o que elas realmente significam?
Antes de discutirmos esse ponto, precisamos entender como surgiram essas instituições. As datas variam. É sabido que o aparecimento desse tipo de entretenimento nos remete aos primórdios da humanidade. No Iraque e Egito antigo – cerca de 5,5 mil anos atrás – está o início dessa prática de exploração animal, em cativeiro. Grécia, China e Índia também estão entre os pioneiros em manter animais selvagens trancafiados. Os zoológicos como centros de entretenimento estão associados às propriedades particulares, remetidas ao período pós-Revolução Francesa. Grandes imperadores, vangloriando-se de seu status e megalomania, aprisionavam e expunham aborígenes, negros, índios e pessoas com deformidades como “atração” e até mesmo como recompensa de suas atividades colonizadoras. Mais tarde, dado o interesse da sociedade, voltaram as atenções para os animais, que eram capturados e expostos como troféus vivos.1
No Brasil, a história dos zoológicos tem início em 1882 com o Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará, que inaugurou uma coleção de animais representativos da fauna amazônica anexa, seguida pelo Passeio Público de Curitiba no Paraná. Na década de 1960, muitos zoológicos surgiram no interior, mantidos pelas prefeituras. Em 1977, na cidade de Porto Alegre, foi criada a Sociedade de Zoológicos e Aquários do Brasil (SZB), entidade não governamental que coordena e orienta o processo de evolução dos zoológicos nacionais.
A retórica vazia de que são importantes para a preservação das espécies cai por terra quando indagamos: qual a necessidade de manter seres trancafiados e não investir em projetos de preservação e reintrodução em seus habitats naturais?
A pergunta – incômoda e carente de resposta lógica – esconde uma resposta que poucos admitem: o objetivo está no lucro que esses animais geram; seja na forma camuflada de “permutação” e até no tráfico ilegal entre essas instituições sérias (sic).
Outra balela defendida pelos mantenedores desses espaços é a da educação ambiental. Que educação é essa, que mostra animais estereotipados, atormentados, doentes psicologicamente, adotando comportamentos totalmente irregulares e fora de seus padrões normais? Hoje, com tantos canais mostrando a vida selagem in loco, esse é mais um discurso raso e mentiroso, que tenta subsidiar interesses capitalistas.
Qual a finalidade de reproduzirem esses seres vivos para mantê-los trancados? Qual o real interesse em “preservar a espécie” sem que se tenham políticas de preservação ambiental e soltura/reintrodução delas? A resposta se encontra nas cifras. São seres sencientes explorados pelo capital, aprisionados em recintos diminutos e sem o mínimo de respeito às suas necessidades. Argumentam que existem normas a seres seguidas pelos zoológicos. De fato, elas existem, mas segundo um dos últimos levantamentos realizados, no Brasil apenas 37,5% dos zoológicos são licenciados pelo Ibama e, consequentemente, vistoriados – o que é caminho aberto para irregularidades e maus-tratos.2
Importante lembrar que “maus-tratos” não envolvem apenas agressões físicas, mas recintos inadequados e diminutos que expõem os animais ao assédio do público, falta de alimentação e profissionais capacitados, comprometendo as necessidades fisiológicas básicas. Privados de refúgios, em ambientes que não refletem e nem atendem suas necessidades, não é raro encontrarmos animais depressivos, apáticos e que manifestam doenças por conta dessas condições.3,4,5
Birkett & Newton-Fisher (2011) mostraram, em recente trabalho, que comportamentos anormais estavam presentes em todos os chimpanzés que eles avaliaram, em zoológicos.6 Estudos de Pizzutto (2006) comprovam que esse tipo de assédio é prejudicial à saúde física e mental dos primatas.7 Mais recentemente, a professora de Neurociência, Lori Marino, publicou um artigo bem didático apresentando vários argumentos e evidências científicas que afirmam que os danos causados pelos zoológicos, além de psicológicos, afetam a própria anatomia e fisiologia dos animais.8,9
Em minha tese de doutorado, na qual trabalhei com o comportamento de chimpanzés, após vasta consulta bibliográfica, exponho outros tantos trabalhos científicos que demonstram o dano que esses centros de tortura causam aos animais aprisionados.10 Em meus estudos, também constatei que, um ambiente maior, longe do estresse e do assédio público, possibilita aos primatas maior movimentação, tornando-os ativos durante boa parte do dia, de maneira similar ao que ocorre no ambiente natural. Quando isolados, além de ir contra sua natureza social, torna-os ociosos e propensos a atividades estressantes.
Em recente levantamento, que comprova a influência negativa dos visitantes, o Zoológico da Palestina observou aumento na taxa de nascimentos três vezes maior entre os animais justamente no período imposto pela quarentena.11 De acordo com a matéria, veiculada pelo portal UOL, era comum avestruzes não conseguirem incubar seus ovos de forma adequada, justamente pela presença de pessoas ao redor. No entanto, com a pandemia e o isolamento das pessoas, a fêmea conseguiu gerar onze ovos e construir o ninho de forma adequada. Isso também foi observado nos babuínos, cujos abortos eram constantes, e agora geraram filhotes.
Em relação ao cruzamento das espécies cativas, não há outro argumento que não seja o interesse em “permuta”. Além de romper os laços familiares dos animais, impedindo a formação de aprendizado dos animais, o que pouco – ou nada – se discute é a relação da epigenética, cujos fatores ambientais – como estresse causado pela separação de um núcleo familiar, alimentação inadequada e escassa, traumas do cativeiro – influenciam não apenas nos indivíduos, mas nas gerações subsequentes. Paralelamente, como é tradicional entre os zoológicos, as reproduções ocorrem, geralmente, sempre com uma população padrão, inviabilizando a variabilidade genética e, consequentemente, favorecendo o surgimento de problemas, que se tornam hereditários.
Mas é claro que, a partir do momento que esses fatos são divulgados por nós, a comunidade científica, somos vistos como inimigos desses locais. Seria no mínimo incoerente que, após nossas avaliações científicas criteriosas e comprovadas, nos mantivéssemos calados perante tudo isso.
A exploração dos animais é altamente lucrativa. Tanto por vias lícitas como de forma ilícita (o tráfico de animais). Em um dos casos que mais repercutiu no país, em 2013 a ex-presidente do Zoonit, Giselda Candiotto, foi presa acusada de tráfico internacional, contrabando e apropriação indevida de animais.12 São vários os casos em que pessoas com interesses escusos acabam por ocupar cargos nessas instituições. E esse tipo de situação não se restringe aos grandes centros. No interior, os acontecimentos são rotineiros, e se perpetuam pela falta de fiscalização e de notificação pela imprensa. Em Americana (SP), por exemplo, tivemos um advogado, proprietário de um zoológico particular e de um criadouro, o diretor do Parque Ecológico “Engenheiro Cid Almeida Franco”.9 Curiosamente, durante sua gestão, vários animais nasceram, outros simplesmente sumiram, muitos morreram de forma suspeita ou negligência, e a permuta entre zoológicos foi enorme. O mesmo diretor, inclusive, foi multado – mas a Prefeitura da cidade é que teve que arcar com a multa – por manter suas serpentes nativas e exóticas sem autorização do órgão ambiental competente no zoológico público.
Cabe aqui a denúncia e o repúdio para com essas instituições. Por mais que tentem argumentar e defender esse tipo de escravidão/exploração, é inadmissível a manutenção desses centros de tortura, ainda mais quando servem de fachada para enriquecimento dos (ir)responsáveis.
Tal como o agronegócio, escondem os fatos que estão por trás, nem sempre à tona para a conscientização da população, mas sempre vendendo a imagem de instituições ilibadas. Sendo assim, a pergunta que carece de resposta segue a mesma: qual a lógica dos zoológicos?
A solução, como sempre, passa pela educação. A partir do momento que se informa e divulga as novas e importantes evidências científicas, faz-se com que as pessoas reflitam sobre e, assim, deixem de apoiar esses espaços. Além disso, recentes decisões judiciais, que reconhecem os animais não como “objetos” e “propriedades”, mas como seres vivos, mostra que essa libertação é possível. Recentemente, o Supremo Tribunal de Islamabad, no Paquistão, reconheceu explicitamente que os animais têm direitos legais naturais e proteção de acordo com a Constituição do país.13 Decisão semelhante foi proferida pela Justiça argentina, que declarou, em 2015, um orangotango e um chimpanzé como personalidade jurídica, concedendo, inclusive, habeas corpus a favor.14
A personalidade jurídica é apenas um caminho para um status legal além da mera propriedade. No entanto, o embate é longo e carece de ações impetradas, o que nem sempre é conseguido e é notório que nosso Código Civil é obsoleto quanto ao tema. Classificar animais como meros objetos, privando-os do direito à vida e à dignidade é inconcebível. As decisões e discussões sobre essa vertente protecionista e abolicionista em vários países é um indicador de que isso se faz necessário.15
Não se pode banalizar o sofrimento desses prisioneiros inocentes, tratando-os indistintamente como seres insensíveis. Defender esse tipo de postura é inadmissível. Os tempos são outros, a humanidade e a própria Ciência evoluíram. É preciso dar um basta a essa falaciosa propaganda desses campos de concentração. Apoiar esses locais, da maneira como são, é inconsistente com a verdadeira preservação e conservação do ambiente e dos animais.
É fundamental a defesa pela extinção dos zoológicos enquanto meio de entretenimento e movimentação legítima de animais. Que sejam transformados em santuários, utilizados para a reabilitação temporária de animais que necessitam de cuidados para posterior soltura no ambiente – ou, quando isso não for possível, que as visitações sejam proibidas, uma vez que são extremamente prejudiciais à saúde física e mental dos animais.16,17,18
Se há alguma preocupação por parte desses locais com a preservação desses seres, que se invista na manutenção dos habitats naturais, que segue sendo dizimado pelo avanço das cidades e do agronegócio. Caso contrário, tudo o que dizem e tentam argumentar não passa de falácias que incorporam palavras bonitas e pomposas, sem qualquer utilidade prática, empática e humana, com o objetivo de manipular a opinião pública desinformada, enquanto terceiros seguem atendendo aos interesses do capital.
Caso todas essas evidências científicas não tenha te convencido, faça uma reflexão: você gostaria de estar no lugar desse animal? Em tempos de falta de empatia, esse pode ser um importante começo para mudança de nossas atitudes.
Luiz Fernando Leal Padulla é professor, doutor em Etologia, mestre em Ciências, especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”.
Referências
1 O Brasil também teve zoológicos humanos. https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-brasil-tambem-teve-zoologicos-humanos/
2 Zoos fora da lei: apenas 44 das 111 instituições brasileiras cumprem regras. https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/zoos-fora-da-lei-apenas-44-das-111-instituicoes-brasileiras-cumprem-regras-2756978
3 POIRIER, C.; BATESON, M. 2017. Pacing stereotypies in laboratory rhesus macaques: Implications for animal welfare and the validity of neuroscientific findings. Neuroscience & Biobehavioral Rewies. 83: 508-515. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0149763417302348?via%3Dihub
4 RIDDLE, H.S.; STREMME, C. 2011. Captive elephants – an overview. Journal of Threatened Taxa. 3 (6): 1826-1836. Disponível em: https://www.threatenedtaxa.org/index.php/JoTT/article/view/656/1151
5 GRECO, B. J. et al. 2017. Why pace? The influence of social, housing, management, life history, and demographic characteristics on locomotor stereotypy in zoo elephants. Applied Animal Behaviour Science. 194: 104-111. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0168159117301454?via%3Dihub
6 BIRKET, L.P.; NEWTON-FISHER, N.E. How Abnormal is the Behaviour of Captive, Zoo-Living Chimpanzees? PLoS ONE 6(6): e20101 DOI: 10.1371/journal.pone.0020101, 2011.
7 PIZZUTTO, C.S. Estudo sobre a influência das técnicas de enriquecimento ambiental nos parâmetros endócrino-comportamentais de antropóides não-humanos mantidos em cativeiro. 344p. 2006. Tese (Doutorado em Reprodução Animal) – Universidade de São Paulo, USP: São Paulo.
8 The neural cruelty of captivity: Keeping large mammals in zoos and aquariums damages their brains. https://theconversation.com/the-neural-cruelty-of-captivity-keeping-large-mammals-in-zoos-and-aquariums-damages-their-brains-142240
9 DIAMOND, M. C. 2001. Response of the Brain to Enrichment. Anais da Academia Brasileira de Ciências. 73 (2): 211-220. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0001-37652001000200006&lng=en&tlng=en
10 PADULLA, L.F.L. Estudos comportamentais de grupos de chimpanzés vivendo em condições de cativeiro. 111p. 2013. Tese (Doutorado em Etologia) – Bircham International University, BIU: Madrid.
11 Zoológico palestino registra alta em nascimentos de animais após sumiço de visitantes. https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2020/06/12/zoologico-palestino-registra-alta-em-nascimentos-de-animais-apos-sumico-de-visitantes.htm
12 Ex-presidente do ZooNit é presa por tráfico de animais. https://oglobo.globo.com/rio/bairros/ex-presidente-do-zoonit-presa-por-trafico-de-animais-10281884
13 In the Islamabad High Court, Islamabad (JUDICIAL DEPARTMENT). https://aldf.org/wp-content/uploads/2021/01/Islamabad-Wildlife-Management-Board-v-MCI-WP-No-1155-of-2019.pdf
14 Sandra, a orangotango que se transformou em ‘pessoa’. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/17/ciencia/1560778649_547496.html
15 Em decisão histórica França altera Código Civil e reconhece animais como seres sencientes. https://anda.jusbrasil.com.br/noticias/166696161/em-decisao-historica-franca-altera-codigo-civil-e-reconhece-animais-como-seres-sencientes
16 CHUGANI, H. T. et al. 2001. Local Brain Functional Activity Following Early Deprivation: A Study of Postinstitutionalized Romanian Orphans. NeuroImage. 14 (6): 1290-1301. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1053811901909176?via%3Dihub
17 JACOBS, B. et al. 1993. A quantitative dendritic analysis of wernicke’s area in humans. II. Gender, hemispheric, and environmental factors. The Journal of Comparative Neurology. 327: 97-111. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/cne.903270108
18 McBRIDE, S. D.; PARKER, M. O. 2015. The disrupted basal ganglia and behavioural control: An integrative cross-domain perspective of spontaneous stereotypy. Behavioural Brain Research. 276: 45-58. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S016643281400360X?via%3Dihub