Outra globalização é possível
Resgate de uma utopia viável: em 1942, Keynes propunha, em detalhes, um sistema de comércio internacional voltado para o pleno emprego e os direitos sociais. Por que a proposta jamais foi adotada; como foi substituída pela OMC; que estratégias poderiam ressuscitá-laSusan George
A rodada de negociações de Doha, iniciada durante a conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) que ocorreu na capital do Qatar em 2001, fracassou. O diretor geral da OMC, Pascal Lamy, tenta deseperadamente ressucitá-la, mas os opositores à rodadada sustentaram, durante todo o período das negociações, que seria mais interessante não haver acordo algum do que fechar um mau acordo. Do começo ao fim, essas conversas aumentavam o risco de favorecer o grande agronegócio, enfraquecer as indústrias frágeis e oriundas do Sul, e, por meio do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (General Agreement on Trade of Services, GATS), permitir que o setor privado controle os serviços públicos.
O fracasso de Doha pode ser apenas temporário, e não quer dizer que os textos fundadores da OMC, adotados em 1995, tenham sido abolidos. O Acordo sobre a Agricultura, o Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade, GATT), relativo aos bens industriais, o GATS e mais de vinte outros instrumentos legais controlados pela OMC continuam a vigorar. Mas a execução dos mesmos passa a ser mais lenta. Vivemos uma interrupção, uma espécie de liberdade condicional. E, talvez, uma janela de oportunidades.
Diante do fracasso desta rodada, muitos se perguntam: o que colocar no lugar de Doha? Alguns responderiam que é a mesmo que perguntar: o que colocar no lugar de um câncer? Porém, em se tratando do comércio internacional, a resposta “nada” seria pouco recomendável. Enquanto a ausência de um câncer é desejada sem reservas, a ausência de um regime comercial internacional abre caminho para acordos bilaterais e multilaterais mais invasivos e perigosos, para os parceiros mais fracos, do que a OMC.
Uma proposta que poderia inspirar o altermundialismo
Ao invés de deixar os habituais suspeitos – os Estados mais poderesos – organizarem o futuro das relações comerciais, é útil retornarmos à grande reestruturação das relações internacionais ocorrida após a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, até o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), cuja vocação foi espetacularmente desviada, um quarto de século depois, eram instituições bem-acolhidas, que, durante um certo tempo, foram uteis tanto para o Sul quanto para o Norte devastado pela guerra.
Muito antes que a paz retornasse, o economista britânico John Maynard Keynes elaborava um projeto que renovaria profundamente as regras do comércio mundial. Ele propunha a criação de uma Organização Internacional do Comércio (OIC), apoiada por um banco central internacional, a União Internacional de Compensação (UIC). A UIC deveria emitir uma moeda mundial destinada ao comércio, o bancor. Como nem a OIC e nem a UIC vingaram, é interessante refletir sobre o que teria sido diferente caso elas tivessem ido adiante, e verificar que tal hipótese teria, sem duvida, resultado em uma mundo mais racional, com um sistema comercial que beneficiaria tanto as populações do Norte quanto as do Sul.
Com a OIC e a UIC, nenhum pais poderia registrar déficits comerciais gigantescos, como os Estados Unidos, atualmente (716 bilhões de dólares em 2005), ou excedentes comerciais igualmente enormes, como faz a China. Na estrutura de um sistema como aquele, também seriam impensáveis a assustadora dívida do terceiro mundo e as políticas de ajuste estrutural aplicadas pelo Banco Mundial. Certamente, esse plano não teria abolido capitalismo, e necessitaria de algunas ajustes para a atualidade. Porém, ele permanece atual em sua essência.
Antes de voltar a detalhar as regras que a OIC teria estabelecido, é importante esclarecer por que essa instituição nunca vingou. Segundo a explicação mais comum, o fracasso ocorreu porque os norte-americanos não a quiseram — o que é verdade, porém um pouco simplista demais. Houve outras razões políticas para o fato.
Os EUA querem fazer valer seus interesses…
Os Estados Unidos e o Reino Unido começaram, muito antes do fim da guerra, a negociar o acordo que resultaria na OIC e UIC. Keynes havia lhes transmitido a idéia em 1942. Os britânicos a defenderam oficialmente na conferência de Bretton Woods, em julho de 1944 (presidida por Keynes). Mas desde aquele momento, os norte-americanos, influenciados pelo sentimento de seus grandes empresários industriais, mostravam-se menos entusiasmados. O chefe de sua delegação, Harry Dexter White, apoiava a criação do Banco Mundial e o FMI [1]. O congresso norte-americano ratificou em seguida a criação dessas duas instituições, chamadas de “instituições de Bretton Woods”. A OIC ficaria à espera.
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 1945. Seu componente econômico, o Conselho Econômico e Social (Economic and Social Council, Ecosoc), estudou as propostas norte-americana e britânica sobre o estabelecimento de uma OIC. Em 1946, a Ecosoc convocou a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego, com o objetivo de examiná-las [2]. Antes que essa conferência se reunisse, os Estados Unidos aplicaram ao comércio internacional uma dinâmica em duas velocidades. Organizaram um encontro reservado aos 25 Estados-membros da ONU interessados, como Washington, em liberalizar o comércio sem demora. Eles se reuniram sob a égide de um fórum paralelo, destinado a esboçar uma espécie de medida provisória – ou ao menos considerada assim na época.
Assinado em 1947, o GATT entrou em vigor no ano seguinte. Todos os participantes esperavam que fizesse parte da Carta da OIC, que seria um instrumento permanente. Sendo assim, dotaram o GATT de uma estrutura institucional limitada. No ano seguinte, a carta da OIC foi concluída e ratificada na conferência de Havana, razão pela qual esse documento é chamado de Carta de Havana (seu nome é, de fato, Carta de Havana Instituindo uma Organização Internacional do Comércio) [3].
O projeto de base da OIC nunca foi efetivado, porque perdeu rapidamente apoios políticos essenciais. Keynes faleceu em 1946. O secretário de Estado norte-americano Cordell Hull, outro partidário da OIC, deixou suas funções por motivos de saúde um pouco antes do fim da guerra. O momento de entusiasmo de Bretton Woods, quando todos “refaziam o mundo”, havia passado. O isolamento de parte da sociedade norte-americana e dos politicos eleitos por ela para o congresso tinha nesse sentido. O mundo dos negócios opunha-se à OIC, tida ou como protecionista demais, ou como não suficientemente protecionista. As secretarias de Estado e do Tesouro norte-americano priorizaram o plano Marshall e a assinatura de diversos acordos bilaterais de comercio. Alem disso, uma difícil eleição presidencal se anunciava em 1948, e nenhum dos dois grandes partidos tinha a intenção de se atrelar a um acordo internacional polêmico. Além disso, a guerra fria havia começado, relativizando, na opinião de políticos e funcionários norte-americanos, o interesse e a urgência da criação da OIC.
… e o “livre” comércio ganha terreno sem debate
Uma vez reeleito, em 1948, o presidente Harry Truman apresentou a Carta da OIC (chamada “de Havana”) ao Congresso, porém sem convicção. Os legisladores, cujo dever era ratificá-la, nem se preocuparam em levá-la a votação. O GATT, por sua vez, sobreviveu: tido como “provisório”, ele não possuía nenhum arranjo institucional. Para os objetivos de “livre” comércio que determinaram sua criação, funcionou muito bem: ao longo de décadas, fez a média das alíquotas aduaneiras baixar de 50% para 5% — apesar da persistência de tarifas de pico na maioria dos países. O GATT organizou oito rodadas de negociaçãoo sobre a liberalização do comércio. A última delas, a Rodada Uruguai, foi a mais ambiciosa de todas — e levou à criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses acordos comerciais nao se parecem nem um pouco com o esperado por Keynes. A OMC é ainda mais distante.
Enquanto a Organização Mundial do Comércio não possui nenhuma ligação com a ONU, e conseqüentemente não reconhece nenhum de seus instrumentos legais (nem mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948), a carta da OIC começa fazendo referência à das Nações Unidas. O pleno-emprego, o progresso social e o desenvolvimento são alguns de seus objetivos.
O segundo capítulo da carta trata dos meios de prevenir o desemprego e o sub-emprego. Contrariamente à OMC, que não se pronunciou sobre o projeto, a OIC aponta a importância de normas de trabalho comuns e de melhores salários. Ela torna obrigatória a cooperação com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Deve-se lembrar que o movimento sindical mundial passou os seis anos seguintes à criação da OMC tentando obter uma “clausula social”, versão muito reduzida dos princípios que já figuravam na OIC.
A carta da OIC previa a divisão de competências e de tecnologias; afirmava que os investimentos estrangeiros não poderiam “servir de base a uma ingerência no que diz respeitos aos assuntos internos” dos Estados-membros. Os países mais pobres, mais fracos, eram expressamente aconselhados a recorrer ao intervencionismo e ao “protecionismo” para assegurar sua reconstrução e seu desenvolvimento: “A ajuda sobre a forma de medidas protecionistas é justificada”, diz a carta.
Idéia era industrializar o Sul e valorizar seus produtos
Ações e iniciativas especiais, “destinadas a promover o desenvolvimento de uma indústria particular para a transformação de um produto básico para a economia de um país eram especialmente encorajadas. As outras cláusulas da carta, que são muitas, tratam dos produtos primários e querem a proteção dos pequenos produtores. Fundos governamentais podiam ser utilizados para estabilizar o preco dos produtos primários e destinados a encorajar as negociações entre os Estados-membros que os produzem e transportam. Sem dizê-lo explicitamente, a OIC encorajou cartéis de produtores de matérias-primas, como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), tanto que estimulava os Estados a transformar suas matérias primas em território nacional, para agregar valor a elas.
Ao invés disso, o preço dos produtos primários, caiu. De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comercio e Desenvolvimento (Unctad), entre 1977 e 2001, a queda anual dos precos foi de 2,6% para os produtos alimentícios, 5,6% para bebidas tropicais, e 3,5% para os oleaginosos e azeites. Somente os metais que, ao contrário dos produtos alimentícios e bebidas, não são nunca fabricados por pequenos produtores, resistiram bastante, caindo apenas 1,9% ao ano, o que se traduz em uma sensivel baixa de lucros nos paises produtores.
Ao contrário do que dizem os dispositivos hoje em vigor, a Carta de Havana autoriza que o Estado ajude a indústria nacional por meio de subsídios ou de compras públicas. Ela reserva aos filmes de origem nacional uma parte do mercado cinematográfico. Permite aos paises signatários que protejam sua agricultura e sua pesca. Lembre-se que uma das batalhas que marcaram a Rodada Doha, e que provocaram seu fracasso, dizia respeito aos subsídios a exportações ag?icolas. A Carta da OIC proíbe expressamente subsidiar produtos em mercados estrangeiros, oferecendo-os “a um preço inferior ao exigido de um comprador nacional”. Em caso de dificuldades financeiras, os estados podiam limitar suas importações, mas eles deviam fazê-lo de forma proporcional ao problema, e oferecer cotas proporcionais aos seus fornecedores anteriores.
Em vez da OMC, a OIC — democrática e desburocratizada
A organização institucional da OIC era simples e democrática. Todos os Estados foram convidados para a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego. A incorporação de novos membros foi aprovada durante a conferência. Cada membro tinha iguais direitos (enquanto no Banco Mundial e no FMI, o voto é proporcional às contribuições financeiras; os Estados Unidos podem, sozinhos, vetar uma decisão importante). Um membro em atraso no pagamento de suas cotas, nas Nações Unidas, perde o direito de voto — significa que, na IOC, os Estados Unidos nao teriam direito a votar há uns vinte anos?
No que diz respeito à “governanca” da instituição, os membros da OIC deveriam escolher um Conselho Executivo de dezoito membros: oito deles provenientes de paises “cuja importância econômica e a participação no comércio mundial sejam maiores” e os outros dez representando diferentes regiões e diversas economias. As votações seriam por maioria simples ou, em certos casos, de dois-tercos. Os disputas comerciais, seriam resolvidas por meio de consulta; e no caso destas fracassarem, qualquer membro teria o direito de se dirigir ao Conselho Executivo, que poderia autorizar que o pais lesado tomasse medidas de retaliação.
Esses esforços para estabelecer uma nova ordem comercial foram empreendidos em um mundo que ainda se debatia para sair das ruínas causadas pela guerra. Ninguém, ou quase niguém, com exceção dos EUA, dispunha de boas condições financeiras. O plano Marshall também tinha como objetivo prevenir uma nova recessão, estimulando o comercio entre os Estados Unidos e a Europa. Sem isso, temia Washington a máquina industrial norte-americana seria incapaz de avançar rapidamente, por falta de consumidores.
Mas o que fazer para que cada pais se recuperasse e recomeçasse a produzir e a comercializar? Keynes formulou sua solução no começo dos anos 1940. Uma das causas da guerra eram as politicas comerciais, cujo objetivo era derrubar o vizinho, vendendo a preços mais baratos que ele. Criava-se uma concorrência feroz. O autor da Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda queria garantir que ninguém pudesse monopolizar todos os mercados, acumulando enormes excedentes comerciais. Sua solução chamava-se UCI, um novo banco central dos bancos centrais, que deveria emitir a moeda mundial destinada ao comercio, o bancor.
Engenhoso mecanismo para prevenir desequilíbrios
O sistema funcionaria da seguinte forma: as exportações fariam entrar o bancor no país, e as importações o fariam sair. O objetivo era que, ao final do ano, o saldo de um país com a OIC não estaria nem em déficit nem em superavit, e sim “zerado”. A moeda de cada país teria uma taxa de compra e venda fixa, que seria ajustável em relacao ao bancor. A inovação de Keynes foi perceber que o sistema seria perturbado tanto pelos países possuidores de quantidades insuficientes da moeda internacional quando pelos que detivessem uma grande quantia em bancors. Em outras palavras, os credores ameaçariam a estabilidade e a prosperidade tanto quanto os devedores.
Mas como obrigar os países a buscar um saldo próximo do zero e a mantê-lo? O método era engenhoso. Sendo tanto banco central quanto emissora da nova moeda, a OIC deveria conceder a todos os países facilidades de caixa (contas em descoberto sem cobrança de juros). O descoberto autorizado deveria equivaler a metade do valor médio das transações comerciais realizadas por um país nos cinco anos precedentes. Todo país que ultrapassasse o descoberto autorizado deveria pagar juros sobre a diferença. Dessa forma, os devedores eram chamados a pagar seus déficits. Porém, e aí está a grande descoberta, os credores – Estados possuidores de uma balanca de pagamento excedente – tambem teriam que pagar juros sobre seus excedentes. Quanto mais os déficits ou superávits se elevassem, maior seria a taxa de juros.
Além disso, os países deficitários seriam obrigados a desvalorizar sua moeda para diminuir o preço das suas exportações, tornando-as mais atrativas. Os países com excesso de saldo deveriam fazer o inverso: aumentariam o valor da sua moeda para que suas exportações se tornassem mais caras e dissuasivas. Se um país com excesso de saldo não reduzisse seu excedente, a OIC confiscaria a quantia que ultrapassasse o descoberto autorizado e a colocaria em um fundo de reserva. A previsão de Keynes era que esse fundo servisse para financiar forças policiais internacionais, operações de socorro em caso de desastres e outras medidas que beneficiariam todos os Estados-membros.
Como retomar o projeto utópico de Keynes
O acordo era muito hábil. Para evitar o pagamento de juros ou, pior, de ter o dinheiro confiscado, os Estados com saldo excedente deveriam competir entre si para importar dos estados deficitários. O aumento da receita de exportação dos estados deficitários favoreceria seu retorno ao equilíbrio comercial. Haveria ganhos múltiplos. Desenvolvimento do comercio internacional, garantias aos trabalhadores, maior prosperidade, relações mais pacíficas, aumento dos fundos investidos no desenvolvimento dos paises pobres, que não acumulariam dívidas como hoje em dia.
Mas o projeto de Keynes nunca se concretizou. E o mundo pós-guerra que ele imaginava nunca existiu. De um lado, as políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI ocasionaram enormes desgastes; a dívida do terceiro mundo, enorme, nao será jamais liquidada; Wall Street decide as medidas a serem tomadas no lugar os governos democraticamente eleitos (ao ponto de fazer com que países como a Argentina, se rebelem); as regras do comércio mundial não favorecem os países mais pobres; o egoísmo dos ricos aumenta à medida que eles enriquecem.
Como fazer do comércio igualitário uma realidade, agora que a OMC e suas regras já existem? George Monbiot acredita que o Sul endividado poderia agitar seus 26 trilhões de dolares de dívida como uma espécie de ameaça nuclear contra o sistema financeiro mundial, caso este não se disponha a estabelecer uma OIC. O Sul poderia tambem instaurar sua propria União de Compensações, mais modesta que a originalmente prevista Que tal se a América Latina fosse o primeiro continente a colocar tal projeto em prática? Um novo governo novo — na França, por exemp